Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 8 – Arco 3

Capítulo 102: Conjurador Intrusivo

No fundo da inconsciência, Ryota se sentia banhada por uma água fria e gosmenta. Era uma sensação terrível, tortuosa, irremediável e grotesca, mas também suportável. Afinal, não havia como gritar, espernear, pedir por socorro, ou se mover um centímetro sequer, fosse aqui ou lá fora. A mente produzia sensações, mas não permitia ao indivíduo sequer ter a chance de reclamar ou se livrar delas. Então, tudo o que restava era aceitar a dor e o desprazer enquanto afundava cada vez mais na própria loucura, na própria tristeza, nas próprias lágrimas e raiva, no próprio orgulho.

Ainda sem saber o que ocorria, seus ouvidos captaram o som de correntes. Era um tilintar bastante familiar e que lhe causava arrepios. Embora os olhos mal se abrissem às vezes, e, quando o faziam, apenas enxergava uma grande borda negra e passos em um piso que fazia ecoar onde estava, ela logo apagava e retornava ao mundo frio e desconcertante que era a inconsciência.

No entanto, as coisas mudaram. De repente, o mundo não era mais frio, sofrido e solitário. Ele se tornava caloroso, envolvido por um jorro que escorria por seus braços. Um líquido quente que fazia derreter, como lava, como fogo, como queimar viva. Algo entalou no fundo de sua garganta, mas, por mais que quisesse, não saía. O grito de dor, o berro de desespero que jamais seria ouvido, pois a voz não tinha som.

Se não era possível gritar para expressar dor, como lidar com tamanha agonia?

Com a pouca luz do salão e a escuridão tentando tomá-la novamente, a garota virou o pescoço para o lado esquerdo, deitada sobre algo duro e áspero. Sua pele roçava contra aquela coisa… O que haviam feito com suas roupas? Naquele frio, onde podia ver sua respiração frágil condensar, era engraçado que apenas um pano velho cobrisse seu torso, dos seios as coxas. Talvez estivesse tão, mas tão frio, que sequer sentia frio. Era engraçado, muito engraçado. Não sentia seus pés, nem seus dedos.

Mas a queimação nas palmas das mãos a mantinha meio acordada, e o desespero do sofrimento irradiava em seu rosto pálido e quase sem vida enquanto o líquido vermelho espirrava em seu rosto, escorrendo grosseiramente do grande buraco em sua mão, alcançando o chão e correndo por seu braço esticado. 

Recordava-se, então, de ter sentido muito calor no estômago. Lembrava- se ter visto um braço atravessando seu torso, a mão fechada em um punho, e fora chocante o bastante para que ela sequer conseguisse gritar ou chorar de dor. Agora, no entanto, foi como se todas aquelas sensações brotassem de uma única vez, e seu berro de dor silencioso jamais foi ouvido ou expressado. 

Na escuridão que engolia luz e sons, Ryota se debateu em sofrimento eterno.

Estava quente. Quente demais. Derretendo, e então congelando, queimando, afundando… As sensações se misturavam em tudo e nada, e mais uma vez Ryota caiu no abismo da inconsciência, mas logo recobrou os sentidos quando a dor retornava em uma pulsação no ferimento. Isso se repetiu várias e várias vezes. Esquerda, direita, então embaixo, também esquerda e direita. 

Era semelhante ao que havia sofrido certa vez, em uma sala escura ao lado de um assassino que buscava por respostas que jamais encontraria. E, da mesma forma que agora, ela havia relutado sozinha. Mas, dessa vez, parecia infinitamente pior.

A dor e os sentidos… Não faziam sentido. Era engraçado. Estava rindo, seca, sem olhar para nada, mas olhando para tudo, ouvindo coisas que poderiam ou não serem reais. Figuras andavam para lá e pra cá, ou talvez fossem apenas uma, e o tempo estivesse completamente quebrado. Eram como sombras parando, acelerando absurdamente, então andando tão devagar que parecia durar uma eternidade.

Ela estava rindo. Agonizava, chorava, então ria. Queimava, sofria, então ria. E ria, de novo e de novo.

— Está fazendo uma cara bastante desprezível, não acha?

A voz que não vinha dela, mas de outra pessoa, era de alguém jovem. Com sangue, escuridão e dor irradiando de seus olhos, os glóbulos vermelhos e marcados com o sofrimento, era difícil dizer como ele era. 

— Hein? Não acha? Hmm?

Seguraram seu cabelo, agora completamente sujo e bagunçado, e bateram contra a parede dura e fria. Uma, duas vezes, conforme ele falava, esperando uma resposta, grunhindo.

Então, ele estalou a língua, a soltando por um momento.

— … Nenhuma resposta, hm? 

Algo escorreu pelo seu rosto quando ele cuspiu.

— Disseram-me que a nova índigo seria alguém mais promissora, mas parece que estavam errados, hm? 

O rapaz que chupava um pirulito estalou a língua quando suas expectativas foram por água abaixo e endireitou o corpo. Na visão dela, haviam apenas cores borradas, pois a visão não conseguia se tornar clara. Entretanto, aquele era um garoto com uma aparência um tanto quanto chamativa. Seus cabelos rosados escorriam até o pescoço com longas mechas, seus olhos cinzas pareciam um tanto quanto impacientes por trás dos óculos redondos. Assim como uma certa Entidade, suas íris não eram circulares, comuns, mas brancas e em formato de cruz. Mas, para além dessas características estranhas, de seus brincos de cruz, de duas marcações vermelhas abaixo dos olhos, de correntes presas na orelha, e de suas roupas brancas com azul que lembraram vagamente vestes de um arcebispos… Havia um pequeno par de chifres azuis crescendo em sua cabeça.

Se aquela não era a pessoa mais visualmente extravagante que viu na vida, Ryota estava completamente maluca. Entretanto, sua mente estava em cacos, incapaz de processar seus arredores ou a pessoa diante de si que batia a sola do pé no chão, impaciente.

— Que saco, estou apenas perdendo tempo aqui — estalou a língua outra vez — Tomar a dianteira em trabalhos sujos como esse realmente cansa.

O garoto baixou os ombros com uma expressão carrancuda e olhou de cima a baixo a jovem que estava com o corpo estendido diante de uma plataforma na vertical, os olhos sem vida encarando o chão, a cabeça pendia sob seu ombro.

Sob leis da natureza, os seres humanos normalmente não conseguiriam ficar parados na vertical daquela forma sem estarem com os pés no chão. Entretanto, naquele momento, Ryota estava exatamente daquela forma, observando, sem entender, o próprio corpo preso em algo que fazia sangue escorrer por seus membros, pingando no chão ininterruptamente. Com os dois braços abertos na altura do ombro e as pernas puxadas para baixo, esticadas, era quase como se tentassem rasgá-la ao meio de cima para baixo pela força que a mantinham parada.

O garoto a observou debaixo das escadas que levavam ao altar da velha igreja. Agora que o dia havia passado, tornando-se noite, e não havia energia elétrica naquele local, velas acendidas em castiçais estavam dispostas ao redor da garota presa por fios cortantes brancos. Naquele cenário, era quase como se ela fosse uma espécie de sacrifício.

— Desperte — ordenou o rapaz, subindo as escadas e parando diante da garota. Não houve resposta — Sei que está consciente, então desperte!

Ao erguer seu tom de voz com irritação, ele distorceu o rosto e, imediatamente, uma dor alucinante fez Ryota soltar um grito contido dentro da própria garganta. Saliva escorreu por seus lábios, assim como sangue quente passou por seu braço e atravessou todo o seu corpo, composto apenas por uma única vestimenta leve naquele frio de doer os ossos. A origem do ferimento, o dedo indicador arrancado, caiu no chão e fez tudo se aquecer, forçando-a a se remexer onde estava.

— Olhe para mim quando eu estiver falando — ele segurou seu queixo, erguendo-o na direção de seu rosto. Os olhos dela estavam arregalados, mas pela exaustão e falta de sentidos, se reviraram um pouco para trás, tremendo — Ainda não foi o bastante, hm?

— … Ah…

— Sabia que havia despertado — ele abriu um sorriso que mostrava os dentes perfeitamente brancos, ainda com o pirulito passando por sua língua — Responda-me, fêmea, e lhe pouparei um dedo.

Ryota não conseguia virar o rosto para ver, mas três dedos haviam sido arrancados de suas duas mãos. Um da esquerda, dois da direita. Aqueles deveriam ter sido a forma dele de tentar acordá-la após o estupor, pois meios convencionais não funcionavam.

— Você despertou seus poderes há um mês, mas foi catalogada como índigo há mais tempo. Conhece o significado desta palavra?

Silêncio. O rapaz franziu a testa.

— Aparentemente, ao contrário daquela outra, as suas cores não surgiram após um evento traumático, mas estavam presentes desde o início — refletiu ele, ainda segurando o rosto dela e balançando para os lados, tentando mantê-la consciente — Qual foi sua primeira dor?

— … D-Do… — era incapaz de pronunciar uma única palavra corretamente, e mais saliva escorreu, fazendo o rapaz de cabelos rosa expressar nojo — GAAAAAAAAAARGH! 

Ryota soltou outro grito de dor quando mais um dedo foi arrancado, caindo aos seus pés, e sangue quente a fez arregalar os olhos. 

— Quando foi a primeira vez que chorou, hm? Foi durante seu nascimento? Foi quando caiu de bicicleta enquanto aprendia a pedalar? Foi quando queimou as mãos segurando uma forma quente de bolo? Foi durante a perda de seu primeiro animal de estimação? Foi ao presenciar a morte de um ente querido?

Seu corpo se remexeu, e ele abriu um sorriso.

— Uma perda, então, hm? — ele parecia ter o costume de rir com o nariz, puxando o ar, meio rouco — Crianças choram por qualquer inconveniência que lhes aconteça. Recém-nascidos, por serem incapazes de se comunicar, usam as lágrimas e os gritos para demonstrar a necessidade de mudanças; entretanto, aquelas que envelhecem e aprendem a linguagem humana, ainda que sejam capazes de falar, optam por expressar suas emoções mais fortes através de um ato tão vil. 

Era quase cômico ele dizer isso vendo a garota literalmente chorando na sua frente de tanta dor.

— Suas ações como reflexo de sua mentalidade frágil me enojam, mas estou surpreso que tenha conseguido chegar tão longe sem quebrar.

Ele falava quase como se a garota fosse uma espécie de brinquedo. E, em verdade, se pudesse mover aquelas linhas que seguravam seu corpo como uma marionete, de fato ela seria.

— Por que continua a relutar com essa vida tão insignificante? Por que chora por aqueles que se foram quando jamais poderão ouvi-la? Por que expressar um sorriso quando não sente felicidade em seu coração? Por que esconder sentimentos aos quais deseja tanto demonstrar? Por que temer a morte daqueles que estão ao seu redor, uma vez que são todos mortais, e eventualmente vão morrer? Por que se importar com eles? Por que se importar consigo mesma? Por que colocar-se em risco por aqueles que são incapazes de entendê-la? Por que se sacrificar por desconhecidos? Por que sofrer por suas mortes? Por que demonstrar tanta compaixão por aqueles que nem conhece? Por que sacrificar-se por amor aos que se firmaram laços, mas que certamente a abandonariam se precisassem escolher entre você e eles mesmos?

As perguntas eram disparadas como uma metralhadora, e Ryota sentiu cada uma delas atravessando seus ouvidos como lagartas, adentrando em seu cérebro para se agruparem como um parasita. Era quase como se seus pensamentos problemáticos ganhassem vida própria, tornando-se aquela encarnação do mal que apenas lhe dizia coisas terríveis.

— Por que não se importar apenas consigo mesma e parar de sofrer? Ou, então, por que não tirar a própria vida ao invés de relutar sozinha por tantos anos? 

Ryota sentiu seus olhos tremerem, e ela ergueu as íris na direção do rapaz, que arqueou as sobrancelhas.

— Mas isso tudo você já pensou, hm? Eu sei disso — ainda com um sorriso vil, ele falava, segurando o pirulito verde com uma das mãos — E, ainda assim, decidiu seguir por este caminho de sofrimento solitário, criando promessas impossíveis, estendendo a mão àqueles que nunca seria capaz de alcançar e culpando-se por eventos que se originaram por mãos que não foram suas.

Ele levou o pirulito aos lábios e passou a língua por ele, e em seguida levou à boca dela, tocando em seus lábios com delicadeza.

— Você sabe que essa é a forma mais patética de se viver — ditou ele, e afundou o pirulito na garganta dela.

Ryota se contorceu no lugar enquanto sufocava. O corpo se contorceu, lutando para expulsar o invasor que ameaçava interromper a passagem de ar. Após convulsionar e lutar, ela finalmente conseguiu colocar para fora o pirulito acompanhado de uma leva de vômito.

— Hm — o rapaz riu com o nariz, afastando-se um pouco dela — Um esforço admirável, mas a que custo? 

— … E-Eu…

— Hm?

— … Q-Q… Q-Quem… É v-vo… Você…?

Ao vê-la, com muito esforço, conseguir pronunciar uma frase completa, ainda parecendo mentalmente perdida, ele arqueou uma das sobrancelhas. 

— Ah, eu não me apresentei. Sinto muito por isso, foi falta de educação minha. 

E então, dando uma risada gostosa, ele colocou a mão para dentro da roupa que possuía uma grande gola. Atravessando-a, Ryota viu vagamente uma cicatriz, como a de uma costura, que passava ao redor de seu pescoço. Em seguida, não reagiu quando o rapaz sacou uma pistola branca e apontou para sua testa.

— O nome de seu conjurador, índigo, é Alles.

E assim, Ryota ouviu um estalo quando o tiro atravessou sua testa e tudo escureceu.

Mas, um instante depois, ela despertou dando um grito e cuspiu algo duro que passava por sua língua — no chão, caíram dois dentes. Sangue escorria por sua testa, atravessando seu olho e pingando de seu queixo. Diante de si, o rapaz de cabelos rosados recém colocava a luva novamente, após ter desferido um soco em sua boca.

— Não perca a consciência, precisamos prosseguir com o rito — Alles, o rapaz que parecia ser tão jovem quanto Eliza, ainda segurava a pistola contra sua cabeça — Diga-me um desejo.

— … An…?

Ele bateu em sua cabeça com uma coronhada.

— Diga-me um desejo — exigiu.

Ryota ainda era incapaz de pensar adequadamente, então se viu em silêncio por um instante. Mas, de repente, os sentimentos dentro dela floriram, representados por cores e formas distintas. Ainda era difícil focar em rostos e memórias concretas, mas… 

— … Casa.

— Ah, era verdade, hm? Um de seus sonhos era voltar para sua casa, que peninha que todos foram queimados até a morte, não é? A senhorita Mania sempre foi um pouco extremista em seus métodos, mas eu a admiro por isso. 

Alles ergueu o rosto dela com a arma, encarando-a. Ryota viu aquelas íris brancas no formato de uma cruz quase como se fossem espelhos, um reflexo de sua própria aparência desprezível.

— Escuta, índigo… Você gosta de churrasco? O cheiro de carne crua lentamente ficando quente, mudando de cor e expressando aquele odor forte? Sabia que não se pode diferenciar a queima de corpos de qualquer outro cheiro de queimado? Eles são igualmente fedorentos, não acha? Ah, mas assar animais abatidos parece um pouco cruel, não? Principalmente depois de terem morrido com uma expressão de desespero ou sofrimento… Uma pena que relutam por suas miseráveis vidas ao invés de apenas aceitarem seu fatídico fim.

Ryota não conseguiu deixar de se lembrar de Aurora em chamas. De como seus passos atravessaram as ruas, as casas que pegavam fogo e caiam aos pedaços, dos corpos que tornavam-se escuros como carvão, pouco a pouco, das expressões de desespero em seus rostos que lentamente se distorciam, a pele queimando e mudando de forma. Os gritos de socorro e desespero ainda podiam ser ouvidos perfeitamente.

— Por que não os salvou? — perguntou Alles, como uma cobra que a circundava — Por que não estendeu a mão para Nessa quando ela pediu? Por que hesitou? No fundo, o seu medo de perder a própria vida a impediu de se sacrificar por outra pessoa, e ela morreu por sua causa. Você chegou tarde, e todos se foram. Você deixou Jaisen quase morrer por seu medo, sua insignificância e fraqueza. Sabia que Zero teria morrido caso a senhorita Mania não estivesse de bom humor? Sobreviveram apenas por sorte, porque ela deixou vocês irem. E todos andaram como patinhos na direção da armadilha, e seriam duas índigos lado a lado, como um coelho numa cajadada só.

Ryota não foi capaz de pensar adequadamente nas palavras dele ou suas origens, pois sua mente estava voltada apenas para o passado. Como se Alles representasse seus próprios pensamentos, conduzindo-os por cenários que presenciou, por vozes que ouviu, por cheiros que sentiu e sentimentos que acreditou ter superado despertando mais uma vez, porém infinitamente mais difíceis de suportar.

Ela começou a grunhir palavras incompreensíveis.

— Você matou a Stella, lembra? Foi você quem não conseguiu estender a mão a tempo de salvar Nessa. Foi você quem matou Ian ao demorar para chegar em Aurora. Foi você quem matou o coração de Jaisen ao não ser capaz de compreendê-lo. Foi você quem desvirtuou os caminhos de Zero e o fez se tornar uma pessoa egoísta, que olha apenas para a pessoa que o manipulou a tal. Foi você quem matou Fanes, o pai de Edward. Foi você quem destruiu o relacionamento deles, e a única chance que possuíam de poder se reconciliar. Foi você quem matou a infância de Marie ao não se sacrificar no lugar dela, ao não impedir Miura de arrancar seus olhos e dar-lhe um trauma que carregará para a vida toda. Foi você quem deu a Luccas um fardo que carregará até o fim de suas vidas, e ele com certeza a culpa por isso. Foi você quem decidiu carregar os fardos dos outros como se fossem seus, e agora sofre à toa, machucando aqueles que se importa. Suas ações e pensamentos apenas ferem as pessoas, seu egoísmo e vontade de ser afagada enquanto sofre por um problema que você mesma criou são enojados, não acha? Você não merece estar ao lado de nenhum deles, afinal, apenas causou-lhes mal. Seus atos posteriores foram compensações, nada além do esperado para que pudessem ao menos lhe olhar com uma dignidade que não possui. Sua existência é um problema, sua vida foi um erro. Sua mãe, se pudesse ver o caminho que trilhou, as pessoas que matou, as ações que geraram uma grande bola de neve e machucaram os corações daqueles que você se importava… Teria vergonha, e desejaria nunca ter lhe dado a luz. Você sempre soube disso, não é? Eu sei, eu sei…

Como uma metralhadora de reflexões, de perguntas em ciclo, Alles segurou o rosto dela e Ryota se viu perdida na cruz de suas pupilas. Estavam com as testas encostadas um ao outro, próximos o bastante para os narizes se tocarem.

— … Você deveria morrer.

Com um sorriso vil, ele depositou um beijo na testa cheia de sangue dela e moveu outro fio, arrancando um dedo esquerdo. Entretanto, ela não gritou. Embora as lágrimas escorressem e seu corpo tremesse pela dor, nenhum som foi emitido de sua garganta. Os olhos ainda estavam abertos, mas sem qualquer noção de seus  arredores. 

Em sua mente, as palavras de Alles se impregnaram como sementes que faziam crescer raízes de dúvidas e certezas maliciosas. Pensamentos que havia decidido deixar de lado, que acreditou estarem errados, agora vieram com uma força impossível de ser combatida.

E Ryota, exausta de dentro para fora, permaneceu parada. E assim ficou quando um som de explosão soou da entrada da igreja, e uma ventania que balançou os arredores ameaçou entrar. As velas nos candelabros quase se apagaram, e Alles voltou suas íris cinzas para a pessoa que entrou a passos pesados. 

Era um rapaz de cabelos violeta que emergiu da escuridão com um ar ameaçador. Havia sangue espirrado por todas as partes de seu corpo, e ferimentos de mordidas e arranhões podiam ser vistos em seus braços e pernas. Entretanto, mesmo machucado, ele se aproximou da claridade das velas a passos lentos — e arregalou os olhos, chocado, ao ver as duas figuras que estavam lado a lado.

— Então, você finalmente chegou, hm? — Alles fez uma pergunta retórica, ainda sorrindo com ar jovial, e seu par de chifres azuis brilhou à luz das velas.



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