Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 8 – Arco 3

Capítulo 106: Adormecidos

— … Dias contados? Então, ele ainda precisa de cuidados? O que isso significa?

As esperanças de Ryota murcharam imediatamente ao ouvir as palavras que vieram de Fuyuki, e a garota imediatamente começou uma enxurrada de perguntas. Após um instante de silêncio, a duquesa disse com um tom baixo, quase refletivo:

— Acho que nunca lhe contei a respeito do que houve com minha mãe, não é?

Ryota não respondeu. De fato, desde quando se conheceram, tudo o que ela sabia a respeito de Coldy era que a mulher sofria de alguma condição causada durante o genocídio de dois anos atrás. Os detalhes a respeito nunca ouvira falar, mas ela fora a única sobrevivente, porém, com condições específicas que a mantinham numa espécie de coma saudável, mas a troco de um constante tratamento que exigia a presença de Eliza.

Deveria ser o tipo de situação mais complicada possível. Afinal, se nem médicos comuns eram capazes de resolver, e era necessário uma curandeira especial para ter contato praticamente todos os dias com ela, era esperado que não fosse algo tão simples assim de se lidar.

— Dois anos atrás, houve um incidente em que eu e meus parentes nos envolvemos. Aparentemente, era um ataque da Insanidade, que acabou… Levando toda a minha família no processo. Estávamos em muitos, mas nem todos eram capazes de se defender ou lutar, e conforme o tempo passou, eu entendi que aparentemente eles não estavam sozinhos. Era bastante possível que aqueles mascarados chamados de aprosopos também estivessem presentes.

Como não conhecia aquele termo até então, a garota de cabelos negros ficou em silêncio e franziu a testa. Quando analisado friamente, era esperado que mesmo uma Entidade ou uma Autoridade tivessem suas dificuldades ao enfrentar um grande número de pessoas, principalmente quando se falavam dos Minami — uma família que divagava seu poder de batalha usando gelo. Eles eram resistentes e inteligentes, então possivelmente houvera um grande plano por trás para massacrá-los.

Ryota não chegou a pensar muito a respeito, então continuou ouvindo as palavras de Fuyuki.

— De toda forma, eu acabei me encontrando diretamente com Shai, a Autoridade da Insanidade. Eu fui incapaz de detê-lo, mas marquei seu rosto em minhas memórias para me vingar. Entretanto, dentre todos aqueles que foram mortos por suas mãos, eu notei que minha mãe ainda estava respirando. Ainda que os mesmos ferimentos tivessem sido lhe infligidos, por muito pouco, fui capaz de resgatá-la.

A duquesa reimaginou aquele momento com uma expressão difícil. O cenário em que tudo era coberto por névoa, em que haviam corpos familiares espalhados pelos seus arredores e, em seus braços, havia uma mulher igualmente ferida, mas que sobrevivera por muito pouco. A Fuyuki de dois anos atrás abraçou a mãe com lágrimas nos olhos e o coração ferido, então chorou baixinho enquanto ouvia os gritos e barulhos se tornarem o mais profundo silêncio com a fuga dos invasores.

— Como a nova matriarca, contratei a melhor curandeira de Thaleia para cuidar de minha mãe. Entretanto, Eliza não foi capaz de diagnosticar o que aconteceu com ela, e demandamos meses para encontrar o que poderia ter acontecido com seu corpo. Afinal, não era um coma comum e estávamos lidando com os poderes de uma Entidade… Eu temi que, conforme os rumores sobre os poderes da Insanidade se espalhavam, minha mãe pudesse ter uma morte lenta e dolorosa, sofrendo em sua mente com os maiores pesadelos.

Foi o mesmo tipo de preocupação que Ryota gerou em seu coração com Jaisen, mas, por muita sorte, ele acabou sobrevivendo e despertando relativamente cedo. Em contrapartida, Coldy não. 

— Entretanto, segundo os testes e diagnósticos futuros que fomos fazendo ao longo do tempo, descobrimos que não se tratava de nada disso. Na verdade, o sono de minha mãe não era assim uma condição tão incomum.

— O quê?

— Nós apelidamos essa condição de Adormecidos, entretanto, ela é rara o bastante para pessoas que apenas estiveram presentes em um evento traumático e ameaçador o bastante pudessem gerar tais consequências em suas mentes… Ou seja, para que pessoas se tornem Adormecidos, elas precisam entrar em contato com uma Entidade.

Ryota franziu a testa.

— O que isso significa? Até onde sei, Zero não esteve em contato com nenhuma Entidade, e o que causou… O que causou tamanhos estragos foi uma Autoridade, certo?

Fuyuki assentiu, apertando os braços cruzados.

— O que descobrimos a respeito dos Adormecidos, que possuiam em comum, eram alguns resultados de saúde complicados: Eles sofreram um gasto alto de chi ao ponto de precisarem repousar por longos períodos; suas mentes foram expostas a uma circunstância dolorosa demais ao ponto de permanecerem isolados em seus próprios casulos para segurança; ainda que estejam em coma, eles não precisam se alimentar ou ingerir líquidos para se hidratarem, e também não produzem excreção. É como se seu corpo entrasse em um estado de autossuficiência, paralisando no tempo.

— Eu… Não entendo direito — Ryota piscou, confusa, olhando para Zero.

Eliza se encolheu no lugar, mas a duquesa deu um passo adiante, aproximando-se um pouco mais da cama do rapaz.

— Normalmente, uma pessoa em coma precisaria se readaptar, então são conectados a ela aparelhos para que sejam monitorados o trabalho interno de seu corpo. A alimentação também é feita através de aparelhos, de sondas para ser mais específica… O que estou tentando dizer é que as condições dos Adormecidos são totalmente diferentes, e isso implica mais uma consequência vital para uma pessoa que entra em contato diretamente com uma Entidade, ou um Aprosopo.

— Espera, então… É como se os dois tivessem algo em comum que fizesse mal para nós?

— Mais ou menos. Ainda é difícil de dizer, pois não podemos detectar através de diagnósticos, mas desconfiamos que esteja relacionado ao poder que esses dois possuem. E, combinado ao stress emocional e exaustão corporal de alguém, pode levar uma pessoa a este estado.

Ryota e Fuyuki olharam para Zero outra vez. A garota respirou fundo, sentando-se no colchão, enquanto pensava a respeito do que a duquesa tentava lhe explicar. Ela não era realmente muito inteligente, mas conseguia deduzir para onde aquela conversa estava indo. Em especial, muito a fazia se perguntar com que propósito aquelas coisas aconteciam, e como. Eram perguntas que iam e vinham em ciclos, e percebendo que não haveria resposta para elas, apenas decidiu deixá-las de lado por enquanto.

— … Mas você disse que ele tem um tempo, não é? Sua mãe não passou pelo mesmo?

— Felizmente, não — Fuyuki suspirou — Este é o primeiro caso que encontramos.

— Mas como podem ter certeza? Digo, o que diferencia o Zero dos outros Adormecidos?

A duquesa afinou os olhos.

— É um pouco complicado de explicar, mas… — soltou outro suspiro — … Seja o que for que as Entidades e Aprosopos tenham em comum para poderem afetar nossos corpos, ele adentra como uma espécie de veneno que suga nosso chi. 

Ryota estremeceu da cabeça aos pés e, inconscientemente, tocou o rosto de Zero para sentir se ele estava quente, mas parecia uma temperatura relativamente normal. O que veio à sua mente foi a situação causada pela marca do voto, em que seus corpos também passaram por algo semelhante. Após um longo período, eles sentiram uma queimação forte o bastante para quase desmaiá-los de dor, mas aquilo acabou sendo ainda pior para Edward que para ela.

— Os Adormecidos, assim como nós, geram chi naturalmente, mas em uma velocidade muito menor. Portanto, quanto mais o “veneno” está dentro deste corpo, mais chi será sugado e mais fraca a pessoa fica. E, aparentemente, a quantidade dentro de Zero foi muito maior que o comum, e ele não será capaz de suportar tamanha pressão por tanto tempo.

A garota cerrou os punhos e ergueu os olhos para a curandeira.

— Eliza está trabalhando em uma forma de acelerar o processo de produção de chi em seu corpo, mas apenas isso. Não podemos passar muito de nós mesmas mais que o necessário, e são poucos os doadores que podemos encontrar.

Era natural, afinal. Passar sua energia vital para outro ser era diferente de uma transfusão de sangue ou uma doação de órgãos. No fim das contas, mesmo que seu corpo produzisse mais, era necessário uma quantidade específica para se manter funcionando, e possivelmente não seria o bastante para ajudar Zero. Entretanto, saber que poderiam haver doadores já deixava Ryota um pouco mais aliviada, e o trabalho de Eliza sempre era profissional ao máximo. Por um segundo, se sentiu envergonhada de ter gritado com ela anteriormente, mas o clima não deu espaço para que pudesse se desculpar, então apenas ficou em silêncio quanto ao tópico.

— … Quanto tempo ele tem?

— … Desconfiamos que, mesmo com doadores e os esforços de Eliza, e talvez as resistências do próprio Zero, apenas perto de um ano. 

O corpo de Ryota congelou, e seus olhos baixaram para o rosto do rapaz inconsciente. 

— Ainda são expectativas baixas, mas elas podem aumentar conforme o tempo decorrer, e claro, se Eliza conseguir encontrar uma forma de mudar isso. Enquanto temos este tempo para encontrar uma forma de salvá-lo, eu estou trabalhando em pesquisas sobre as Entidades e esse poder que possuem, mas ainda não fui capaz de descobrir muito a respeito… Sinto muito.

— Por que está se desculpando?

— … Você estava certa em suas palavras. Eu estive sendo egoísta ao manter as informações apenas para mim, e estou disposta a me redimir e tentar encontrar um caminho para salvar Zero… Ele também é meu amigo, afinal.

Fuyuki esperava que aquelas palavras gerassem algo dentro da garota, mas Ryota nem ergueu a cabeça. Enquanto fazia uma expressão de decepção e tristeza, elas ouviram um baque de alguém se ajoelhando, e ambas ergueram a cabeça quando Eliza se encolheu. Ela havia dado a volta na cama e parado diante de Ryota, colocando joelhos e a testa no chão, a mão direita acima do coração enquanto tremia.

— … Me perdoe…! Me perdoe…! Me perdoe…! — ela chorava sem parar, fungando — Eu… Não fui capaz de salvá-lo…! Eu…! Cheguei tarde demais…! Eu…! Eu não pude salvar… Nem ao Zero… Nem ao senhor Jaisen…! M-Me perdoe…! Por favor…!

Fuyuki, vendo que a curandeira havia se colocado em tal posto, fez uma expressão ainda mais dolorosa e baixou o rosto. Ela havia tentado evitar mencionar a curandeira, percebendo que se sentia profundamente culpada por muitas coisas que vieram a acontecer ao longo daquela semana da coroação, mas ao vê-la tomar a dianteira, sentiu-se ainda pior. Não poderia impedi-la de tentar receber a responsabilidade, embora lhe doesse.

Ryota desceu da cama e olhou para Eliza, que tremia aos seus pés, pedindo perdão. Após um instante de silêncio, disse:

— Erga a cabeça. A culpa não foi sua. 

Mas mesmo assim, ela continuou a chorar e implorar. Então, a garota de cabelos negros se ajoelhou, puxando delicadamente suas mãos debaixo do corpo para segurá-las, e, então, a curandeira ergueu a face cheia de lágrimas na direção da outra.

— Eu estou muito grata que tenha se esforçado tanto para cuidar de mim e do Zero. Obrigada.

Apesar de serem palavras ditas com um ar suave, Eliza imediatamente viu que não havia nada assim na expressão de Ryota. Afinal, apesar de seu sorriso curto e olhos semicerrados, havia um ar pesado que não poderia ser ignorado. A curandeira não soube dizer se era direcionado a ela ou à própria Ryota, então apenas fungou. Foi como um sorriso amarelo, e aquele calor não chegou aos seus olhos azuis escuros sem vida. Talvez ela estivesse tão cansada daquilo tudo que lidar com a curandeira apenas fosse mais uma parte que precisasse colocar em prática.

— Na verdade, preciso me desculpar por ter sido rude com você, antes. Você não fez nada de errado. Nada.

Ryota não sabia dizer se aquelas eram de fato palavras que aceitavam os pedidos de perdão da curandeira ou apenas outro mantra para a própria garota, que tentava manter-se equilibrada em meio a tantas informações.

Qualquer que fosse a resposta para aquele vazio profundo que sentia em sua alma, em seu coração que não mais existia, em seu autocontrole que fora pisoteado até se tornar o nada, Ryota decidiu que apenas colocaria um sorriso no rosto e falaria aquilo que precisava dizer. Ela apenas não soube que aquela expressão triste, solitária e dolorosa era ainda pior do que qualquer grito que pudesse ter lançado contra o rosto de Eliza, que sentiu-se ainda pior ao vê-la perdoá-la com tamanha sutileza, engolindo mais uma vez os sentimentos que não podiam sair para lugar algum, e apenas se bagunçavam cada vez mais.

Ainda segurando as mãos dela, Ryota puxou Eliza para ficar de pé e a soltou. Então, a garota olhou para a janela, para o jardim que era agraciado com a luz do sol, e escondeu a expressão por trás dos cabelos negros.

— … Podem me deixar sozinha um pouco?

Fuyuki franziu ainda mais a testa.

— É claro.

E então, colocando uma mão no ombro da curandeira, que chorava baixinho, a duquesa levou para fora ela e seu guardião, que o tempo todo apenas permanecera em silêncio, como se fizesse parte da própria sombra. 

Quando, por fim, fecharam a porta, Ryota olhou para Zero e se aproximou de sua cama. Deu um, dois passos, e caiu de joelhos ao lado de sua cama, as lágrimas escorrendo por seu rosto exausto sem parar. Ela procurou a mão direita dele sobre os cobertores e a segurou, baixando a cabeça enquanto se lamentava e chorava até que nada mais dentro de si restasse.



Comentários