Volume 8 – Arco 3
Capítulo 107: Quente e Frio
Alguns minutos mais tarde, no mesmo salão em que Fuyuki Minami havia sido encontrada, todos se reuniram. A duquesa estava com uma expressão dura, difícil, que indicava o quão complicadas estavam as coisas. Eliza havia ido ao banheiro para lavar o rosto e retornou com uma expressão ainda mais manchada de tanto chorar, mas pelo menos foi capaz de conter as lágrimas. Sora permaneceu encostado contra a parede, as mãos nas costas e olhos fechados, alheio à situação.
— Como ela está? — foi a pergunta dita por Edward, que havia chegado há pouco tempo.
O príncipe caminhou para perto do grupo reunido, sentado ao redor da lareira, e imediatamente sentiu o baque do clima desagradável. A notícia do despertar de sua guardiã chegou aos seus ouvidos, e ele rapidamente havia ido em direção ao local que seus empregados disseram que a viram seguir. Acompanhado de Marie, que segurava agora sua mão, eles desceram as escadas para encontrar a duquesa Minami, mas certamente não deveriam ter esperado tanta animação por parte deles.
Ao ouvirem sua pergunta, a curandeira se encolheu na poltrona. No sofá, Fuyuki voltou suas íris para o príncipe e inspirou fundo.
— Alteza — ela meneou a cabeça em uma reverência curta.
— … Então, ela realmente… Está abalada, não é?
Marie ergueu os ombros, segurando com a mão livre o botão de seu colar.
— Era esperado… Afinal, ela acabou de perder tantas pessoas importantes… Eu… Se tivesse perdido o Luccas, não sei como teria me sentido… Ou como lidaria com isso…
Edward afagou o cabelo de sua irmã mais nova com um sorriso melancólico. Ele sabia que a menina ainda estava um pouco traumatizada com o estado que seu protetor havia ficado após a luta contra Miura. Com tantos ferimentos e a possibilidade de ter sido morto caso Sora não tivesse chegado a tempo para impedi-los, a menina jamais poderia demonstrar mais gratidão ao guardião. Entretanto, dentro dela, havia a preocupação com Luccas e agora com Ryota também, que parecia inconsolável.
Era difícil imaginar quanta dor estaria sentindo neste momento, ou que pensamentos passavam por sua mente.
— … Eu queria… Poder ficar ao lado dela, agora…
— A Ryota pediu para ficar sozinha — alertou a duquesa, cautelosa, em voz baixa — Precisamos respeitar seu espaço.
O príncipe se aproximou para se sentar também, e os dois irmãos se acomodaram lado a lado em um sofá próximo.
— A senhorita está bem? — perguntou ele, olhando para Fuyuki, que fitava a lareira.
— Sim — percebendo que provavelmente estava com uma expressão dura no rosto, a duquesa levou as mãos ao rosto e deu tapas suaves em suas bochechas — Sinto muito, estou um pouco cansada.
— Eu entendo como se sente… Estamos todos passando por momentos difíceis — disse o príncipe, sorrindo para tentar consolá-la — Não se sinta pressionada, por favor. Desejo, sim, que todos nós nos esforcemos para resolver essas questões o mais rápido possível, mas me incomodaria se levassem suas mentes ao limite. Descansem um pouco durante a noite, e retomemos os trabalhos durante a manhã de amanhã.
Era importante que dessem seu melhor para trabalhar, entretanto, se você levasse seu corpo e mente à exaustão, o que restaria era alguém incapaz demais para gerar resultados, e provavelmente só traria problemas. Fuyuki era bem ciente de que a própria Eliza era capaz de fazer isso, e viu com seus próprios olhos o resultado de levar-se ao limite.
Edward gostava da determinação delas, mas como autoridade, precisava impor certa dureza em suas palavras para que todos pudessem ter um pouco de descanso. Percebendo que seria somente assim que poderiam parar para refletir sobre tudo o que aconteceu, a duquesa ergueu os olhos para o príncipe.
— Obrigada.
Os dois trocaram sorrisos simpáticos.
— Eu gostaria de poder ajudá-la… E poder consolar a Ryota, também — disse Edward, encostando as costas contra o sofá — Mas se nem mesmo a senhorita foi capaz, duvido que seria de grande ajuda.
— Ai, para de ser sempre tão pra baixo! — Marie deu uma cotovelada na barriga dele, o fazendo se encolher — Vocês dois são muito importantes pra ela, então tenho certeza de que só dela saber que querem apoiá-la é o bastante!
A menina se intrometeu com seu humor forte e imediatamente fez os dois adultos enrijecerem o corpo. Ela cruzou os braços e ergueu o queixo.
— Eu sei bem como é difícil quando a gente não tem com quem contar, e mesmo que no momento seja difícil dar consolo ou um conselho, só de saber que temos alguém pra ficar ao nosso lado é bom, sabiam? Quer dizer… Ficar sozinho quando estamos passando por momentos ruins é terrível…
Provavelmente lembrando do ocorrido nas celas, Edward deu um tapinha carinhoso na cabeça da irmã, o que a fez tremer o corpo todo.
— Ai! Não faz isso! — ela deu outra cotovelada nele, dessa vez mais forte.
— D-Desculpa! Mas você está certa — após receber o golpe que deveria ter acertado sua costela, Edward afagou mais uma vez os cabelos de Marie e abriu um sorriso — Não podemos baixar a cabeça agora. Por enquanto, vamos tirar um tempo para descansar e refletir sobre o que aconteceu. E, então, vamos tentar consolá-la, ainda que seja difícil.
— E ergue essa cabeça, mulher! — Marie apontou o dedo para Fuyuki, a fazendo arregalar os olhos — Vê se tem um pouco de orgulho por tudo o que fez, não quero saber de baixo astral, não, ô! Já bastava o Luccas de bonzinho que parecia um cachorro, quero ver todo mundo aqui erguendo o peito e dando seu melhor! Mas, é claro, ninguém aqui vai conseguir ser útil se estiverem na merda, então façam como o Ed disse.
— N-Não diga palavras tão feias na frente dos outros, Marie — Edward ficou chocado com a atitude dela e deu outro tapa suave em sua cabeça, a fazendo soltar um resmungo.
— Vou me retirar, mestre.
De repente, cortando completamente o clima, Sora saiu a passos silenciosos e assim disse, ao que Fuyuki sorriu para ele:
— Certo, mas não se esforce demais. Quero que descanse por hoje.
O guardião não respondeu, mas acenou com a cabeça antes de sair andando pelos corredores. Fez o caminho tradicional, ao qual estava acostumado a fazer, mas então seguiu na direção não de seu quarto, mas o de outra pessoa. Nos corredores que davam para os quartos de hóspedes, Sora soltou um suspiro pesado quando parou diante da maçaneta e, então, lentamente a segurou.
Por fim, retirou a chave que estava em seu bolso e destrancou a porta, girando lentamente a maçaneta, e entrando no cômodo.
O que o recepcionou foi um quarto gelado e escuro. As luzes estavam apagadas, com exceção de algumas velas que estavam acesas nos cantos do cômodo. Com a janela aberta, mas a pesada cortina impedindo que a luz do sol a atravessasse, o rapaz adentrou no quarto deixando a porta ligeiramente aberta. Era um quarto comum, mas com um ar difícil de respirar, quase empoeirado. Natural, pois haviam alguns dias que ele permanecera escuro daquela forma, e Sora não poderia fazer nada a respeito.
Suas íris vermelhas baixaram para a pessoa que estava sentada no chão. Era uma garota com cabelos negros curtos na altura do orelha e olhos como os dele, mas que brilhavam com um ar quase insano. Ela não usava mais seu uniforme e haori vermelhos, mas um conjunto de pijamas completamente fora do padrão. Normalmente Kanami optaria por roupas mais comportadas, como uma blusa de botões de mangas compridas e uma calça que iria até seus calcanhares, mas não era essa a sua vestimenta.
A garota usava um conjunto de cetim que era composto por uma blusinha de renda que ia até seu umbigo, revelando facilmente seus seios quando se agachava ou curvava o corpo, e um shorts do mesmo tecido que mal chegava a cobrir as coxas. Descalça, ela estava sentada com as pernas cruzadas segurando uma boneca de pano, sem qualquer expressão no rosto.
Mas, mais chocante que suas roupas ou olhar, era a mancha de queimadura que havia desde um pedaço de sua cabeça, do lado esquerdo, até próximo ao nariz.
Entretanto, quando ouviu um barulho, imediatamente seus olhos brilhantes se ergueram em direção à pessoa que entrou, fazendo uma expressão ameaçadora. Porém, ao ver quem era, um largo sorriso se abriu em sua face.
— Irmãozinho!
Com uma risada calorosa, mas um pouco assustadora, a garota largou a boneca no chão e começou a engatinhar na sua direção. Sora adentrou um pouco mais o cômodo e observou sua irmã abraçar suas pernas com uma força que poderia quebrá-las, mas não se importou.
— Você demorou! Eu estava sentindo sua falta, irmãozinho!
— Sinto muito, Kanami.
Sora agachou-se na altura dela e acariciou seu cabelo da mesma forma que faria com uma criança. O ar ameaçador não desaparecia em momento algum, como se ela estivesse pronta para demonstrar hostilidade, mas seu sorriso largo indicava que seu humor ainda estava bom. Pelo menos, ele não precisava se preocupar com essa mudança, por enquanto.
— Você destruiu outro travesseiro?
— Maaaaaaas ele era ruim! Era quente! Me dá agonia, irmãozinho!
Sora olhou para os restos do travesseiro no chão, que fora aberto de fora para dentro com as próprias mãos da garota. Os pedaços de algodão se espalharam pelo quarto, e ao ser acusada, Kanami inflou as bochechas e tentou se defender.
O guardião apenas soltou um suspiro pesado e acariciou sua cabeça novamente.
— Ele era quente demais, não era? Sinto muito, trarei outro para você.
— Ehe, hi, hi, hi!
Foi nesse instante que um barulho foi ouvido, e como num piscar de olhos Kanami saiu dos braços de seu irmão e saltou. Foi uma velocidade para além do que se esperaria, e certamente não foi o que Ryota aguardava ver quando empurrou sutilmente a porta para enxergar melhor o lado de dentro. Entretanto, quando a garota com uma aura hostil se aproximou, empunhando sua katana, e apontando-a na direção da pessoa que nem pisou dentro do quarto, Sora olhou para trás com choque.
Embora a lâmina aquecida em um piscar de olhos estivesse apontada para seu rosto, Ryota não se moveu um único músculo, e sequer reagiu com surpresa quando recebeu tamanha recepção. Em verdade, seus olhos apenas se apertaram na direção da garota que a olhava com uma ferocidade assustadora, mas que nada a fez sentir. O guardião imediatamente correu até as duas e puxou Kanami pelos ombros, segurando o pulso da mão que portava Alhena.
— Não levante sua espada contra os outros, Kanami.
Mas ela não respondeu, e relutou um pouco quando lentamente o irmão puxou a gêmea para trás, tomando de sua mão a katana. Em piscar de olhos, ele desfez a transformação da espada e guardou o anel em seu bolso, soltando um suspiro.
— Eu não esperava que fosse capaz de conjurá-la neste estado…
Kanami deu um olhar lento, mas afiado, para o irmão. Ela quase não parecia piscar. E, após aquele silêncio de ambos se encarando, pareceu que algo estalou dentro da garota, que caiu de joelhos e ficou em posição fetal, as mãos na cabeça enquanto tremia.
— Tá quente, quente, quente, quente, quente, quente, quente…! Irmãozinho, tá quente…!
Sora, franzindo a testa suavemente, pegou a garota que repentinamente tivera uma crise no colo e levou-a para mais dentro do quarto. Ryota permaneceu parada, sem entender, até que finalmente adentrou o cômodo e encostou a porta atrás de si. Ela piscou algumas vezes para se acostumar com o pouco de iluminação e abraçou o próprio corpo ao sentir o clima baixíssimo do quarto, então olhou para o ar condicionado na parede.
— Pronto, aqui, pegue-a — Sora tentou incentivar a irmã a sair do transe pegando a boneca que estava no chão, e colocou diante de seus olhos que se encheram de lágrimas — Veja, não é bonita?
Ryota observou a cena à distância, e percebeu que Kanami, aos poucos, parou de tremer e segurou o brinquedo com as duas mãos, encarando-o tão fixamente que todo o seu corpo travou. De seus lábios, apenas saiam balbucias sem sentido, e Sora colocou-se de pé.
— O que está fazendo aqui? — perguntou ele à garota, sem olhá-la.
— … Eu queria encontrar você e a Kanami — respondeu ela, baixinho, com uma expressão dura no rosto, os olhos ainda nas costas da garota encolhida no chão.
O gêmeo ficou em silêncio e ergueu o rosto para ela. Foi como se a fitasse com seriedade, mas, ao mesmo tempo, uma espécie de indecisão. Havia muito tempo que Ryota não via Sora com aquela inexpressividade, incapaz de expressar uma única fala sarcástica ou um ar hostil. Foi como se ambos os extremos desaparecessem, dando lugar a um frio completo.
Não que ela pudesse julgar, afinal passava exatamente pelo mesmo.
— Minha irmã… — ele começou a falar, mas hesitou, engolindo em seco — … Colocou-se em risco e tentou se sacrificar por mim. E este foi o resultado.
Kanami começou a balançar a boneca de cima para baixo, observando seus movimentos.
— Posso perguntar o que aconteceu?
— Eu não fui capaz de parar Miura.
Ouvir aquele nome pareceu piorar ainda mais o clima no quarto, e ambos ficaram tensos imediatamente.
— Ele estava descontrolado, perdido dentro de sua mente… Entregou-se completamente ao Instinto Assassino. E eu… Eu achei que pudesse impedi-lo, mas…
A expressão distante e fria de Sora foi tão difícil de ver que Ryota precisou piscar algumas vezes para processar o que ele estava dizendo.
Kanami abriu um sorriso largo.
— Minha irmã veio ao meu resgate, mesmo eu não a tendo chamado. Ela tentou pará-lo, e quase teria conseguido, se Miura não estivesse louco o bastante para colocar tudo de si em uma última aposta.
— Foi ele quem deixou a Kanami assim?
— Eu não conseguia me mover… Não fui capaz de impedi-lo… Ou de salvá-la — havia amargura em seu tom de voz — E ele tocou diretamente em sua cabeça, sugando seu chi com uma brutalidade horrível.
— Sugando chi?
Ryota franziu a testa.
— É uma habilidade delicada que alguns possuem, mas Miura foi especialmente bruto. Ele tocou diretamente em seu cérebro e tomou tudo o que ela tinha, e o choque a fez soltar… Um grito horrendo.
Sora tapou os ouvidos, como se ainda pudesse escutá-lo ecoando por sua cabeça.
Kanami, percebendo que seu irmão estava incomodado com algo, abraçou-lhe a perna.
— Ela perdeu a consciência na hora, mas sofreu uma cicatriz mental que madame Eliza não foi capaz de reverter. Os ferimentos foram curados, mas Kanami não permite que toquem em sua cicatriz no rosto. Devido ao choque, agora ela tem aversão ao calor e à luz… Como se isso lhe trouxesse memórias daquele momento, e talvez até a dor de tê-la machucado diretamente com seu poder.
Ryota finalmente entendeu porque aquele quarto era tão estranho. No fim, não poderiam ligar a energia elétrica, e as janelas precisaram ser tapadas. Aparentemente, apenas luzes de velas poderiam ser mantidas de forma que não a assustasse.
— Minha irmã não consegue ficar próximo de ninguém que não seja eu, e precisa ficar presa nesse quarto durante suas crises — Sora se agachou para acariciar a cabeça dela, separando os fios de seu cabelo — Ela não consegue usar mais seus poderes… Ao menos, foi o que achei.
Ele se recordou sobre como a garota sacou e invocou a espada do anel num piscar de olhos, assustando-o. Isso o fez soltar outro suspiro pesado.
— Aparentemente, a pressão do chi foi forte o bastante para impedi-la de reconhecer os rostos das pessoas, e ela sempre vai reagir com hostilidade a qualquer um que se aproxime dela ou de mim.
Ryota baixou os olhos.
— Há algo que possa ser feito?
— Cicatrizes mentais são infinitamente mais complicadas de cuidar do que as físicas. Madame Eliza curou parte de seus ferimentos, mas não completamente… Suspeito que, à essa altura, a marca da queimadura permanecerá em seu rosto. Estão trabalhando para buscar uma forma de reverter essa condição, mas… Está sendo uma carga muito grande para madame Eliza desde que a Maga Veridiana desapareceu desde a coroação.
Ryota não sabia de quem estava falando, mas apenas decidiu ficar em silêncio ao perceber que deveria se tratar de alguma companheira de serviço. Entretanto, ver aquele estado dos irmão era, no mínimo, doloroso. Se para os demais que viam a cena era difícil, não era capaz de imaginar como era para o próprio Sora.
A garota voltou seus olhos azuis escuros para a cama, viu o travesseiro destruído e, logo ao lado, um livro de contos de fada que reconheceu imediatamente — Irmãos Estrela. Ela se recordava de ter lido aquelas histórias quando criança, e de ter conversado sobre o livro com Edward alguns dias antes. Ela o pegou com uma das mãos e observou a capa, ao que Kanami, percebendo que algo seu fora tomado, desviou um olhar hostil para ela, mas Sora a abraçou para impedir que se aproximasse.
Então, percebendo que Kanami a olhava, Ryota estendeu o livro na direção dela. Pareceu que a garota ficou um pouco surpresa por não ter sido afastada por sua ameaça, então ela estendeu a mão na direção do conto e o pegou timidamente.
— Eu leio para elas todas as noites antes de dormir — revelou Sora, olhando para o livro — Sua Alteza me informou que poderia ser uma boa ideia para acalmá-la, e esteve funcionando desde então.
Ryota entendeu imediatamente a origem daquele conselho, e sua mente vagou para o monarca que não mais estava entre eles.
— … Entendi.
A garota, fazendo uma expressão de dor, virou-se e caminhou na direção da porta.
— Aonde vai?
— … Terminar aquilo que comecei.
E então, sem dizer mais nada, ela saiu do quarto e fechou a porta.