Volume 7 – Arco 3
Capítulo 84: Princípios e Desejos de um Simples Pecador
Por que eu estou aqui?
Era o que ele pensava.
Por que ainda continuo vivo? Qual a razão de minha existência?
Por vezes aquilo passava em sua mente.
Em algum momento, será que fui capaz de me sentir vivo de verdade? Ou será que aqueles três meses foram apenas uma ilusão cruel?
Esses eram os remorsos de sua mente.
Há alguma forma de compensar pelos pecados que cometi?
Negativamente, ele mesmo se respondia.
Não existe redenção ou punição o bastante para uma pessoa que abandonou aos outros e a si mesmo.
Ou você priorizava aos outros, ou priorizava a si mesmo. Esse foi o tipo de vida que Jaisen havia aprendido a ter, e desde então a seguia como uma espécie de rotina. Por anos, viveu por si mesmo, egoísta e cego. Mas parecia que, ao abrir os olhos para as pessoas ao redor, um buraco profundo demais para ser completo se abriu. E agora, além de cego, ele se sentia vazio.
Nesse instante, ele havia fechado os olhos, tapado os ouvidos e selados seus lábios aos outros e a si mesmo. Nenhuma prática carnal seria capaz de preencher sua solidão. E Jaisen sentia que nenhuma jornada de reflexão poderia ser capaz de ajudá-lo.
Afinal, ele não apenas havia perdido alguém importante, a oportunidade de ver a luz da felicidade uma única vez… Havia perdido, também, a si mesmo. E quando ambas as partes desapareciam, quando eram descartadas como lixo, o que restaria para ele? Não haveria amor ou ódio. Empatia ou egoísmo. Solidão ou plenitude. Se uma pessoa não possuía emoções para chamar de suas, se não era capaz de dar importância a mais nada… Para que existia, então? Qual era seu propósito naquele mundo, além de vagar como um cadáver preenchido de pecados?
Era quase purgatório. Ainda que as emoções não pudessem ser mais transmitidas, que o mundo tivesse se tornado cinza e sombrio, que as risadas e sorrisos fossem ocultos de seu cérebro, a dor continuava. A consciência de seus erros, de atos que poderiam ter sido diferentes o atormentavam.
Onde foi que errei…? Não, a pergunta mais correta seria… Em que momento comecei a errar?
Ainda que fosse capaz de contar nos dedos, não saberia dizer. Parecia que seu eu havia sido perdido há tempo o bastante para ser esquecido. E se nem ele lembrava, como os outros seriam capazes de fazê-lo? Afinal, Jaisen foi um homem do presente. Ele nunca se esforçou para marcar a vida das pessoas, e certamente já deveria ter sido esquecido.
… Eu sou um pecador. Pecadores precisam de penitências. Mas se nenhuma penitência do mundo é capaz de limpar minha alma, então o que eu faço?
Não era sobre compensar suas ações ao mundo, porque ele pouco ligava para o mundo. Era sobre si mesmo. Mas se ele ainda pouco se importava com o seu “eu”, tudo o que fazia era uma mera hipocrisia, certo? Esperar que outros pudessem julgá-lo, para se sentir bem. Esperar pela morte e por acusações com um sorriso sofrido no rosto.
Aquele corpo sem vida vagou e vagou. Ainda que por dentro nada restasse, ele continuou a viver — ou melhor, a sobreviver. Andou, andou e andou.
Jaisen foi capaz de encontrar pessoas no caminho. Algumas delas, em especial, se compadeceram e tentaram ajudá-lo. Uns diretamente, outros, nem tanto.
Albert foi uma dessas pessoas. Era curioso que, mesmo ele sendo de Urânia, país ao qual haviam guerreado anos atrás, ambos haviam conseguido se aproximar. Jaisen se tornou um homem reservado; na época, o velho Albert ainda era uma pessoa caridosa e capaz de estender a mão aos outros sem pensar duas vezes.
Na verdade, a forma com que se conheceram foi um pouco constrangedora. Afinal, quem o encontrou, sentado em um beco, magro até os ossos e com os olhos vidrando o nada não fora Albert.
— Ô, tutor! Vem ver uma coisa!
Foi um rapaz de cabelos negros encaracolados que chegavam até os ombros. Ele tinha uma pele branca e olhos profundamente escuros. Ele o enxergou à distância e chamou Albert, que se aproximou. Ao lado dele, estavam acompanhados mais duas pessoas: Uma delas era outro garoto, da mesma idade do rapaz anterior, mas que tinha cabelos castanhos e olhos dourados. Ao contrário do primeiro que tinha um ar despojado, este era claramente mais reservado.
Não demorou muito para que Albert surgisse, e, também, uma terceira figura masculina. Era mais um rapaz jovem que parecia piscar, curioso. Suas íris eram verdes e grandes como as de uma criança, seus cabelos eram uma mistura de preto com amarelo que indicava terem sido pintados. Eles estavam amarrados para trás em um rabo de cavalo. Foi assim que aquele quarteto conheceu Jaisen, um homem que havia abandonado e sido abandonado pelo mundo.
— São seus discípulos? — perguntou Jaisen, em voz baixa.
Ele e Albert estavam sentados em um banco de madeira numa colina verdejante. À distância, observavam o trio que conversava animadamente. O de cabelos castanhos apenas dava respostas vez ou outra, de braços cruzados; o de cabelo negros provocava o loiro com piadinhas, este que reagia com sinceridade e dava risada, também. Era um grupo de adolescentes que convocava um ar esperançoso e suave aos pulmões do espadachim.
— Sim — respondeu Albert, igualmente em tom baixo — Os três decidiram se tornar boas pessoas no futuro, e estão se esforçando para isso. Seus nomes são Diz, Sasaki e Daniel.
Jaisen apenas observou aquele trio continuar a conversar, ignorantes à conversa deles.
Boas pessoas e futuro…
Palavras realmente poderosas para uma pessoa como ele entender. Mesmo agora, a visão que deveria ser calorosa ao coração de Albert era completamente distante e cinzenta para o espadachim.
— Você está bem? — perguntou o velho de olhos dourados. Em verdade, eles tinham poucos anos de diferença, mas era quase como se aquele homem fosse trilhões de anos mais experiente. Como se sua carga de vida lhe desse um olhar mais forte, ao invés de cansado.
— Faz muito tempo desde que consegui responder essa pergunta.
— Diga-me, de onde veio?
— Polímia.
— Oh, e se mudou para Thaleia recentemente?
— … Mais ou menos.
Jaisen respondia de forma uniforme e exausta, enquanto Albert continuava a se interessar pelo homem ao seu lado. Ele abriu um sorriso paciente.
— O senhor parece ter sido um bom guerreiro no passado — o olhar de Jaisen foi o bastante para fazer a pergunta — Bem, não é difícil de ver isso quando analiso seu corpo. Ainda que tenha emagrecido muito e perdido músculos, ainda existem traços em sua pele de quando ainda era um lutador. E essa espada que carrega parece bastante desgastada.
Apesar de seus olhos carregados pela idade, Albert parecia tão observador quanto Jaisen. Nesse sentido, foi quase como se visse a si mesmo no passado em um espelho.
— Isso foi há muito tempo.
— Mas você ainda carrega o coração de um guerreiro.
— Não, não carrego. Eu perdi meu orgulho, honra e fidelidade. Não possuo o direito de dizer que tenho algo assim.
Se afirmasse isso, seria um verdadeiro desrespeito com aqueles que realmente dedicavam corpo e alma a esse propósito.
A essa resposta fria, Albert ficou em silêncio, como que mastigando aquelas respostas.
— Deve ter sido uma vida difícil — falou ele, de repente, amaciando os olhos amarelos e tocando lentamente as costas do colega — Gostaria de me falar mais sobre ela?
Albert gentilmente estendeu-lhe a mão, esperando que fosse segurá-la. Jaisen, em contrapartida, mais do que o temor de reviver seu passado, percebeu que não havia nenhum outro sentimento maior dentro de si que não fosse o completo vazio.
O que estarei perdendo contando isso a ele, afinal? Não é como se eu pudesse mudar o passado, e eu sequer tenho um futuro para pensar.
Com essa decisão melancólica, o espadachim abriu a boca e lhe contou. Falou sobre sua determinação, sobre sua vontade de viver o presente, sobre Zaya, sobre a Guerra Ardente, sobre as perdas e tudo aquilo que havia sido descartado com suas próprias mãos. Ele havia pisado e fechado os olhos para todos aqueles eventos, e revivê-los agora não era tão doloroso quanto deveria ser.
Era quase como se sua alma tivesse morrido, de verdade.
Eu sou realmente um ser terrível.
Quando terminou de falar, Jaisen passava os dedos pela aliança em sua mão esquerda. O dourado já não era mais tão forte, e o desgaste pelo tempo era claro. Mas, dentre todas as coisas, aquele era o único tesouro que ainda lhe restava. Uma lembrança que seria incapaz de jogar fora.
O vento batia contra a copa das árvores e balançava as folhas. Era um dia de verão forte, o sol atravessava as nuvens e revelava uma coloração poderosa na natureza. As flores dançavam. O uivo da brisa era graciosa aos ouvidos.
Por alguma razão, Jaisen conseguiu ver tudo isso. Ele conseguiu, de repente, ver cores novamente em sua vida quando Albert o abraçou. Seus braços envolveram o homem, que mesmo magro, ainda era bem maior do que ele. Calor e segurança foram passados através daquele toque, e em um piscar de olhos, Jaisen sentiu que o mundo ficou diferente. Mas, em seguida, voltou aos trilhos cinzentos e frios.
— Muito obrigado… Por ter me contado — disse o velho, parecendo estar com a voz embargada.
Quando alguns minutos se passaram e Albert finalmente o soltou, Jaisen percebeu que ele chorava.
— Sinto muito. Nessa idade, ficamos realmente sensíveis, não é? — riu ele, sozinho, enquanto limpava o rosto. Ainda havia um sorriso doce em seus lábios — Não quis magoá-lo. Na verdade, eu me simpatizo com sua história, Jaisen. E gostaria de poder ajudá-lo.
O espadachim, ainda de expressão apática, ficou em silêncio.
As pessoas não eram capazes de mudar o passado. Sequer poderia cogitar essa possibilidade. Afinal, o que passou, passou. Você poderia remoer um acontecimento o quanto quisesse, mas ele jamais seria consertado a menos que seu eu do presente se arrependesse e decidisse mudar para o futuro.
Mas Jaisen, como uma pessoa que parou no tempo, sequer sabia o que significava a palavra mudança.
— Eu posso lhe dar isso.
Como se lesse seus pensamentos, Albert assim falou.
— Você deseja recomeçar?
— … Não.
A resposta foi dura, um pouco longe de ser sincera.
Ele era bastante hipócrita, no fim das contas. Mas, mesmo assim, Albert continuou:
— Então, o que você realmente quer?
Jaisen piscou, e finalmente tentou refletir. Pensou sobre a trajetória que o levou até ali e o peso que seus ombros carregavam. Olhou para o mundo sem vida ao seu redor e respondeu:
— … Eu quero… Esquecer de tudo…
A culpa e a dor arrebatavam seu ser. Ele não tinha o direito de recomeçar, mas, mais uma vez, a justiça jamais seria capaz de limpar sua alma. Seria apenas um ciclo infinito de sofrimento. E, temendo tentar novamente, sequer cogitando a mudança, a única resposta a que chegou foi aquela: o esquecimento.
Esquecer era o mesmo que fugir. Era o ápice da covardia e da fraqueza. Nesse momento, Jaisen percebeu que realmente não era digno de um coração de guerreiro. Mas, mesmo assim, se houvesse algo que ainda quisesse fazer…
— Então, quer esquecer os seus pecados?
— Sim. Eu… Mereço uma punição por tudo o que fiz, mas não há nada neste mundo que seja capaz de me satisfazer.
Era quase uma resposta masoquista, mas originada do puro vazio.
— Então, se deseja esquecer de sua antiga vida e recomeçar, nem que seja por um curto período, posso lhe apresentar um lugar.
Mesmo olhando para aquela figura vergonhosa e covarde, Albert lhe estendeu a mão. Ele observou a palma enrugada, a pele branca e o sorriso dele. O calor do sol atingiu seu corpo e, timidamente, o espadachim apertou a mão daquele homem. Quando assim o fez, sentiu algo dentro de si chacoalhar, e seus olhos se encheram de lágrimas quando Albert se colocou de pé, puxando Jaisen consigo.
— Então, vamos. Vou lhe apresentar Aurora, um lugar que poderá encontrar um novo amanhecer.
Os anos seguintes foram repletos de mudanças. Ainda que fosse difícil se estabilizar, ainda que o coração frio de Jaisen estivesse duro como pedra, lentamente foi capaz de aquecê-lo novamente. Albert o levou até Aurora, um pequeno vilarejo repleto de pessoas tão amorosas quanto o velho. Sendo recebido com uma pequena comemoração por parte dos adultos e crianças, o espadachim quase sentiu como se tivesse voltado para casa após anos fora.
— Eles são todos como você — sussurrou-lhe Albert, afinando os olhos — Também passaram por coisas difíceis, e alguns cometeram pecados demais para serem contados com todos os dedos de um corpo. Mas, mesmo assim, eu desejei dar a eles uma oportunidade para descansarem.
Albert usou a palavra “recomeçar”, mas ela poderia ser interpretada de outra forma. Não era sobre refazer a sua vida, era sobre compensar seus atos e descansar sua alma. Todos ali haviam passado por uma vida difícil. Nem todos foram pecadores, mas certamente tiveram que encarar circunstâncias complicadas o bastante para fazerem desistir de suas próprias vidas. E, antes que isso acontecesse, Albert os encontrou e estendeu sua mão.
Aurora era um vilarejo pacato e caloroso. O sol batia cedo nas casas e as pessoas se cumprimentavam com um sorriso. A brisa do mar acariciava suas peles e as conversas banais eram como música. Ali, mesmo que fossem completos desconhecidos, todos se tratavam como uma família, como iguais.
— Ninguém precisa saber do passado de ninguém. Aqui, isso não importa. Vocês possuem a liberdade para viverem como quiserem. Podem repensar o passado, melhorar o presente e considerar o futuro… Mas em união.
Aquelas palavras lembraram a Jaisen de outras que ouvira da própria Zaya uma vez.
— Sinta-se em casa, meu amigo — disse Albert, dando um tapa amigável em seu ombro e indo embora.
O tempo passou devagar, mas esse mesmo período tornou a vida de Jaisen muito mais agradável. Ele gostava das rotinas, dos dias repetitivos e do isolamento daquele vilarejo. Amava o fato de que todos ali se entendiam, e eram capazes de conviver uns com os outros. Não precisavam dar satisfação sobre seu passado, pois todos ali entendiam o peso que carregavam. E, assim, eram capazes de ter empatia pela situação do próximo.
Jaisen redescobriu seus gostos e vontades. Lembrou-se de como era bom sorrir, de como era agradável sentir o sol batendo em sua pele. Como mexer o corpo e suar era satisfatório. Ele abriu um restaurante e chamou de Tempo da Carne, nome que fora zoado por todas as crianças devido seu péssimo gosto. Conheceu Stella e Ryota, duas pessoas que se tornaram importantes em sua vida. Ainda com a aliança dourada em seu dedo, ele decidiu continuar a viver e aproveitar aquele presente, mesmo cientes de que aquilo não duraria para sempre.
Por que estou vivo?
Aquelas perguntas ainda mergulhavam sua mente em uma espiral de melancolia. Mas, agora, era um pouco mais fácil encontrar uma resposta.
Eu quero viver por essas pessoas. Quero estar ao lado delas e acompanhar o ritmo de nossas vidas, sem nos preocuparmos com o amanhã.
Mesmo que ele viesse, sabia que todos ali aceitariam de bom grado o seu fim. Ainda que fosse da pior forma possível, que fosse cruel e doloroso… Estariam todos juntos. A dor seria compartilhada e estariam satisfeitos com isso.
Mas Jaisen sobreviveu.
Quando brandiu sua espada contra a Insanidade, quando ouviu os sons de dor e viu o fogo se alastrar, foi capaz de entender. Era chegada a hora do fim. Ele viu os corpos de todos que passou a amar no chão e, contendo a tristeza, saiu correndo. Atravessou ruas e as cenas de horror espalhadas, esperando encontrar alguma coisa que pudesse se agarrar. Por alguma razão, mesmo quando o fim havia chegado, ele buscava encontrar vida com os próprios olhos.
E, ao ver o estado terrível da garota que considerava como sua própria filha, e a mão cheia de crueldade sendo estendida em direção ao seu rosto… Seu coração não foi capaz de se conter. Mas, mesmo lutando por ela, não foi capaz de fazer nada. Enquanto apagava ao som das risadas e da dor de se automutilar, de ter o corpo queimado de dentro para fora, Jaisen se sentiu tranquilo. Ele sabia que, se morresse, não se arrependeria de nada.
Mas…
Mesmo no final, um pequeno pedaço dele repensou a respeito daquele sentimento e deu um último olhar à Ryota, que assistia com uma expressão de desespero o espadachim desmaiar.
Considerando isso, era impossível dizer que sua reação ao acordar não tenha sido previsível. Perceber que havia continuado vivo, mesmo quando todos haviam perecido como esperavam. Mais uma vez, ele foi capaz de abrir os olhos e ver a luz, mas se tornou incapaz de senti-la. Foi duro e cruel com as palavras, revelando a Ryota algo que não deveria. Um segredo incontestável, mas que não fora dito com a devida sensibilidade. Portanto, era esperado, também, que ela reagisse daquela forma.
Jaisen já esperava que Ryota viesse a odiá-lo. Da mesma forma que passou a odiar Albert por suas mentiras descaradas e a falta de sensibilidade.
Era quase engraçado apontar o dedo ao homem que o salvou um dia, chamando-o de monstro, quando ele mesmo era um também. E assim, um mês se passou. Ele permaneceu em repouso e recuperando-se lentamente, mas foi incapaz de conversar adequadamente com Ryota. Houveram momentos que trocaram palavras, mas nada como no passado. O clima desconfortável não foi capaz de desaparecer por completo, e os dois ainda estavam bastante hesitantes de como reagir.
Quando Ryota partiu para encontrar Albert em Hera, Jaisen percebeu que era chegada a hora. Ele, como alguém que viu a mudança no velho acontecer ao longo dos anos, sabia qual seria sua reação ao vê-la. Sabia, também, que suas esperanças seriam pisoteadas. Seu coração e memórias, feridos. Jaisen não queria ver Ryota chorar, não queria vê-la sofrer. Ele não queria ver Zero passar pelo mesmo, e desejou que ao menos o rapaz fosse capaz de impedi-la.
Mas isso não aconteceu, e, agoniado demais para permanecer parado, ele saiu de seus aposentos e foi até a capital real. Ainda com sentimentos bagunçados, ainda não estando completamente recuperado, ainda que não tivesse sido capaz de recuperar as forças como o guerreiro que foi no passado… Ele se colocou de pé e decidiu tentar fazer algo para mudar as coisas.
Não deu certo. Não foi capaz de consertar os relacionamentos que destruiu ou de conseguir as respostas que procurava. Enquanto segurava a espada que foi capaz de brandir contra seus adversários, se perguntou o que deveria fazer para arrumar as coisas. A que deveria dedicar aquela força? Aquela vontade de se mover e ajudar? Se seu coração deveria repousar em algum lugar, se ele precisava mudar, por onde começar? Como poderia ser capaz de ajustar as coisas?
Eliza foi uma garota que o fez enxergar as respostas. Ou melhor, ela apontou com o dedo o caminho, e disse para trilhá-lo. Foi uma indicação, não uma resposta concreta — afinal, apenas ele seria capaz de traçar aquela rota.
A menina lhe lembrava um pouco Zaya. Suas personalidades tímidas e sorriso gentil que se transformavam de repente em uma expressão de força eram simplesmente admiráveis.
Então, quando começou a sangrar e perder partes do corpo, percebeu que não se importava. Ele se sentia bem se pudesse proteger alguém com aquela força. Queria ter sido capaz de fazer o mesmo por Zaya, por seus familiares perdidos e por Ryota.
Mas se havia uma única pessoa que poderia proteger, então que assim fosse.
Ainda que os arrependimentos e pecados apenas se acumulassem, Jaisen não parou. Ele chutou as dúvidas para longe e se colocou em movimento. Assim como no passado, as lutas o ajudavam a esquecer tudo. Estava decidido a tomar esse caminho, mesmo que morresse no processo.
Se fosse honesto consigo mesmo, confessaria que não desejava mais esse fim. Ainda haviam coisas que precisava fazer, desculpas a serem dadas e respostas que desejava descobrir. Ainda havia tanto a ser feito, tanto a ser colocado em palavras…
Portanto, quando Lysa apareceu e Albert saltou à sua frente, empunhando sua espada claymore, pronto para o combate, Jaisen fez o mesmo. Ignorou os sentimentos que borbulhavam em seu estômago e apenas se aproximou. Olhos escuros e dourados se encararam.
— Vamos proteger a garota — disse o velho.
— É claro — respondeu Jaisen, sem pensar duas vezes.
A mascarada, diante dessa vista, apenas soltou um grito de revolta. Então, como se batesse no ar, balançou seus braços de um lado para o outro.
— C-Cuidado! — gritou Eliza, bem a tempo de ambos desviarem e cortarem os fios invisíveis que chegavam para acertá-los.
Os dois espadachins ergueram suas lâminas e partiram para o combate. Espadas rasgavam o ar e cortavam os fios. Albert, apesar de sua idade, era veloz e possuía uma habilidade articulada. Ainda que ambos apenas usassem suas técnicas básicas para desviarem e protegerem a curandeira exausta atrás deles, os dois não pararam. Enquanto Jaisen permaneceu atrás para defender os golpes, Albert avançou, pronto para atacar Lysa.
— Seus velhotes enxeridos!
Com provocações baratas, dignas de uma mulher sem controle das próprias emoções, a mascarada continuou a lançar mais e mais redes de fios. Criaram-se teias como as de aranhas, prontas para cortar o velho de olhos dourados em pedacinhos. Mas com um giro no ar, todas se desfizeram em nada.
— O quê?! — exclamou ela, em choque — Como?! Como pôde?!
Lysa bateu o salto no chão e praguejou, indignada. E então, a raiva se tornou imediatamente medo quando percebeu a distância que havia entre os dois. Sua expressão se distorceu e ela soltou um berro.
— Nãããããooo! Afaste-se de mim!!
Ao invés de um fio que o atacasse, ela usou o saltou de Albert no céu para agarrá-lo em uma das pernas e jogar-lhe longe. Seu corpo quicou no chão e rolou, mas ele não pareceu ter problemas em se levantar novamente um tempo depois.
— Morram!!!
Lysa, ao mesmo tempo em que lançava Albert, gritou contra Jaisen antes de desferir uma rede de fios em sua direção, cobrindo sua visão. Ainda com a concentração de chi em seu corpo, o espadachim firmou a perna.
— Toma essa!
Com um grito, ele bateu com a lâmina no chão e fez erguer do solo vários pedaços de pedras. O tremor balançou a própria Lysa, que se desconcentrou. Isso permitiu que Jaisen lançasse vários e longos cortes, protegendo a área em que a curandeira estava.
— Cria uma barreira e se protege, menina!
Assim que gritou, Jaisen colocou força nas pernas novamente e deu um salto na direção da mascarada. Agora que havia perdido o equilíbrio e se preocupava com o avanço de duas pessoas ao mesmo tempo, não havia para onde fugir. Lysa não precisava de suas mãos para criar fios, mas certamente era necessário concentração para mantê-los firmes — ou se tornaram tão fáceis de lidar quanto as teias de uma aranha.
— Seus merdinhas! Vou acabar com vocês, agora!
Com outro grito agudo, a mulher balançou o braço para se proteger do golpe vertical de Jaisen. Ela criou uma rede de fios no próprio braço, protegendo-se como se fosse um escudo. Percebendo essa ação que deixaria Albert com a oportunidade perfeita para acertá-la…
— Essa não.
Com um salto habilidoso, Albert pousou no chão e voltou-se para o outro lado, na direção de Eliza. A menina estava tentando criar uma barreira, como fora, pedido, mas estava fraca demais para fazê-lo rapidamente. Num segundo, um único e singelo fio voou em sua direção, pronto para decapitá-la. Estando caída de joelhos no chão, sem forças, era esperado que não fosse capaz de desviar.
Lysa forçou eles escolherem entre ela e a curandeira, e Albert tomou uma decisão sábia, mas que comprometeu o outro espadachim. Jaisen, que não possuía tanta força quanto antigamente, sangrava muito e havia perdido um olho. Seu estado lastimável não seria capaz de suportar a mascarada por muito mais tempo.
Mas, mesmo assim, mesmo que suas veias rasgasse e feridas abrissem, o espadachim não cedeu. Ainda empurrava sua espada contra Lysa, que abriu um sorriso.
— Vamos, vamos! Isso é tudo o que pode fazer?!
Ela colocou mais pressão, costurando mais fios, o que fortificou seu escudo. Jaisen sentiu seus pés se arrastarem para trás.
— Aaaaaaaargh!
Ele gritou, e seus músculos rasgaram. Usou todo o seu potencial para cortar os fios que protegiam sua adversária, mesmo que isso o levasse ao seu limite. Mesmo que isso o fizesse ultrapassar barreiras absurdas para um ser humano.
— Seu…! — Lysa praguejou ao ver o resultado do esforço dele e, enquanto sentia a pressão entre os dois crescerem, deu um sorriso — Muito bem, então! Dê-me todo o seu poder, espadachim! Vamos ver se você realmente é digno de seguir comigo!!
O chão cedeu e quebrou. Albert arregalou os olhos para a cena. Os fios se acumulavam no escudo, mas imediatamente eram cortados. O corpo de Jaisen crescia e se fortalecia, mas sangrava em igual quantidade. Ele gritava com tanta força que poderia estourar as cordas vocais. Aquele choque inexplicável de poderes balançou a atmosfera e os ares, precisando fazer com que os dois, que assistiam a luta, colocassem um braço diante do corpo para protegerem-se.
— Ele precisa de ajuda! Senhor, ajude-o! Por favor! Ou então… Ou então, o senhor Jaisen vai…! — Eliza berrou, desesperada, para Albert, pedindo para que fosse até eles. Ao ver que o velho não se movia, ela direcionou seus olhos cheios de lágrimas para o espadachim adiante — SENHOR JAISEN!!!
Eliza abandonou a barreira e começou a se arrastar, mas foi impedida por Albert, que a segurou pelos ombros sem produzir qualquer esforço.
O grito de desespero e dor chegou aos ouvidos dele. Ao perceber que sua presença era querida e necessária, e que seria capaz, pela primeira vez, de ser útil a alguém, Jaisen perdeu todo o medo. Seu corpo ultrapassou qualquer limite e chegou ao ápice. A espada rachou mais um pouco, alcançando o cabo, mas ainda se manteve firme até o final. Até o momento em que todos os fios foram cortados e a lâmina alcançou o corpo de Lysa.
Mas, ao invés de sangue, o que veio a seguir foi um completo choque. Afinal, Eliza, enquanto gritava o nome de Jaisen, perdeu completamente o ar ao ver uma explosão branca engolir os dois lutadores. Uma ventania balançou os arredores e derrubou escombros. O som se propagou além das ruas e fez aves voarem de onde pousaram.
E, no fim, quando toda a neblina e fumaça desapareceram, nada mais restou.
***
Um som de explosão alcançou os ouvidos de Zero, e ele olhou para trás. Na verdade, todos os nobres, que estavam reunidos, fizeram o movimento. À distância, subia uma fumaça grosseira. Mas, diferente das outras vezes, ela era branca e transparente. Por isso, um momento depois, imediatamente desapareceu.
— Vejam! — exclamou Al-Hadid, chamando a atenção deles para algo que apontava — Os mors estão se desfazendo!
Tal como Gê afirmara um tempo atrás, os cadáveres das criaturas começaram a se desfazer. Pouco a pouco, tornaram-se cinzas e misturaram-se à atmosfera, como verdadeiros espíritos.
— Mas o que foi aquilo? — perguntou Fuyuki, abraçando seu próprio corpo — Por alguma razão, estou sentindo um calafrio estranho.
Zero ficou em silêncio. Ele não desviou os olhos prateados da fumaça e dos pássaros que voaram daquela direção para o céu, desaparecendo no horizonte. E, de repente, um arrepio percorreu sua espinha.
O rapaz franziu a testa e, ainda tentando entender o sentimento, apenas engoliu o amargor de sua garganta.