Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 8 – Arco 3

Capítulo 104: Apatia

Em geral, os momentos em que Ryota abria os olhos após um longo período inconsciente eram acompanhados de uma boa dose de informações que se acumulavam em sua mente, resultando em uma dor de cabeça constante. Dormir nunca foi uma tarefa fácil para a garota, que era atrapalhada por seus pesadelos e pensamentos intrusivos demais, mas quando o caso era logo após um longo combate ou conflito que a levou a cair pesadamente na escuridão de sua mente, sabia que despertaria ao som de vozes, informações sobre os ocorridos recentes e a necessidade de algo deveria ser feito.

Entretanto, daquela vez, quando os olhos azuis escuros olharam para o teto branco com detalhes dourados, nada lhe chegou aos ouvidos. Nem uma voz, nem um único som de passos. Também não houve a carga de pensamentos que esperou sua mente lhe trazer, embora a dor de cabeça ainda estivesse presente. Foi como se um grande muro branco estivesse diante de si, impedindo-a de encontrar as respostas que precisava.

Onde eu estou?

Conforme os raciocínios se estabilizaram bem devagar, a garota sentou-se na cama acolchoada e levou a mão direita à testa, fazendo uma careta.

Meu corpo dói, mas não há ferimentos.

Ela desceu a vista para seus braços, para seu torso, pernas e pés, percebendo que estava tudo no lugar. Não haviam faixas ou quaisquer indícios de que havia passado por algum problema no passado. Entretanto, sua expressão permanecia exausta, os olhos para baixo, como se estivesse prestes a dormir, e o peso que estava em seus ombros a fazia curvar o corpo.

Por que estou aqui?

Ela voltou sua atenção para o quarto que reconheceu como aquele que usou para passar todas as noites no palácio — estava inteiro. Parecia que havia despertado de um longo pesadelo, mas a luz do lado de fora das cortinas indicava que era dia.

O que… Aconteceu? Por que… Não consigo me lembrar?

A cabeça dóia quando tentava varrer em busca das memórias do que poderia tê-la levado até ali, mas Ryota se sentia cansada demais para isso. Era uma dor insuportável o bastante para afetar sua visão, e ela notou que estava enxergando dobrado.

Mas mesmo com essa impressão inicial, a garota virou seu corpo e desceu da cama, imediatamente sentindo seus joelhos cederem. Por pouco, não caiu, mas se apoiou na parede. Ela estava fraca demais, e sentia como se um grande buraco tivesse sido deixado em seu corpo… Em sua alma… Ou, em quê? O que estava faltando? Por que algo parecia tão errado?

Tateando pelas paredes em busca de equilíbrio, rumou na direção do espelho ao qual usava para se ver todas as manhãs antes de sair. Ela se viu várias e várias vezes nele, conferindo se sua aparência estava apresentável para andar pelos corredores e encontrar seu mestre, o príncipe.

Quando alcançou a poltrona ao qual sentava diante do espelho para as criadas poderem arrumar seu cabelo, ela visualizou sua aparência e soltou um ar de surpresa. 

Estava terrível.

O corpo, que antes tinha algumas curvas, tornou-se magro o bastante para quase não aparecer debaixo do pijama constituído por um grande vestido de inverno com mangas. Seus cabelos negros estavam uma bagunça completa, parecendo ter crescido um pouco desde a última vez que conferiu. Haviam marcas profundas abaixo de seus olhos — estes que, não importava o quanto procurasse, não encontrava um único brilho de vida neles. A pele branca, como se não visse o sol há dias, era assustadora. Ryota sentiu como se visse um fantasma ao invés daquela pessoa cheia de energia que costumava ser.

— ... O que… É isso? — com a voz arrastada, observou de perto do espelho algo nascendo timidamente de sua raíz. Eram… Fios brancos?

Ryota piscou duas vezes para a própria aparência, ainda sem entender o que estava acontecendo, quando a porta repentinamente se abriu. Quem entrou foi uma menina de cabelos azuis e expressão abatida, parecendo pensativa enquanto carregava uma pequena caixa com o que deveriam ser instrumentos médicos.

— … Ah! — Eliza soltou uma exclamação e deixou tudo cair no chão, fazendo um grande barulho. Entretanto, ela não se importou e apenas encarou, chocada, para a pessoa diante de si, que piscava com uma lentidão surpreendente — … V-Você… Despertou…!

Por alguma razão, aquelas palavras lhe causaram um arrepio profundo.

Os olhos da curandeira encheram-se de água e lágrimas escorreram por seu delicado rosto. Ela levou as mãos para a boca, como se contivesse as próprias emoções, e então correu para abraçar Ryota. A garota, em reflexo, nada fez, e apenas a observou, sem devolver o ato.

— G-Graças aos deuses…! — fungou ela, limpando o próprio rosto, ao que Ryota piscou, ajudando-a a enxugar as lágrimas — Eu estava tão preocupada…! Achei que…! Talvez, mais alguém teria…!

Eliza não dizia coisa com coisa, o que fez Ryota ficar um pouco perplexa. Ao contrário das outras vezes, em que a curandeira apenas parecia feliz por estar viva, dessa vez era como se um desespero profundo a amargurasse, e tamanha surpresa emergisse naqueles sentimentos. Ela parecia estranhamente sensível e, por isso, a garota de cabelos negros empurrou delicadamente seus ombros para trás, afastando-a de forma que pudesse vê-la.

— … Liz… Eu… — Ryota falava com uma lentidão, uma exaustão tão grande que a fazia quase desistir de pronunciar aquelas palavras — … Não sei o que está acontecendo. Eu… Não consigo me lembrar de nada… E a minha cabeça está doendo… 

Era difícil formular as prioridades de suas perguntas, mas a curandeira, ao ouvi-la, expressou choque. 

— Liz?

— … Vamos tomar um banho, antes? Eu te ajudo.

Sob circunstâncias normais, Ryota teria feito uma careta e indagado o que havia de errado para ela propor algo tão íntimo — afinal, era Eliza. Era uma menina esforçada em seu serviço, mas que diante de situações nada profissionais, demonstrava timidez e era sensível ao máximo. Mas, independentemente de qualquer coisa, sentiu-se cansada demais para perguntar, então apenas permitiu que a curandeira concedesse seu pedido. 

Como Ryota era incapaz de andar sozinha, Eliza a apoiou e levou até a banheira. Ajudou-a a se banhar e lavou seu cabelo. A água quente adentrava seus poros e a fazia se sentir relaxada demais, quase como se pudesse voltar a dormir. Entretanto, a dor de cabeça a impediu de apagar, então Ryota apenas acompanhou Eliza quando esta a levou de volta ao quarto e ajudou-a a se vestir.

Ryota não se perguntou onde estavam suas vestimentas de guardiã ou suas roupas casuais, como a jaqueta vermelha; ela apenas permitiu que Eliza a conduzisse a usar um vestido de inverno, com golas e mangas forradas, bem como uma legging preta e uma bota azul da mesma cor do vestido e de seus olhos. Ela penteou seus cabelos e os arrumou.

… Ué? Por que eu sinto… Que o clima não está assim tão agradável? Por que… Ela pentear meu cabelo assim… Parece um pouco nostálgico?

Ryota sentiu que algo parecido havia acontecido antes, com outra pessoa, mas não conseguiu se lembrar.

— Então… Até onde você se lembra, Ryota?

— Eu me recordo… Do início da coroação. Lembro vagamente do aconteceu, desde então, mas… — ela levou a mão para o lado direito do rosto, sentindo dor.

— Não se esforce, vamos devagar — Eliza terminou de mexer em seu cabelo e sorriu com carinho, mas parecendo tão cansada quando seus gestos lentos mostravam — Na verdade, ocorreram… Muitas coisas desde a coroação, que foi há um dia e meio.

— … Um dia… E meio?

Eliza assentiu.

— Como você perdeu muito sangue e muito chi, seu corpo foi levado à exaustão máxima e permaneceu em repouso durante todo esse tempo… Desconfio que a pressão mental também foi relevante para seu apagamento de memórias.

— … Pressão mental?

— Não se preocupe, eventualmente as memórias voltarão. Na verdade… 

Eliza colocou a mão em seus ombros e a consolou, mas Ryota sentiu que seu calor era acompanhado de um ar difícil de respirar.

— … Preciso levá-la para todos a verem. E, além disso, você ainda não comeu nada, não é? Com certeza, seu corpo ainda deve estar bastante fraco.

— Ah, sim… Mas, por alguma razão, não estou sentindo fome.

Parecia quase um absurdo ela dizer aquilo, mas a curandeira retrucou:

— Ainda que não sinta, deve ao menos se hidratar e manter seu estômago trabalhando. Venha, vou acompanhá-la até a cozinha, e… Enfim, prosseguiremos adiante.

Eliza estava claramente tentando não tocar em certos assuntos, mas Ryota ficou em silêncio e não se importou. Era quase como se seu raciocínio tivesse sido substituído, completamente tirado dela. A parede branca diante de seus pensamentos a impedia de tentar conectar informações.

As duas passaram pelos corredores vazios, um ar pesado atravessando todos com quem passaram. Elas chegaram até a cozinha, onde Eliza entrou e voltou com um prato com uma sopa e pão fresquinhos. Ryota mal triscou em nenhum deles, mesmo com a curandeira a forçando a comer colocando comida em sua boca. Ela conseguiu beber um pouco de água, mas parecia que aqueles alimentos desciam sem chegar a lugar algum.

Por alguma razão, nem o cheiro ou o sabor deles atiçou nada em Ryota. Foi como se seu estômago não existisse mais, não demonstrando reação a nada, o que a impedia de sentir qualquer prazer pelo ato da alimentação. Foi desagradável, mas ela não expressou aquilo em voz alta.

Foi quando Eliza finalmente a guiou na direção das escadarias, onde passaram algum tempo andando antes de entrarem em um salão de visitas. Sentada em um sofá, com o rosto apoiado na mão, olhando para a lareira que queimava diante de seu par de olhos verdes, estava Fuyuki. A duquesa, que parecia pensativa, ergueu sua atenção para as duas que se aproximavam e sua expressão se tornou choque. Ela encarou Ryota, que se aproximou a passos lentos, e as duas ficaram em silêncio se olhando.

Por um instante, Ryota achou que a duquesa fosse chorar.

Entretanto, ela sacudiu a cabeça e inspirou fundo, como se controlasse as próprias emoções antes de se colocar de pé e caminhar na direção delas.

Ryota abriu a boca para dizer algo, mas travou quando Fuyuki apenas lhe deu um abraço forte. Mais uma vez incapaz de retribuir aquele calor, a garota apenas observou a duquesa expressar sua felicidade em vê-la bem através de uma ação não muito parecida com o que normalmente faria. Assim como Eliza, ela parecia estranha.

Ao se afastar, a duquesa segurou o rosto de Ryota e franziu a testa.

— Como se sente?

— … De certa forma, vazia.

— A Ryota… Perdeu as memórias da coroação — explicou Eliza, timidamente, para a Fuyuki que se sobressaltou — … Mas acredito que ela as recuperará em breve… Apenas, precisamos…

Eliza apertou os lábios e se encolheu. Fuyuki, parecendo entender o que aconteceria dali em diante, olhou no fundo das íris azuis escuras da garota e falou, ainda segurando seu rosto:

— O que deseja saber?

— … Onde estão todos?

Parecia que aquela era a pergunta mais difícil a ser respondida pela expressão dura da duquesa. Até que, após um silêncio acompanhado apenas do estalar da madeira da lareira, ela respondeu:

 — A coroação aconteceu há quase dois dias, mas o evento nunca chegou ao seu fim. Houve uma invasão na capital e todos nós precisamos nos ocupar em proteger os civis. Lembra-se?

Ryota assentiu bem devagar, piscando.

— A corte, após uma tarde e noite inteiras terminando as patrulhas na cidade ao lado da guarda real, encerrou suas atividades durante a madrugada com uma última reunião. Todos os líderes das elites retornaram às suas respectivas cidades ontem de manhã, e desde então não paramos para descansar adequadamente.

Era um assunto bastante difícil, e parecia que Fuyuki não havia dormido exatamente desde então.

— Por enquanto, o caos durante a coroação foi interceptado, mas as pessoas ainda estão com medo. Houveram muitas baixas, e alguns civis encontraram as criaturas e os restos de suas vítimas. Está sendo… Complicado.

Não parecia que Ryota se importava tanto assim com aquele assunto, mas a duquesa continuou falando mesmo assim. Ela se afastou da garota, passando a mão de seu rosto para seu cabelo e ombro, finalmente dando-lhe espaço. Foi quase como se estivesse realmente sentindo falta dela por tanto tempo, e olhou-a de cima a baixo com um ar pesado.

— Eliza esteve cuidando dos feridos e desde então está pesquisando a respeito daquelas criaturas… Dos mors e dos espíritos artificiais. Entretanto, ainda existe muito que não sabemos… Dentre eles, a origem dos invasores e o que exatamente desejavam invadindo a capital real dessa forma.

Ryota fez uma expressão pensativa, e sua mente vagou até a luta com Fanes, na torre mais alta.

— Sua Alteza, desde a coroação, precisou de um tempo isolado, mas retornou às suas atividades nesta manhã. Ele está bem, assim como Marie e Luccas.

Ryota assentiu para o seguro dado por Fuyuki.

— … Siga-me. Eu preciso lhe mostrar… Algo.

A duquesa deu meia volta e começou a andar, ao que as duas garotas a seguiram. Não demorou para que elas chegassem até uma porta que levava a um cômodo silencioso, e Fuyuki colocasse a mão na maçaneta, hesitando.

— Você… Realmente não se lembra de nada, não é?

— … Sinto que minhas memórias estão retornando devagar, mas… 

Fuyuki trocou olhares com Eliza, que virou-se para a janela, contendo os soluços das lágrimas com a mão. Ryota nem percebeu a curandeira e apenas piscou, lentamente.

— Eu… Verei algo horrível, não é? — Fuyuki franziu ainda mais a testa — Tem algo que estou me esquecendo, muito importante, mas não consigo me lembrar. Sinto que encontrarei as respostas aqui, então… 

Fuyuki segurou a mão de Ryota e a apertou, então se afastou fechando os olhos, como que dizendo para ela entrar.

E, então, ela deu um passo à frente, girando a maçaneta para abrir a porta. Fuyuki a acompanhou para dentro do quarto mal iluminado, deixando Eliza, abaixada e encolhida, chorando para trás.

Era um quarto que Ryota reconheceu como um dos cômodos disponibilizados aos membros da nobreza. Ela reconheceu por seu tamanho e calor que queimava da lareira. Seus olhos vagaram para a cama, e a pessoa deitada sobre ela. Com o corpo coberto por uma manta e olhos fechados, jazia Zero.

Como em um estalo, as memórias retornaram, e seu corpo paralisou. Fuyuki notou a alteração corporal da garota e a observou dar um, dois passos na direção da cama, os olhos azuis vidrados no rapaz antes de cair de joelhos no chão. O ar fugiu de seus pulmões e começou a arfar, os olhos se arregalaram enquanto a mente compreendia o cenário diante de si. A garota, com a vista embaçada, recordando-se dos horrores da igreja, das palavras ouvidas e da cena que assistiu, compilou tudo aquilo como um abraço do desespero.

A duquesa, um pouco temerosa em se aproximar, mas com uma expressão igualmente difícil, andou até o lado dela.

— Ryota… — tocou o seu ombro, vendo-a tentar respirar pela boca, mas sem conseguir.

Ryota tapou a boca quando o vômito ameaçou subir por sua garganta. Ela se lembrava dos dedos que eram arrancados, da dor de estar com o corpo congelado, mas o sangue quente escorrendo. Recordou-se das palavras que outrora sua mente se recusou a compreender. Lembrou-se de toda a tortura, toda a dor, todas as lágrimas que derramou e o quão profundamente sua alma fora perfurada, ganhando uma grande mancha escura.

Ao mesmo tempo, lembrou-se das outras mortes. Das crianças que foi incapaz de salvar, dos mors comendo seus corpos, seus gritos de dor, lembrou-se do desespero de Edward ao ver o pai despencar do palácio, lembrou-se da morte de Albert enquanto ouvia suas últimas palavras. Recordou-se de tudo aquilo que fez sua mente tentar esquecer, de todo o sofrimento que fizera desejar apenas desaparecer… E entendeu a razão do grande muro branco diante de suas memórias.

Após um momento para conter a respiração e processar tantas informações, houve silêncio.

Do lado de fora, ainda fungando, Eliza colocou-se de pé e olhou para dentro do quarto.

— … O que vocês fizeram com o vovô?

A pergunta foi dita com uma rouquidão muito próxima a um tom feroz, mas Fuyuki, determinada a não ceder diante das emoções, respondeu com seriedade:

— Velamos o corpo. 

Era uma resposta esperada, afinal, não poderiam deixar o cadáver de alguém exposto ao mundo por dois dias. 

— Planejamos prosseguir com seu enterro durante a tarde.

O silêncio como resposta foi duro até para a duquesa, que olhou para a curandeira na porta, temerosa, e inspirou fundo. Fuyuki sabia que precisava ser forte, precisava respeitar os sentimentos da garota e auxiliá-la naquele momento difícil. Ela havia passado pelo mesmo ao longo de dois anos, afinal. Portanto, como uma fortaleza, precisava receber e entender o que a garota estava passando.

— Ryota, não precisa se preocupar. Estamos cuidando de tudo o que for necessário, e muito em breve Eliza-

— “Cuidando de tudo o que for necessário”?

Fuyuki não se abalou diante da repetição de suas palavras com sarcasmo, vendo a garota colocar-se de pé diante dela, ainda de costas.

— Sim. Na verdade, o Zero-

— O ZERO ESTÁ MORTO!

Com violência, Ryota se virou para segurar a gola da duquesa e gritou contra seu rosto, a fazendo recuar um passo, mas sua expressão não se alterou. Ela olhou com calma para a garota que fazia uma expressão de desespero, para as lágrimas que ameaçavam escorrer.

Foi nesse instante que Ryota finalmente compreendeu o que ela mesma havia dito.

E seu mundo desabou.



Comentários