Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 8 – Arco 3

Capítulo 109: Consequências

A atmosfera dentro daquele ambiente era gélido, mas ao mesmo tempo um pouco acolhedor. Estavam sentados em uma sala que parecia feita de cristal, mas seu chão e arredores eram de puro vidro, permitindo que pudessem apreciar o ambiente abaixo deles — o jardim real. Sob a pequena mesa um pouco mais alta do que eles, haviam um par de xícaras da nobreza preenchidas com café. O odor preenchia aquele espaço fechado, e o olhar azul escuro da garota — não, da mulher sentada na cadeira, com uma postura perfeita e sorriso gracioso no rosto fez Edward engolir em seco ao ouvir seus cumprimentos.

— Faz um tempo que não nos vemos — continuou Ryota,ao vê-lo sentar-se diante dela — Então, imaginei que seria uma ótima ocasião para conversarmos em um ambiente familiar.

Era engraçado ela dizer aquilo quando, no momento em que havia pisado naquela sala pela primeira vez, estava praticamente morrendo de exaustão e estragos mentais causados pelos eventos nas celas. Entretanto, não parecia ser diferente agora, mas Ryota se tornou mestre em ocultar seus sentimentos através das ações, o que tornava quase impossível para o príncipe compreender o que realmente estava sentindo. 

— É verdade. Não conseguimos conversar adequadamente nos últimos dias, e tudo tem estado tão corrido para mim que quase se tornou impossível tirar um momento para descansar. Entretanto, foi inteligente de sua parte requisitar uma conversa comigo como desculpa para isso.

Edward abriu um sorriso enquanto tomava um gole da xícara de café. Ryota, ainda com um sorriso educado, inclinou a cabeça.

— Ah, eu não usei como desculpa. Na verdade, realmente queria conversar com você sobre algumas coisas.

— Entendo. Bem, antes de mais nada, eu gostaria de saber como está se sentindo. Digo, você passou alguns dias desacordada pela exaustão, e sei que recuperar-se enquanto tantos conflitos ainda estão de pé não deve ter sido fácil.

Por alguma razão, ambos estavam conversando de forma extremamente formal. Apesar do clima agradável, Edward, por alguma razão, não gostou disso. Entretanto, vendo que a própria garota havia mudado a forma de se comportar desde então, ele automaticamente se ajustou ao jeito dela falar. Porém, não parecia que Ryota se incomodava com aquele fator, e apenas deu continuidade à conversa com uma calmaria quase assustadora.

— … Estou bem — ela demorou um instante para responder, mas nenhuma mancha de tristeza caiu sobre sua expressão, tendo se mantido por um instante na mais pura neutralidade — Mas, mais importante do que isso, eu desejava expressar meus agradecimentos por seu apoio desde que a coroação acabou. Ainda que o evento não tenha se sucedido muito bem, estou ciente de que esteve disponibilizando suporte a mim enquanto estive inconsciente e, também, ao Zero. 

Ryota inclinou levemente a cabeça, como que reverenciando-o por um pequeno período. Apesar das palavras formais, Edward foi capaz de sentir que ela estava sendo verdadeira em seu agradecimento, então retribuiu o sorriso.

— Obviamente. Eu jamais poderia abandoná-los depois de tudo o que fizeram por mim e pelo reino… Especialmente você, Ryota. 

O príncipe abaixou os olhos com melancolia, e Ryota imediatamente soube aonde sua mente estava indo.

— Desde aquela tarde, ainda não tive coragem de oficializar meu posto como rei. Eu sei que estou sendo egoísta sobrepondo meus temores e receios acima da responsabilidade de governar, e que estou, de certa forma, já tomando a direção de certas decisões como um monarca, mas ainda parece… Errado.

Edward refletiu a respeito daquilo que ainda o impedia de tomar a coroa e suspirou.

— Ainda está sendo difícil aceitar que ele partiu… E que não foi culpa minha — o sorriso dele tremeu — Sinto como se o palácio estivesse silencioso e sério demais sem ele. E, apesar de nunca ter dado o devido valor aos seus sorrisos e palavras, estou sentindo falta delas, agora. E percebo que, ainda mais do que eu, todos que aqui estão também sentem.

Mesmo que não tivesse passado tanto tempo no palácio para expressar a mesma solidão, Ryota entendia o que Edward queria dizer. A perda de uma pessoa tão amada pelo povo, que sempre tratou a todos com carinho como se fosse família, que expressava humildade e sorrisos calorosos acima de qualquer outra coisa, que mesmo ninguém sabendo dizer se eram expressões de fachada ou não, ainda era possível sentir o amor transmitido… Para Edward, que se culpava de não ter sido capaz de entender a importância de Fanes desde o início, e que o viu cair em direção à morte, mas não o alcançou a tempo, e então surgirem as consequências de sua morte, era quase como se o pesar que sentisse triplicasse de tamanho.

Era natural que temesse a coroa e o trono desde então — eles ainda pertenciam a Fanes. Se Edward o tomasse agora, se sentiria responsabilizado demais. Seria como roubar a coroa para si, e mesmo que as pessoas não o vissem daquela forma, ele se sentia assim. Sujo, impuro. Uma pessoa indigna. Alguém incapaz de compreender o coração da pessoa mais próxima a ele, e que mesmo assim o deixou morrer por suas incapacidades. 

Se assim fosse, como poderia governar um reino com tantas pessoas?

Como seria capaz de entender o coração de desconhecidos e ajudá-los? Se tornar uma imagem de referência, orgulho e atenção?

— Meu pai era gentil, sorridente e empático… Características que simplesmente não possuo, não importa o quanto eu me esforce.

Forjar uma máscara e se passar por uma pessoa assim era fácil — o problema estava na veracidade de seu coração. Afinal, Edward era uma pessoa honesta demais, mas que se sensibilizava fácil por qualquer coisa. E, por conta disso, suas impressões sobre os outros eram erradas ao temer se aproximar, e ele ficava preso dentro da própria mente com mal-entendidos e a incapacidade de se comunicar corretamente com os outros.

E não estava se referindo ao seu porte, pois sua educação foi esplêndida, mas a compreender aqueles com que interagia.

Ele havia, de fato, usado uma máscara para convencer Ryota a fazer um voto, mas tudo fazia parte de um grande jogo. Fingir dureza, ser alguém que parecia sempre saber de tudo e brincar com o coração daqueles que estavam ao seu redor era uma grande brincadeira de mal gosto que a nobreza constantemente fazia — ferindo uns aos outros para enaltecerem a si mesmos, sem pestanejar.

Fuyuki, por ter crescido em uma família difícil, mas ter tido sabedoria o bastante para entender seus arredores e abraçá-los a fim de mudá-los, foi um diferencial. Edward, entretanto, não possuía maturidade o bastante para isso, e então o resultado de suas ações e palavras impensadas levaram àquele futuro triste e solitário.

Eram apenas consequências de suas ações, e nada mais.

Apertando os punhos embaixo da mesa, o príncipe inspirou fundo para conter o aperto em seu peito.

— Mas, ainda assim, sinto que se não tivesse você ao meu lado naquele momento, eu, talvez… Não teria conseguido pensar direito, e… 

Edward fechou o rosto ao perceber que falaria algo terrível, e Ryota não precisou ouvir tudo para lembrar-se que o choque de ver seu pai morrer, de vê-lo cair, o fez se jogar da mesma altura para tentar salvá-lo. Mas a garota percebeu que, talvez, caso ninguém estivesse ali para ampará-lo, ele teria feito mesmo assim aquilo logo depois, em arrependimento.

— Eu preciso lhe agradecer por tudo o que fez por mim. Você me ajudou a abrir os olhos e ver as coisas de um jeito diferente, mesmo sendo uma pena não ter sido capaz de mudar tudo antes do fim. Se não tivesse estado lá, me influenciado a olhar para frente, a entender que, talvez, meu pai tivesse me amado de verdade, eu… Eu talvez teria me tornado um rei horrível. E talvez nem fosse capaz de olhar para minha irmã, tentando reconciliar nosso tempo juntos.

Finalmente, o príncipe abriu um sorriso tímido, mas que expressava sua alegria em ter alguém ao seu lado para chamar de família.

— A-Ah! Sinto muito, eu não queria falar tanto assim — sentindo que lágrimas chegavam aos seus olhos, Edward corou e desviou o olhar, enxugando-as enquanto se desculpava — O que estou querendo dizer é que gostaria de lhe recompensar devidamente por ter ajudado a mim, minha irmã, ao meu povo e, também, por antes você e a senhorita Fuyuki, ao lado de sua elite, terem derrotado a Insanidade.

Ryota riu com o nariz, em silêncio.

— Entendo, e agradeço sua oferta.

— Então, o que posso fazer por você?

Ela, sem hesitar, inspirou fundo e respondeu:

— Gostaria que dedicasse todo o apoio possível à recuperação de Zero.

— Bem, estamos trabalhando nisso, e certamente não deixarei de auxiliá-lo nos tratamentos.

Era uma resposta natural, e pareceu que Edward ainda não estava aceitando que seria apenas aquilo.

— Não — disse Ryota, como que se corrigindo — Estou dizendo que gostaria que todo o apoio financeiro dedicado a mim fosse desviado para os investimentos da duquesa Minami. Quero que compense os esforços de todos que estão trabalhando com a Maga Celeste no processo, e mantenham tanto Zero quanto a senhora Minami estáveis.

Edward arregalou um pouco os olhos.

— Bem, posso providenciar isso, sem problemas. Na verdade, eu e a senhorita Fuyuki estamos trabalhando nisso lado a lado, mas…

— É o suficiente, então.

— Mas-

— Eu não preciso de dinheiro — disse ela, mas não com autoridade ou superioridade — Agora que Zero foi capaz de receber a bênção de todos da nobreza, sou capaz de restituir a existência dos Furoto, e, naturalmente, extrair todos os bens que foram gerados pela família desde então.

Ainda que uma família da nobreza não existisse mais, tudo aquilo que criaram ao longo dos anos não desapareceria, e aquilo incluíam terras e investimentos gerais. Como Ryota agora era noiva de Zero, e, portanto, eventualmente se tornaria membro da nobreza também, como responsável legal, ela poderia tomar a direção daquilo enquanto o Furoto estivesse incapacitado.

— Se ainda não está satisfeito com isso — disse ela, notando sua expressão de surpresa — Dedique-se então à reconstrução da cidade. Permito que use as compensações para investir nela, e no trabalho dos curandeiros que ainda estão buscando evitar ainda mais baixas. 

Ryota pensou em Eliza por um instante e piscou para afastar o rosto da menina de suas memórias.

— Estou negociando a reconstrução da antiga mansão dos Furoto, e em alguns meses estará pronta. Dito isso, não precisarei mais permanecer no palácio. Dito isso, poderão encaminhar Zero para a casa e garantirei que todos os envolvidos em seu tratamento possam entrar em contato com ele, mas serão pessoas exclusivas e precisarão passar por uma avaliação meticulosa antes de entrarem na mansão. Não quero que ninguém que possa lhe fazer mal novamente se aproxime.

— … Certo.

Edward ficou ligeiramente assustado com as palavras dela, e em como tudo aquilo foi dito com uma frieza que refletia diretamente em seus olhos azuis escuros sem vida. Ela havia se colocado de pé enquanto falava, parecendo concentrar-se naquilo que dizia.

Ryota, por outro lado, ao lembrar-se da curandeira de cabelos azuis, recordou-se de que ela estava bastante atarefada. Enquanto precisava lidar com os tratamentos de Zero — e, por consequência, Coldy também —, o que permitia usar os investimentos financeiros no trabalho, ela ainda assim era uma só, e certamente se sacrificaria por todos aqueles projetos de pesquisa e testes para descobrir uma forma de salvar Zero, especialmente, agora que havia sido revelado seu pouco tempo de vida.

Eliza ainda estava ocupada com a recuperação dos feridos da cidade também, pois nem todos havia sido capaz de curar adequadamente, e precisava repassar os pós-tratamentos adequados a todos. Ela, assim como sua equipe médica, estava atarefada até os ossos, e Ryota sabia que a menina daria o sangue pelo trabalho dela.

Por isso, o que lhe veio à mente foi uma outra informação que acabou passando despercebida a princípio, mas foi capaz de se recordar agora.

— Não descobriram o paradeiro da Maga Veridian?

— Não. Desde a coroação, ela desapareceu completamente.

— Sabem onde podem encontrá-la?

— Não — o príncipe balançou a cabeça — A última vez que a vimos foi pelas ruas da capital, auxiliando no resgate dos civis. Entretanto, acabou desaparecendo um tempo mais tarde, e nenhum membro da corte a viu desde então. Nem a Maga Celeste foi capaz de entrar em contato com ela.

Ryota franziu a testa, amaldiçoando aquilo mentalmente. E, de repente, algo lhe veio à mente. Ela apoiou uma das mãos na mesa e olhou para Edward.

— Por acaso, a senhorita Sofia saberia onde encontrá-la?

O príncipe uniu as sobrancelhas.

— É difícil dizer. Ela é uma mulher com muito conhecimento, mas desconfio que para retirar informações dela, seja necessário muito mais do que apenas pedir. Afinal, se nem mesmo nós fomos capazes, desconfio que apenas alguém diretamente ligado a ela seja capaz… Entretanto, não descartaria a possibilidade.

Ryota apertou os olhos e refletiu sobre as palavras dele. Ela se lembrava de ouvir Sasaki lhe dizer que Sofia sabia muito, e que poderia saber o paradeiro de seu avô. A princípio, imaginou que fosse reflexo de ambos possuírem alguma conexão de sangue, mas parecia ser muito mais do que aquilo — ainda era difícil dizer, e Ryota estava hesitante em confiar no homem que havia mentido para ela de novo. 

E, acima de tudo, Sofia era uma mulher bastante complicada de se lidar. Porém, se havia uma chance de encontrarem a Maga Veridian para pedir sua ajuda, e possivelmente salvarem Zero e Coldy, e talvez ainda encontrarem uma forma de reverter aquela situação em menos de um ano… 

— Ela está em Urânia, certo? 

Um arrepio percorreu os braços de Edward quando um pressentimento ruim lhe alcançou.

— O que está pensando em fazer?

— Farei uma pequena viagem — ela lhe deu as costas — Agradeço pela hospedagem e sua colaboração… Adeus, Edward.

Após aquele silêncio duro, a garota começou a andar na direção da porta. Entretanto, em um instante, foi parada quando uma mão segurou seu pulso.

— Eu a verei novamente?

— Sim, mas não sei quando.

O príncipe fez uma expressão amarga. Ela não podia vê-lo, mas quase sentia as emoções que estavam dentro de seu coração. E justamente por isso, por se lembrar de que se tornaram muito mais do que apenas mestre e guardiã, algo muito maior do que apenas parceiros ou amigos, ela abriu um sorriso sutil e sentiu seu peito aliviar um pouco do peso.

— … Muito obrigada por tudo.

Ryota quase sentiu que os olhos dele se encheram de lágrimas, e praticamente pressentiu que o príncipe desejava abraçá-la. Entretanto, endurecendo seu coração mais uma vez e erguendo o queixo, ela continuou andando e puxou suavemente o pulso, pronta para sair da sala de cristal.

Ao segurar a maçaneta, parou e olhou para trás.

Pela primeira vez em dias, seus olhos estavam brilhando um pouco como o azul que conhecia.

— Feliz aniversário atrasado.

E, após assim dizer, lembrando-se que não havia dito aquilo dias antes, saiu da sala e fechou a porta.



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