Volume 7 – Arco 3
Capítulo 79: Impulsividade e Altruísmo
O mar branco alastrou-se de forma poderosa ao redor da dupla. A névoa, que antes havia sido dissipada com um único movimento, ligeiramente foi reposta. Parecia que, ao contrário de antes, estava ainda mais densa e difícil de se enxergar através. Nem mesmo a esfera de luz de Eliza foi capaz de atravessá-la. Aquele era um sinal mais do que certeiro da hipótese original da garota.
— Ele parece estar ficando furioso — observou a curandeira quando a névoa começou a se acumular sob seus pés como uma espécie de nuvem fria — Precisamos tomar mais cuidado a partir de agora… Ainda mais agora com aquilo na nossa frente.
Ela ergueu os olhos âmbar para a vista nada agradável de duas íris azuis como o céu encarando-os de volta. Até então, a criatura não havia produzido nenhum movimento ameaçador, mas parecia apenas questão de tempo para que isso se provasse contrário.
A curandeira endireitou a postura, enrijecendo o corpo conforme percebia a atenção do Tigre nela. Ele sabia exatamente o que havia feito, e parecia bem disposto a retribuir. Um arrepio percorreu seus braços e pernas quando o clima se tornou ainda mais frio.
— Há!
Jaisen exclamou enquanto brandia sua espada, defendendo a garota de um par de garras que surgiu para rasgar sua nuca.
— Esse bicho tá ainda mais forte! — disse ele, franzindo a testa — Foi como tu falou! Ele tá realmente puto da vida com a gente!
— Com essa névoa, não poderemos enxergar o verdadeiro corpo… — observou ela, sentindo uma tontura abatê-la, mas piscou a vista e focou a atenção para não se deixar levar por ela — Precisamos sair daqui e encontrá-lo.
Um espaço aberto como aquele era perigoso. Ao contrário de uma floresta, em que você poderia ouvir e enxergar os ataques vindos, pois árvores estariam em seu caminho, assim como folhas farfalhariam ao movimento, uma rua larga como aquela não os ajudaria em nada. Era um campo de batalha desvantajoso para ambas as partes, mas estava claro que o Tigre parecia mais a frente do que eles.
Não haviam rotas de fuga visíveis e, ao contrário da floresta, não haviam locais para subirem e observarem de cima. Nem Eliza ou Jaisen eram capazes de escalar casas como os guardiões, e possivelmente apenas seriam pegos no processo. Era, mais uma vez, uma grande perda de tempo e energia.
Ela ouviu Jaisen balançar a lâmina atrás de si mais algumas vezes e recuou seus passos. Ao silêncio dela, o espadachim pareceu entender suas intenções, e fez o mesmo. Conforme se afastaram dos grandes olhos azuis, as pupilas verticais do espírito se estreitaram ainda mais. Era, de fato, como um felino atrás de sua presa. Ficava mais atiçado quando estavam em movimento. Parecia ser divertido para ele.
— Há, há, há, há!
As risadas, que não vinham de nenhum lugar em especial, mas os rodeavam, se tornou mais alta. Foi então que aquilo avançou.
— Aaah! — gritou Eliza quando algo enorme se aproximou balançando a terra.
O par de íris azuis grandes se afinaram e partiram para cima da garota. As patas do tigre se tornaram sólidas e ganharam vida, traçando um movimento horizontal com suas garras para cima de seu pequeno corpo. Surpresa com a movimentação, ela apenas foi capaz de tropeçar e cair sentada, derrubando Lótus.
— Huáá!
Jaisen imediatamente veio em seu socorro. Ele se colocou diante dela e ergueu sua espada como um escudo, protegendo-a do golpe. Porém, era muito mais forte do que o esperado. Garras se afundaram e a pata grande e branca do tigre bateu contra ele, fazendo-o ceder um pouco. Eliza escutou o som de algo trincando, e percebeu que era a lâmina. Viu rastros de sangue voarem para os lados quando cortes foram feitos em seus braços, algumas unhas fincando-se em pele e carne. Como uma torrente vermelha, o líquido emergiu e saiu pelos ferimentos.
— Jaisen!!! — gritou a curandeira.
Suas pernas moles foram forçadas a serem colocadas em movimento. Eliza lutou contra a vista preta que a ameaçava e agarrou seu cajado, colocando-se de pé. Arfando, ela apontou a esfera azul na direção do espírito que ainda estava parcialmente visível e viu a luz azul brilhar.
— Afaste-se!
À ordem da menina, uma concentração de chi cresceu e então explodiu. Nasceu, entre a pata e a espada, um escudo circular que girava em sentido horário. Era um comum, com escritas incompreensíveis e forte brilho. Entretanto, assim que nasceu com uma brutalidade e velocidade fora do comum, houve um choque que separou os dois que lutavam. O Tigre, recebendo a pressão, soltou um rosnado e saltou para trás. Jaisen, em contrapartida, sentiu um choque percorrer seu corpo e deu alguns passos, recuando também.
— Você está bem?! — aproximou-se a curandeira, observando os machucados de olhos arregalados.
— Tô sim, relaxa mocinha — respondeu ele, em voz mansa — Isso daqui num é nada.
Ainda que houvessem perfurações em sua pele, parecia que o ferimento não fora tão profundo. Sangue ainda escorria, mas a dor não pararia Jaisen de lutar. Ao vinés disso, ele franziu a testa para ela mais uma vez.
— Num precisa se preocupar em me curar — recusou, se afastando, quando percebeu que a jovem se concentrava para realizar o tratamento — Guarda sua energia. Ainda tô bem o bastante pra continuar lutando.
Eliza abaixou as mãos e assentiu. Ainda que ele fosse ferido, ela estaria ali para ajudá-lo. Entretanto, ao observar que a menina parecia abatida e ficando lentamente exausta pelo esforço, o homem resolveu poupá-la um pouco. A criação daquele selo pareceu exigir uma força de vontade grandiosa de sua parte, pois ele podia ver sua pele ficando cada vez mais pálida e corpo se curvar, praticamente se apoiando no cajado.
— Tu tem algum plano?
Ao ouvir a pergunta, a garota piscou, refletindo.
— Tenho, mas pode ser perigoso.
— Há! Já tamo quase na cova mesmo, se precisamos dar mais um ou dois passos, tá sussa!
— O quê? — Eliza não entendeu a expressão usada, e ele se virou pra ela.
— Sabe, na minha terra natal a gente sempre pensava assim. Agora que tamo todo mundo ferrado, com a vida acabada mesmo, é melhor fazer tudo o que der na telha e aproveitar ao máximo!
Era uma prática um pouco triste, e Eliza percebeu que deveria ser um pensamento coletivo que o povo compartilhava. Desconhecendo seu verdadeiro passado, mas sabendo por partes através de Jaisen e Ryota, a menina percebeu que os dois eram pessoas capazes de reconhecer os próprios erros sem dificuldade. Normalmente, as pessoas apontaram os dedos para os outros, incapazes de se desfazerem de seu próprio ego ou orgulho.
Mas eles eram diferentes. Por estarem cientes de seus próprios erros e da dificuldade em que viviam, não tinham medo de tentar de novo e mudar as coisas. Jaisen era um homem forte, em vários sentidos. Com um humor instável e dificuldades de se relacionar, mas ainda era capaz de se esforçar para compreender o sentimento alheio. Ele se preocupou com Eliza e a tratou com cuidado, assim como tratava Ryota. Era um pouco desengonçado e poderia soar até rude às vezes, mas certamente tinha boas intenções.
Era como Ryota. Ela se esforçava muito mais pelos outros do que por si mesma, embora às vezes sequer percebesse isso. A natureza de suas gentilezas estava no coração errante, que desejava compensar as próprias ações ajudando os outros ao máximo.
Parando para pensar, era, realmente, um pensamento doloroso. Entretanto, a prática de ajudar o próximo estava sempre no topo da lista das prioridades de Eliza. Como uma curandeira, ela também sempre colocaria a vida dos seus pacientes em primeiro lugar. Mas, ao mesmo tempo, jamais poderia se desfazer da própria. Afinal de contas, uma curandeira ferida não pode curar os outros. Ela precisava estar bem para compartilhar seu poder — eis algo que sua mestre, Fuyuki, sempre a repreendia.
— Você se esforça demais — observava a duquesa, apertando as sobrancelhas com preocupação — Por que não descansa um pouco?
Ela sabia que eram palavras ditas com sinceridade e que deveriam ser seguidas, mas a menina estava ocupada demais para parar. Ainda que seu corpo exigisse descanso, sua mente jamais poderia parar de trabalhar, Ansiava por ajudar os outros, e a ansiedade de que fosse incapaz de chegar até aqueles que aguardavam seu socorro a horrorizava. Era por isso que colocava tanta dedicação em suas ações, mesmo quando estava tão mal quanto aqueles que precisava cuidar.
A quem estou tentando enganar? Estive julgando as ações de Jaisen e Ryota como impulsivas e altruístas ao ponto de serem doentias, mas sou exatamente como eles.
Ao perceber essa semelhança, um sorriso brotou em seu rosto.
Achando que aquela expressão suave fosse um sinal de compreensão, Jaisen sorriu de volta.
— Beleza, então! Manda aí o plano! — exclamou o homem, erguendo sua espada para o espírito que se aproximava a passos lentos e pesados.
— Encontrarei o corpo original e o selarei. Enquanto isso, preciso que o distraia e me proteja, por favor.
Era um plano basante perigoso para Jaisen, que já estava ferido. Entretanto, ele abriu ainda mais o sorriso e gritou:
— Pode deixá!
Foi uma ação esperada pela curandeira, que assentiu para ele. Agora que ambas as partes estavam decididas a não perder, eles jamais recuariam. O Tigre Branco, alheio à isso, apenas continuou a andar, quebrando naturalmente o selo criado por Eliza anteriormente, que ainda girava no ar.
A garota segurou Lótus e fechou os olhos. Ela se concentrou e ouviu o brandir da espada de Jaisen contra as garras do tigre, criando uma onda de vento que balançou seus cabelos e vestido. Entretanto, não se moveu. Ouviu a troca de golpes e as defesas, os sons de divertimento sendo expressados por pequenas exclamações do espadachim. Sentiu o ambiente frio cada vez mais difícil de suportar invadindo suas narinas e dificultando a respiração. Os pés começavam a ser consumidos pela névoa, que subia como água. Houve todas essas mudanças nos arredores e no ambiente, todos esses sons e sentimentos que começavam a afetá-la.
Mas, mesmo assim, o centro de Eliza permanecia quente. E, lentamente, aquele calor que era concentrado dentro dela atravessou seus braços, suas mãos, seus dedos, o cabo do cajado… E se concentrava na esfera brilhante azul.
— Hi, hi, hi!
Ela escutou risadas vindas de sua nuca. Suas sobrancelhas se apertaram um pouco quando uma sensação ruim a atingiu pelas costas, mas bem antes que as garras pudessem alcançá-la, uma espada voou contra elas e as desfez no ar.
Os ataques invisíveis aumentaram de intensidade e quantidade, lutando para alcançá-la. Mas o espadachim não permitia que nada chegasse até seu pequeno corpo.
— Há! Iá! Haiá!
Suas exclamações seguiam conforme brandia a espada. Entretanto, ele sabia que não poderia continuar daquela forma. Afinal, ele não estava apenas enfrentando os golpes da névoa, mas também o grande tigre que se aproximava. Em um movimento veloz, o espírito abriu sua grande boca na direção dele. Entretanto, Eliza estava em seu caminho, podendo ser levada junto.
— Háááá!
Dando um grito, o espadachim ergueu a lâmina pesada acima de sua cabeça e lançou um corte horizontal contra a face do animal. A lâmina adentrou seu corpo e sangue vermelho quente jorrou. Seus músculos se tencionaram e pernas usaram toda a sua capacidade para lançar a criatura para longe com aquilo, desviando-a de Eliza. Ela apenas sentiu uma forte ventania, assim como uma presença grande, passar voando à sua frente.
Entretanto, aquela decisão teve suas consequências.
— Aaaaaaargh!
Jaisen berrou de dor quando um ataque de garras o atingiu — rasgando a metade de sua face, assim levando-o a perder a visão esquerda. A ardência profunda, unida da dor, o incapacitou de se mover por um único instante. Sangue escorreu e pingou no chão. O cérebro, agora precisando concentrar toda a sua capacidade no único globo existente, fez a vista desfocar. Jaisen perdeu a atenção por um instante e isso foi o suficiente para que ele fosse acertado brutalmente no estômago com a investida do espírito.
O tigre veio correndo, balançando o terreno, e o empurrou com o corpo. Ele rolou no chão e bateu o corpo, cuspindo sangue. Foi um golpe brutal ao ponto de sentir os ossos quebrarem no tórax. A dor era abismal. Porém, ele abriu o único olho e se colocou de pé, apoiando-se na espada. E, por fim, avançou novamente.
Eliza não se movia sob nenhuma hipótese. Parecia que algo importante estava acontecendo, e ela se preparava para lançar mais algum tipo de kiai que poderia ajudá-los. Uma vez que Jaisen entendesse isso, ele poderia lutar por eles. O homem rasgou o ar e desfez as garras que tentavam acertar o alvo fácil. Enquanto isso, o grande tigre o perseguia. Curiosamente, ele não se voltou contra a curandeira. Era quase como se seu propósito original fosse derrotá-lo, enquanto os demais ataques vindos da névoa desejassem acabar com a garota.
— Então é isso?! Por que não briga com alguém do seu tamanho, gatinho?!
Jaisen abriu a boca e gritou contra o grande tigre de listras pretas, ao mesmo tempo que esperava que sua provocação alcançasse a origem dos ataques que iam contra a curandeira. Os olhos azuis do espírito se arregalaram e, então, ele fez um movimento inesperado. Ao erguer suas duas patas no ar, como se fosse atacá-lo, bateu-as contra o solo e fez nascer um terremoto. O espadachim viu a terra rasgar e tremer, criando crateras.
Eliza não se moveu, mas por sorte as fendas que se abriram não chegaram até ela.
Entretanto, aproveitando-se de sua instabilidade, o espírito abriu sua enorme boca e fechou seus dentes no corpo de Jaisen. A metade direita de seu corpo foi mordida e sangue espirrou. Pele foi rasgada e a dor atingiu seu cérebro violentamente. Sua vista se tornou vermelha e Jaisen soltou um berro colossal. Eliza tremeu no lugar, suando por todos os poros do corpo, mas não se mexeu. Seus dedos tremiam no cajado, instáveis. Parecia travar uma luta interna para não soltar Lótus e correr em sua direção.
— Aaaaah… Seu puto! Então tava querendo tirar minha espada de mim?!
Jaisen gritou contra a criatura, olhando-a no fundo dos olhos. O tigre envolveu seu corpo com a boca, e, com ele, o braço direito e metade do tronco. Ele sentiu os dentes afiados forçarem-se contra sua pele, atravessando roupa e pele. Mais uma vez, a dor agonizante percorreu seu corpo, mas o espadachim continuou sorrindo. Em momento algum, sua mão havia soltado a espada — mesmo que a feroz língua do espírito tentasse arrancá-la de si à força.
— Vai apelar pra brutalidade, é?! Então tá bom! Vamos igualar essa brincadeira!
Ainda que a dor e a dificuldade de movimentação dificultasse suas ações, ele não foi impedido. A mão livre, a esquerda, segurou o rosto do espírito.
— Tu!
Ao entoar do elemento que vibrou em seus ouvidos, Jaisen sentiu uma força excruciante atravesasr seu corpo. A resistência cresceu, assim como a força. Seus braços e pernas se tornaram maiores, suprindo os dentes que tentavam atravessá-lo ainda mais.
— O que acha disso?!
Ainda que a boca estivesse apertada demais para ser cortada, o espadachim não recuou. Sua mão, segurando a espada, usou da oportunidade para rasgar o interior da boca da criatura. Uma vez que o lado direito já estava aberto graças ao ferimento anterior, Jaisen se aproveitou da brecha para ganhar impulso. Dessa forma, com mais espaço à sua disposição, ele rasgou o interior do tigre da direita para a esquerda, levando, consigo, a língua que tentava enrolar-se em seu pulso.
O tigre soltou um urro de dor e abriu a mandíbula, deixando pedaços dele mesmo caírem.
— Perdeu!
O espadachim colocou-se ainda mais para perto e perfurou o céu da boca do espírito, atravessando-o com uma facilidade admirável. Carne foi cortada pela lâmina e Jaisen viu a espada atravessá-lo até o topo.
— Urráááááá!!
Firmou os pés no chão e dobrou os joelhos. Então, como se brandisse a espada perante o corpo, o homem rasgou o céu da boca em dois pedaços, levando consigo o corpo do tigre que bateu de costas contra o solo diante de si. Foi uma cena tão brutal e assustador que deixaria qualquer um abismado.
Baba e sangue cobriam seu corpo, a dor ameaçava dominá-lo por completo. Entretanto, Jaisen não podia parar.
— Háááááá!!
Os cortes começaram a dilacerar o corpo da criatura. Cortes voavam por sua face, corpo, patas e barriga. Membros e órgãos foram dilacerados em uma velocidade considerável, mas com uma brutalidade boa o bastante para compensá-la.
— Chegou a hora.
Eliza soltou um murmúrio e abriu as íris âmbar. Elas ganharam ainda mais cor e brilhavam tão forte quanto a própria esfera azul, concentrada com chi o bastante para se assemelhar a uma estrela. Com todo o poder disponível em seu corpo e conseguido reunir do ambiente, a menina fez a névoa se afastar ao seu redor apenas com tamanho poder.
Segurando Lótus com ambas as mãos, Eliza ergueu o cajado e sentiu quando o espaço se distorceu. Ela viu uma nova barreira nascer dela e se expandir, mandando para longe toda a névoa que estava nos arredores. Mais uma vez, o mar branco foi varrido para longe. E, nesse processo…
— Encontrei.
Inclinando a cabeça de uma forma nada agradável, a menina virou suas íris amarelas como o sol para suas costas. Ela viu uma pequena figura no chão, sentada. Era um filhote de gato branco de olhos azuis. Suas pupilas circulares e pretas se tornaram afiadas ao perceber que fora encontrado.
— Não escapará!
Eliza abaixou Lótus e apontou-a na direção do gato que planejava se esconder novamente. E, da esfera, lançou-se um raio de poder que rasgou o ambiente e a névoa. Foi como uma corrente de chi que abraçou o pequeno ser, envolvendo-o em uma rede cintilante como os selos.
A menina se aproximou e olhou o ser se debater ali dentro, incapaz de fugir. Suas íris olharam para Jaisen, que triturava o corpo do tigre, e voltou-se para o filhote. Ele poderia muito bem ser considerado inocente e gracioso pela aparência. Mas ela sabia, mais do que ninguém, de toda a crueldade causada. Ela sabia, também, que ele fora controlado e usado para tomar aquelas ações fora de sua natureza. O Tigre Branco jamais desejou matá-los, mas fora obrigado a isso.
Com tais sentimentos conflitantes, ela apertou os olhos.
— Então, você não pode ser selado.
A rede de chi tentava apertar o espírito e se encolher, tornando-se um recipiente de poder. Entretanto, o filhote relutava e não permitia. Esse resultado não era apenas porque ele resistia, mas também porque algo o impedia de ser tomado por seus poderes.
— Retorne de onde veio.
Assim dizendo, Eliza pisou cruelmente no espírito e o amassou. Porém, ao contrário do tigre, não foi sangue que jorrou dele. Assim que sua forma original foi esmagada, o corpo se desfez em chi e flutuou para voltar ao local de onde fora invocado. Pequenos pontos de luzes, como vagalumes, voaram na direção de onde Jaisen e estava e passaram por ele, indo além da névoa que se dissipava.
— Tu conseguiu… — disse o espadachim, afastando-se do amontoado de carne e tripas. Ele estava encharcado de sangue — Mocinha?
Eliza se aproximou lentamente, as pernas cambaleando, mas não cedeu. Ela parou ao seu lado e sentiu o corpo entregar-se à exaustão, com Jaisen a segurando pelos ombros. Ele soltou um som de surpresa ao ver que uma linha de sangue escorria pelas duas narinas da curandeira, pingando por seu queixo.
— … Eu… Estou bem…
A menina se afastou e apoiou-se no cajado. Suas íris não mais brilhavam com tanta força quanto antes, mas se viraram na direção de onde os pontos de chi flutuam e sumiram. Lentamente, a névoa começou a se desfazer e sumir.
— O que vamos fazer com esse corpo?
— Deixe-o. Ele vai apodrecer e desaparecerá em cinzas — respondeu a menina, franzindo a testa — Agora, precisamos nos preocupar com outra coisa.
Os dois estavam completamente destruídos. Seus corpos foram levados ao limite e não deveriam mais lutar. Entretanto, ainda que a luta tivesse acabado, a ameaça ainda não sumiu.
Afinal, passos começaram a se aproximar.
Ao contrário daqueles do tigre, não eram pesados e causavam terremotos. Eram passos leves, humanos. Os saltos estalavam contra o chão da rua, chegando aos seus ouvidos. A figura esbelta que surgiu na névoa era conhecida. Ela pisou no sangue e passou por cima dos órgãos, sem se incomodar. Seu chapéu preto ocultava seu rosto, mas não seus lábios carnudos e vermelhos desenhados em um sorriso.
Em sua mão, havia um cristal azul que piscava fraco enquanto recolhia os fragmentos do Tigre Branco.
— Ora, ora… Aparentemente, o Tigre Branco fez um pequeno estrago, mas não do tamanho esperado. — observou Lysa, erguendo seus olhos para a dupla. A máscara característica ocultava seu rosto — Que inútil.
Ela olhou para o cristal azul que piscava, fraco, com uma expressão de desdém que fez o sangue de Eliza ferver.
— Sinto muito por isso — ela voltou a observá-los com as íris cornalinas e inclinou a cabeça — Então, será que podemos começar?