Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 7 – Arco 3

Capítulo 82: Desagradáveis Surpresas

Os conflitos que se alastraram na capital real lentamente começavam a serem resolvidos. Em verdade, naquele momento, ainda era possível ouvir o som de passos e uivos que soavam pelos arredores, de becos e ruas mais fechadas. A mulher, ciente de que aqueles barulhos pertenciam aos mors que os rondavam, apenas observou com seus olhos negros grupos e grupos se acumularem, preparando-se para darem o bote. Uma vez que fazia uma caminhada a passos largos e chamativos, era natural que o som de seus sapatos chamassem a atenção ao estalar o salto contra o asfalto. 

Mas mesmo sabendo desse perigo, Gê, que tragava um cigarro, não pareceu se importar. Os dedos da mão direita retiraram de seus lábios a cigarrilha e suspirou a fumaça branca. 

— Senhora Maga! Aqui, por favor! Nos ajude!

Gê interrompeu seus passos e deslizou os olhos para um casal encolhido em um beco fechado. Era um local escuro e que permitia se esconder perfeitamente de qualquer pessoa que passasse pelas ruas. O que a curandeira viu foi uma moça mais jovem que segurava em seus braços um homem mais velho, com sangue escorrendo de sua cabeça. Haviam lágrimas nos olhos da moça que parecia ser sua filha e, desesperada, reconheceu imediatamente a passagem dela.

— E-Ele… E-Ele recebeu uma pancada na cabeça…! E desmaiou! E-Eu… Não sei o que fazer! Me a-ajude, por favor!

Quanto mais a moça falava, mais lágrimas ameaçavam escapar por seus olhos grandes e brilhantes. A Maga, percebendo que não tinha escolha, tragou mais uma vez o seu cigarro e se aproximou. Olhando-os de cima a baixo, franziu a testa.

— E-Ele está-

— Não está morto, ou corre risco — interrompeu a curandeira, brusca — Permaneçam como estão.

Segurando o cigarro nos dedos, Gê bateu seus dedos para que as cinzas afundassem na terra. Em seguida, as raízes verdes de cores fortes, fizeram a terra tremer e brotaram, rasgando o solo e se enroscando em ambos os corpos encolhidos.

— O-O quê?

Apesar das dúvidas da moça, a curandeira não se deu ao trabalho de explicar e apenas observou o processo de cura começar. As raízes que se enroscaram em todo o corpo, envolvendo até a cabeça do homem desmaiado, começaram a pulsar com calor. Algumas pequenas folhas nasceram aqui e ali, e conforme Gê as alimentava com as cinzas, mais poderosas elas ficavam. 

— Você foi mordida? — perguntou Gê para a moça.

— A-Ah, não.

— E ele?

— Também não, eu acho… Estávamos fugindo quando essa casa desabou e meu pai tentou me proteger, mas…

Quando Gê desviou os olhos para os escombros, compreendeu a situação. Na realidade, não era uma visão incomum naquela cidade. Afinal, agora que os terremotos conseguiram fazer construções racharem e despencaram de uma única vez, era esperado que algumas pessoas não conseguissem fugir a tempo. Eram apenas civis sem qualquer habilidade especial. Nada mais esperado que, sob circunstâncias anormais que precisassem lidar com pessoas usando poderes, eles sofressem com aquilo.

Mesmo pessoas como Gê e Eliza eram capazes de se virar — embora elas estivessem mais perto do meio comum do que do incomum, como a corte real. Em contrapartida, elas sempre seriam bastante necessárias em qualquer campo de batalha e precisavam estar vagando de um lado para o outro, prontas para ajudar todos que estivessem ao seu alcance.

Infelizmente, mesmo elas tinham seus limites. Eliza era capaz de curar várias pessoas ao mesmo tempo, assim como Gê, mas não poderiam se afastar das invocações de seus próprios poderes por muito tempo ou eles seriam imediatamente desfeitos. Com o alcance de chi estando limitado a até alguns quilômetros dependendo da intensidade, Eliza não podia fazer selos de cura que se mantivessem iguais aos selos comuns, que isolavam algo. Eram duas coisas diferentes, e o mesmo valia para a Maga Veridiana.

Ainda que pudesse invocar suas raízes para curar, ela não podia se afastar demais ou deixar de alimentá-las. Elas poderiam se voltar contra elas caso as forçasse a curar sem usar as cinzas. Ainda assim, eram bastante práticas e permitiam um alcance decente considerando sua situação. 

Entretanto, havia um outro problema. 

— A-Ah! São eles!

Gê ouviu os gemidos baixos da moça e percebeu que não estavam sozinhas. Passos soaram atrás dela e rosnados chegaram aos seus ouvidos. Ela sentiu a presença dos mors antes mesmo que se revelassem sob a luz da tarde. Como um bando enorme, eles estavam perfeitamente equipados para a luta. Haviam ali presas fáceis que não poderiam se mover, além de uma única pessoa para defendê-los. Era natural que eles fossem atrás delas. 

As criaturas feitas de sangue e carne, com ossos saltando de seus corpos e buracos enormes nos lugares dos olhos, abriram seus dentes manchados em vermelho. Gê entendeu que eles deveriam ter saído de outro banquete para se unir ao trio, e estavam prontos para atacar. Pareciam realmente confiantes de sua emboscada.

— S-Senhora! Estão se aproximando!

Ouviu as garras arranham o asfalto, as pedras sendo manchadas pelos pingos de sangue.

— Senhora?! Senhora Maga?!

Mas, ignorando os alertas, Gê não se moveu. Ela permaneceu de costas para o bando de mors que se aproximavam, prontos para atacá-las. Estavam vulneráveis — especialmente a curandeira, que sequer se virou para olhá-los. Era apenas uma mordida em seu pescoço e tudo estaria acabado. 

— Iih! Cuidado!

Com a reação da jovem, Gê entendeu que eles haviam pulado sobre seu corpo. E quase podia sentir suas garras e dentes roçando sua pele branca, mas elas sequer chegaram a encostar. Afinal, das sombras sob seus pés, nasceram espinhos como estacas de gelo que perfuraram os corpos das criaturas. Do ferimento que abriu seus corpos nasceram mais e mais espinhos, preenchendo os mors com vários buracos nascidos de dentro para fora. Por fim, eles foram rasgados e despedaçados, caindo o monte de carne e sangue no chão como uma chuva. 

Foi uma cena chocante tanto para a moça quanto para as criaturas.

Gê abriu os olhos negros, que até então haviam se fechado, e tragou o cigarro pacientemente.

— Livre-se deles.

A sombra sob seus pés desvencilhou-se de sua silhueta e a fez se mover como líquido. De repente, a moça, que apenas assistia a cena completamente chocada, viu quando os mors começaram a ser dilacerados por aquela coisa. Os cortes e estacas produzidos através de suas próprias sombras se tornaram seus inimigos, e imediatamente o número de criaturas começou a diminuir. Os cadaveres se acumularam, alguns corpos foram rasgados ao meio, outros perfurados de dentro para fora, outros que foram apenas sugados para dentro de suas próprias sombras como areia movediça e não mais voltaram… 

Em menos de um minuto, todo o bando fora liquidado sem deixar para trás um único ferimento.

— Bom trabalho, querido.

Gê se virou, finalmente, para a sombra que debaixo de seus pés se remexeu, crescendo na vertical. A moça soltou um grito agudo novamente ao ver que formou-se uma silhueta humana, e então Kuro se revelou, recebendo cafuné da curandeira em seus cabelos negros. Não havia uma única mancha de sangue em suas mãos. O rapaz, que recebeu o elogio e o carinho como recompensa, apenas encolheu o rosto debaixo da grande gola.

Os dois seres fora do comum olharam com suas íris profundamente negras, sem brilho, na direção da jovem que abraçava o pai. Gê sentiu que ela tremeu da cabeça aos pés, temendo-os mais do que as próprias criaturas que os atacaram há pouco.

— A cura está completa — anunciou a curandeira, fazendo com que as raízes se recolhessem para o chão — Kuro os levará para o bunker mais próximo.

— H-Hã? E-Espera!

Mas Gê, jogando fora o cigarro, deu meia volta e continuou a andar pelos asfaltos da cidade. Enquanto isso, o rapaz de roupas negras se aproximou, como se deslizasse pelo chão. E, sem dizer uma palavra, arrastou aquela dupla para dentro de suas próprias sombras antes de desaparecer.

***

— Nos encontramos novamente, senhorita curandeira — anunciou Lysa, inclinando a cabeça para a menina que havia enrijecido o corpo — Como você está? Não me parece que possui cicatrizes desde a última vez que nos encontramos.

Eliza sentiu que havia perdido o ar, como se um soco atingisse seu estômago. A exaustão pelo gasto de chi unido ao completo terror que gelou seus ossos a fez hesitar. Suas íris âmbar perderam o brilho, indicando a falta de atenção ao que via. Seus dedos e pernas começaram a tremer, o sangue esquentou e pareceu ferver seu cérebro. A curandeira segurou o cajado com tanta força que achou que poderia quebrá-lo.

— O que houve? Está um pouco pálida… Ah, mas pode ser responsabilidade dessa névoa — Lysa assim refletiu em voz alta, olhando para os arredores.

De fato, mesmo que o Tigre Branco tivesse sido derrotado e lentamente as paredes brancas começassem a se dissipar, ainda não era o bastante para que pudessem se enxergar por completo. 

— Tsc, que chatisse — mudando seu humor de repente, ela estalou a língua e praguejou baixo com um tom de desprezo — Se soubesse que seriam tão inúteis, não teria me dado ao trabalho de trazê-los até aqui. E o Tigre Branco parecia mais fraco do que antes... 

Ela falava mais para si mesma do que para eles, o que permitiu que Jaisen, que estava ao lado de Eliza, a olhasse e se surpreendesse com seu estado. 

— Mocinha! Ei, acorda!

A curandeira, ao ser sacudida no ombro, piscou e olhou lentamente para o espadachim. As forças de Jaisen para acordá-la se desfizeram no momento que viu o quão pálida sua pele estava. Suor escorria por seu rosto e mãos. E não era apenas pela exaustão. Ele percebeu o pavor que emanava de seu pequeno corpo e, então, inflou o peito, colocando-se na frente dela como um escudo.

— Hm? — murmurou Lysa, observando a cena — O que está fazendo, grandalhão?

— Vou protegê-la! 

À exclamação forte, Eliza sentiu um arrepio percorrer seu corpo e ela ergueu os olhos. Sua vista havia sido preenchida pelas costas fortes e cheias de sangue do homem que empunhava a espada, impedindo-a de manter contato visual com a inimiga. 

Jaisen sabia por experiência que, apesar daquela moça de visual caricato não demonstrar ameaça através de sua aura ou quantidade de chi, sua presença ali era bastante suspeita. E, ao olhar para Eliza, não teve dúvidas do que precisava fazer. Ainda que seu corpo tivesse sido preenchido por ferimentos, que sangue escorresse e tivesse perdido um dos olhos, ele ainda tinha braços para segurar a espada. E aquilo era o bastante para que pudesse, no mínimo, proteger a garota atrás de si.

— Ridículo — com a expressão mau-humorada, Lysa assim o desafiou, apontando o dedo indicador na direção dos dois.

— Cuidado! — exclamou Eliza, tarde demais, quando os fios agarraram seus fortes braços e o forçaram a soltar a espada.

— Como ousa me encarar desse jeito, seu porco imundo? Acha que está no direito de apontar sua lâmina para mim? Você? Um mero grão de poeira? O que acha que aprender boas maneiras se ajoelhando para mim?!

Com um movimento brusco de seu braço, que cortou o ar, Lysa fez Jaisen soltar sua espada e puxou suas pernas para cima. Ele caiu de boca no chão, rasgando-a com os próprios dentes. Seus joelhos foram dobrados e cabeça forçada a se inclinar. Mais sangue escorreu e pingou, mas Jaisen conteve os gritos de dor, apenas gemendo baixinho.

Lysa, então, ainda com o cristal em sua mão, se aproximou. O som de seus passos assombrou Eliza mais uma vez, que congelou no lugar. Entretanto, ela precisava se mover. Precisava fazer alguma coisa para ajudar Jaisen. 

Minhas pernas… Não se mexem. 

Não era o poder de Lysa, mas sim o próprio medo impedindo suas ações. 

Minhas mãos… Grudam em Lótus. Eu não consigo me concentrar pra usar meu chi.

Lentamente, os pensamentos de Eliza começaram a se tornar uma verdadeira bagunça. Normalmente, ela era uma pessoa naturalmente paranóica, que sempre pensava as piores coisas nos piores momentos. Mas agora, aquilo não estava relacionado à sua personalidade, mas ao horror de ver aquela mulher se aproximar.

Minhas forças… Estão se esvaindo.

Eliza sentiu os joelhos cederem e ela quase caiu de joelhos também quando Lysa parou, tediosa, na frente de Jaisen. Ele era incapaz de se mover.

— E então? Isso é tudo o que pode fazer? 

A meros passos, sua raiva se esvaiu e tornou-se outra emoção completamente diferente. Ela parecia, ainda, desprezar a aparência de Jaisen, mas certamente não estava mais tão interessada em suas reações. Ao menos, não aquela que ele mostrava a ela agora.

— E você? Não vai protegê-lo?

Quando Lysa a encarou com as íris cornalinas profundas, ela sentiu sua alma sair do próprio corpo. E, com aquela mera troca de olhares, pareceu que a mascarada compreendeu.

— Ah, então é assim.

Não, não, não, não... Não olha pra mim.

Quando Lysa passou por Jaisen, ignorando-o, o homem imediatamente ergueu a cabeça e olhou para o lado. A mascarada parou diante de Eliza, que, à aproximação, apenas caiu sentada de forma desajeitada. Lótus, tendo perdido seu poder, retornou a ser apenas uma pulseira comum. As mãos trêmulas de Eliza se uniram em seu peito, o medo irradiava de seu ser. Mas, mesmo assim, a curandeira não conseguia deixar de encarar aquela mulher.

Por favor, não se aproxima... Não, não. Alguém... Alguém... 

— Está com tanto medo assim de mim?

... Alguém me ajuda!

Lysa se divertiu com a reação da garota e, então, ao perceber que um líquido escorreu por baixo do vestido dela, gargalhou alto. Foi apenas um movimento de mão, ela apenas tentou estender sua palma contra o rosto dela, e foi como se um turbilhão de emoções invadisse o corpo da menina. Como reação ao puro pavor, Eliza lembrou-se de quando teve o rosto destruído pela mascarada e sua mente quebrou. Como resultado, seu corpo também precisou reagir.

— Há, há, há, há! Que patético! Então é verdade?! Você tem medo de mim?! Tanto que se mijou?! Ah, há, há, há, há! Que piada! Patética, idiota, estúpida e nojenta! Sua existência até poderia ter sido reconhecida minimamente antes, mas agora não se parece nem um pouco com a seladora que conheci! O que aconteceu, hein? Hein, hein, hein?!

Lysa acusou Eliza e aproximou seu rosto, percebendo que aquilo apena atiçava ainda mais seu terror. A curandeira levou as mãos aos cabelos e soluçou, desesperada. A mascarada continuou a gargalhar.

Por favor, por favor, por favor, por favor... Vai embora! Socorro!

Eliza sentiu seu coração e mente gritarem por ajuda e se apertarem em dor.

— Sai de perto dela, sua degenerada!

— Calado, verme!

Lysa, com uma reação e mudança velozes de emoção, desferiu um tapa certeira no rosto do espadachim, fazendo-o virar o rosto.

— Agora você sujou as minhas mãos com seu suor e sangue podres! Argh! — ela praguejou e sacou de algum lugar um lenço branco, limpando a própria mão que sequer havia sido manchada — Porco maldito.

E então cuspiu na careca de Jaisen.

— Cale-se um pouco e me permita testar uma coisa…

— Não!

Ainda que o grito de Jaisen tenha saído, ele teve seu corpo puxado e cortado pelos fios, fazendo traços de sangue escorrerem. Enquanto isso, Lysa estendeu a palma aberta na direção de Eliza, pronta para segurar seu rosto e ver qual seria a reação da garota. Os olhos âmbar de Eliza apenas assistiram sua aproximação, seu corpo não conseguia reagir de outra forma que não fosse se encolher e desejar se esconder nos próprios confins…

Um vento balançou os arredores e lançou tudo para longe. Lysa foi jogada para trás e seus fios se partiram. Jaisen e Eliza rolaram no chão. Como esperado, a névoa foi balançada e quase desapareceu por completo. E, em seguida, um tremor na terra indicou a chegada de mais um elemento inesperado.

Lysa, olhando para o homem que empunhava uma espada claymore, colocou-se pé e retirou do chão a lâmina que se afundou com sua chegada. A ventania causada por seu pouso não foi suave e deixou todos assustados. A mascarada, após retirar o pó de suas roupas e perceber que seu cabelo fora bagunçado, fez uma expressão de ódio.

— … E quem caralhos é você?

À pergunta dela, Albert apenas afinou os olhos dourados e endireitou a postura como de costume.



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