Volume 7 – Arco 3
Capítulo 74: Reunião
A Sede dos Cavaleiros, um local normalmente sereno e silencioso, agora era preenchido por vozes ao redor que se comunicavam como loucos. Em verdade, devido a gravidade da situação, nenhum indivíduo foi capaz de permanecer parado, e todos precisaram se locomover para algum lugar para proteger as pessoas. Guardas uniformizados sacavam suas espadas para conter as criaturas feitas de sangue e carne, outros marchavam rapidamente com um grupo de civis até bunkers e a Fortaleza. A coragem e determinação de outros os faziam atacar sozinhos, acabando por serem facilmente mortos a garras e dentes afiados. Enquanto gritos de dor e ossos quebrando eram ouvidos, sangue vermelho escorria pelas ruas.
O que antes foi uma cidade preenchida apenas pela felicidade e música, agora começava a se tornar um mar de sangue e desespero. Rosnados e uivos das criaturas eram escutados. Elas se movimentavam rapidamente e em bandos, como animais que naturalmente sabiam como e onde atacar. Não eram inteligentes o bastante para entender situações de risco, porém, se você as subestimasse, acabaria em seus estômagos.
As carcaças que restavam eram apenas um pedaço do que antes deveria ter sido um ser humano. Por vezes, as bestas mordiam pedaços do corpo para sugar seu chi, emagrecendo a presa. Ao deixá-la fraca e pálida, incapaz de reagir, dilaceravam-na. Simplesmente cruel assim.
Tão acomodado pelo caos quanto as ruas da cidade eram as celas. A entrada ficava próxima à Sede dos Cavaleiros, mas agora todos estavam ocupados demais para se preocuparem com qualquer outra coisa. Foi por isso que, quando repentinamente o portão de ferro que levavam às celas se abriram e indivíduos magros, com olhos vazios e usando uniformes completamente cinzas começaram a correr desesperadamente, poucos foram aqueles capazes de contê-los.
Para os guardas que estavam ao redor, foi um completo choque. Afinal, ninguém entrou ou saiu por aquele portão. Entretanto, o grupo enorme de prisioneiros que fugia, aproveitando-se das circunstâncias difíceis, não poderia se importar menos. Empurravam-se uns aos outros, descalços. Correram sobre a sujeira e o sangue pelas próprias vidas.
— Parados!
— Não ousem ultrapassar essa margem!
Embora a guarda, que estava em menor número, tentasse contê-los com ameaças, as palavras não surtiram qualquer efeito. Ergueram espadas contra aqueles que correram em sua direção, mas apenas os feriam nas pernas de forma que não pudessem mais fugir. Ainda haviam aqueles que, mesmo incapazes de se colocarem de pé, se arrastavam para longe. Era uma determinação forte o bastante para que lidassem com a dor daquela forma.
A expressão dos homens da guarda mudou de seriedade para nervosismo em instantes. Eles não sabiam o que fazer.
— O que pensam que estão fazendo?!
Uma voz que rugiu como trovão se ergueu e, então, sacando sua espada, o homem nocauteou dois fugitivos, e então rasgou as costas dos joelhos de outro em uma única corrida. A pessoa que se prontificou perante os homens, fazendo desaparecer a expressão de preocupação, foi Tom. O capitão da guarda de cabelos negros com mechas douradas virou suas íris escuras profundas para os guardas.
— Contenham-os! Não importa que estejamos em menor número, precisamos impedir que escapem!
— M-Mas s-senhor…
— O senhor Miura nos deu a permissão para usar medidas drásticas caso necessário.
Tom virou o rosto de expressão forte para outros fugitivos e desviou do ataque desesperado de um, nocauteando-o. Em seguida, impediu a passagens de outros que vinham na mesma direção.
— Por que eles foram capazes de escapar? Conferiram as celas?!
— Senhor! — exclamou outro homem, impedindo a passagem de uma fugitiva que saia aos gritos — Elas apenas se abriram, de repente!
O capitão franziu a testa, pensativo.
— Estão atravessando as ruas e fugindo para o Distrito Comercial!
— Merda! — grunhiu Tom ao aviso, virando-se na direção onde o homem apontou — Não importa o que aconteça, contenham o máximo que conseguirem! Vamos levá-los para a Fortaleza e prendê-los até segunda ordem!
— Sim, senhor!
Enquanto os guardas seguiam suas ordens a passos um pouco ansiosos, o capitão acelerou o passo na direção em que um grupo de fugitivos se dirigia. Os passos deles eram ritmados e fortes. Porém, considerando sua falta de exercício nos últimos anos, eles não seriam capazes de escapar de uma pessoa treinada e que mantinha-se em seu auge todos os dias. Por isso, Tom rapidamente foi capaz de alcançá-los, nocauteando um com a base de sua espada. O fugitivo caiu no chão, duro.
— Ainda tem muitos… Não sei se serei capaz de detê-los sozinho…!
— Cuidaremos dos arredores.
— Contenha os da dianteira, capitão.
Quando duas vozes desconhecidas alcançaram seus ouvidos, Tom arregalou os olhos negros e virou o rosto.
— Vocês são…
— Guardião da Elite Labareda e acompanhante do senhor Over — afirmou um homem de cabelos rubis despontados e pele bronzeada — Isaac Basalto, senhor.
— Guardião da Elite Dourada e acompanhante do senhor Al-Hadid — disse outro indivíduo de expressão séria e olhos azuis bem escuros — Sou Jamal, senhor.
A dupla de aparência forte se apresentou e não pensou duas vezes antes de colocarem-se em ação. Jamal começou a correr em uma marcha que soava nos ouvidos para a direita, onde dois fugitivos seguiam. Em um instante, com uma postura digna de soldado, enrijeceu as palmas das mãos e acertou-as perfeitamente na nuca dos indivíduos, derrubando-os.
Em contrapartida, Isaac não ficou para trás. Por um segundo, quando suas pernas se dobraram e ele saltou, parando de frente para os quatro prisioneiros, pareceu que seus cabelos rubis ganharam o brilho de chamas. Ao contrário de Jamal, que atuou de forma polida, parecia que aquele guardião era um pouco menos delicado. Afinal, ao invés de impedi-los de prosseguir com um ataque na nuca, o homem jogou sua perna para trás e, de repente, como se rodasse com os braços no chão em círculos, Isaac nocauteou os quatro fugitivos com chutes em seus narizes.
Tom arregalou os olhos para a diferença de cada um, mas sacudiu a cabeça e se focou no seu objetivo. Então, sacando sua espada novamente, inspirou profundamente o ar frio.
— Ley.
Suas pernas ganharam uma velocidade sobrehumana e, como um trovão rugindo, deixando uma linha amarela por onde passava, o capitão alcançou os prisioneiros restantes. O nocaute aconteceu tão rapidamente quanto um piscar de olhos.
Tom guardou sua espada novamente e suspirou para os corpos caídos.
— Muito obrigado por sua ajuda.
Isaac colocou uma mão no quadril e sorriu. Jamal apenas deu de ombros, como se não fosse nada demais.
— Nesse momento, todo o apoio será bem-vindo. A capital real está em apuros e não seremos capazes de proteger os civis e a família real se não pudermos nos organizar — falou o capitão, andando de volta na direção da Sede dos Cavaleiros — Portanto, tem minha gratidão por terem vindo.
— Não precisa nos agradecer — disse Jamal, piscando os olhos azuis fortes. Ele passou a mão por seus cabelos castanhos curtos, jogando-os ainda mais para trás — Enquanto a corte está ocupada, precisamos manter a cidade em segurança.
— Era o que pretendemos fazer, porém, parece que as coisas não estão andando tão bem — Isaac balançou os ombros, deslizando seus olhos roxos na direção do outro guardião enquanto colocava os braços cruzados atrás do pescoço — O Jamal falou com uma confiança tão grande que poderíamos fazer isso que nem duvidei. Mas assim que vi o estado da cidade, na hora percebi que ele estava sendo otimista demais.
— Se chama realismo — corrigiu Jamal, incomodado com as provocações do guardião que sorria — E não distorça as minhas palavras.
Isaac fez boca de peixe com os lábios.
— Como sempre, você é todo certinho.
— Estranho ouvir uma crítica como essa vinda do guardião do senhor Over — agora foi a fez de Jamal sorrir em provocação, mas a irritação do outro.
Enquanto o capitão da guarda escutava os dois conversarem como amigos — ou melhor, colegas de longa data —, seus olhos negros se afinaram na direção da Sede dos Cavaleiros. Afinal, ele percebeu, de uma forma ou de outra, que aparentemente todos os prisioneiros possíveis foram contidos.
— Noooossa, mas demora! Achei que ia precisar esperar por mais uma hora antes de vocês voltarem!
— … Sasaki.
— O que foi? Não posso nem mais cobrar o compromisso deles? É de guardião para guardião, oras. Não vejo nada demais nisso.
As duas pessoas que os receberam não foram apenas os guardas reais, que lentamente carregavam os fugitivos desacordados na direção da Fortaleza. Na verdade, foram dois homens de aparências distintas. Um usava uma roupa social preta e falava com uma tonalidade sarcástica. O outro, que o repreendeu com uma voz rouca, estava enfaixado dos pés à cabeça. Seus olhos dourados permaneceram fechados enquanto falava, indicando a falta de interesse no assunto em questão.
— Oh, senhor Sasaki e senhor Diz — sorriu Tom, aproximando-se dos conhecidos para estender a mão. Diz dispensou o ato e apenas o saudou com a cabeça — Muito obrigado por terem vindo. Parece que as coisas se acalmaram um pouco.
— E aí, meu querido Tom?! Quanto tempo! — Sasaki passou o braço ao redor do pescoço do capitão.
— Fazem apenas alguns dias…
— Mas, para o meu coraçãozinho de vidro, foi tempo demais sem te ver!
Diz soltou um suspiro de tédio. E, então, olhou para Isaac e Jamal, que pararam para vê-los. Os olhos dourados apenas percorreram a dupla por um instante e, desinteressado, se fecharam. Uma veia saltou na testa de Isaac ao perceber isso.
— Ei, que falta de educação não nos cumprimentar. Somos colegas de trabalho, não?
— … Não.
Jamal conteve a risada ao ver Diz dispensar sem nem pensar duas vezes as palavras de Isaac, que ficou vermelho como um tomate de raiva. Tom arregalou os olhos para a interação e, por fim, Sasaki interveio batendo palmas:
— Vamos, vamos, pessoal. Não liguem para o Diz, ele é só bastante solitário e tímido. Sabem como é. Ai!
O curandeiro se arrepiou dos pés à cabeça quando Diz o encarou na nuca. Foi quase como um choque direto na espinha que fez Sasaki se virar, pedindo desculpas com as mãos unidas.
— De toda forma — Tom interrompeu, se aproximando do quarteto — Tê-los por aqui ajudará muito. Poderiam nos ajudar a levar os prisioneiros para a Fortaleza? Estou certo de que alguns conseguiram fugir, mas me pergunto a razão de tudo isso ter começado, em primeiro lugar.
— Estão tentando ocupá-los — respondeu Jamal, prontamente — É óbvio que estão ganhando tempo.
— Mas como conseguiram abrir as celas, afinal? — perguntou Sasaki.
O capitão sacudiu a cabeça.
— Não sabemos.
— Qualquer que seja o meio, parece algo perigoso — Isaac empinou o nariz — Vamos prosseguir logo com isso e averiguar a situação no restante da capital.
— Muito bem — falou Tom, tomando a dianteira para guiá-los até as pessoas caídas no chão.
Ao redor, alguns guardas ajudavam na causa, mas eram poucos demais. Eles pareciam nervosos, suor escorrendo por suas têmporas e uma expressão torta na face.
— Estou surpreso que tenha decidido ajudá-los também — falou Sasaki para Diz, andando logo atrás dos companheiros guardiões — Normalmente, você apenas ignoraria esses problemas e diria que não é da sua conta.
Diz abriu os olhos e, de braços cruzados, o respondeu:
— Apenas não gosto das dos métodos tomados pela Ritus Valorem — franziu a testa, olhando para os prisioneiros — Aproveitando-se de pessoas que desistiram de viver…
Sasaki ficou em silêncio, a expressão também se tornando desgostosa.
— … Não poderia concordar mais.
Essa foi sua resposta, aos murmúrios. Como um curandeiro, era esperado que ele detestasse o uso de vidas humanas daquela forma. Controlando os próprios sentimentos, ele inspirou fundo e se focou no próprio trabalho, ajudando a guarda real.
***
— O que está fazendo aqui em Hera? Pensei que ia ficar em Puccón até nós retornarmos — perguntou Ryota para Jaisen.
A dupla conversava de pé, afastados. Quando os problemas com as bestas estranhas finalmente foram acalmados, todos os feridos finalmente puderam descansar novamente, aconchegando-se. A barreira de Eliza firmou-se mais uma vez, permanecendo de pé. Assim como as da floresta que rodeava a antiga mansão de Fuyuki, onde enfrentaram Mania e Shai, aquela era invisível, mas possível de ser sentida quando atravessada.
Ao ouvir a pergunta da garota que franzia a testa e cruzou os braços, esperando uma resposta séria, o homem coçou a nuca.
— Eu precisava vir até aqui, Ryo.
— Mas você ainda estava de repouso!
Ryota bateu o pé no chão e insistiu em apontar o erro de Jaisen. Entretanto, ele não pareceu nem um pouco culpado com a afirmação.
Não que ela pudesse acusá-lo demais. Afinal, a própria Ryota costumava ser bastante imprudente quando se tratava de seus próprios ferimentos e problemas, também.
— Eu me lembro da Liz ter dito que você podia se movimentar e tudo, mas vir tão longe assim… O que estava pensando?
— … Por que tá tão brava?
— Como eu não estaria, tio? — Ryota abaixou os ombros — Eu esperava que pudesse se recuperar completamente antes de sair desse jeito, sozinho. Ao menos… Ao menos, podia ter me avisado que tinha vindo até aqui.
Ryota desviou os olhos de Jaisen, fechando os punhos. Ela não queria dizer em voz alta que temia que algo acontecesse com ele. Não apenas porque estava fraco, mas porque tinha ciência de que muitas coisas das quais a capital estava envolvida provavelmente eram perigosas. E mesmo sabendo do que um homem experiente como ele era capaz, ainda havia uma ponta de dúvida e medo em seu coração que não a permitiam aceitar aquilo.
E, também, ela não poderia contar a ele que viu sua conversa com Albert.
— Por que veio para Hera? — tornou ela a perguntar, agora baixinho.
Jaisen engoliu em seco uma saliva amarga, sentindo-a queimar por sua garganta.
— São assuntos pessoais.
— Como assim assuntos pessoais?
O mais velho fechou os olhos e apertou as pálpebras.
— Você não ia entender…
— … O quê? Como assim eu não ia entender? — a voz da garota falhou, agora olhando de volta para o tio. Dessa vez, foi ele quem desviou os olhos dela. Após um silêncio que pareceu durar uma eternidade, Ryota sentiu uma energia atravessar seu corpo, distorcendo seu rosto em um sorriso azedo e a voz num tom sarcástico ao ponto de ser doloroso — Não me diga que tem a ver com Aurora? Com… Aquela ideia de antes, que conversamos… Por favor, me diz que não tá escondendo nada de mim, de novo…
Ryota esperou que Jaisen contasse a ela a conversa com Albert. Que explicasse a razão de sua partida. A razão da expressão séria e pensativa em seu rosto, que tão dificilmente aparecia. Normalmente, ele era um homem cabeça quente e que falava o que pensava. Mesmo quando fingia estar irritado, Jaisen continuava a demonstrar claramente os seus sentimentos. Ele não era uma pessoa arrogante ou mentirosa, isso ela sabia. Entretanto, uma parte dela doeu ao perceber que, mais uma vez, seria deixada de fora dos assuntos de pessoas que eram importantes pra ela.
— Desde que aquele dia, tio… A gente não tem conseguido conversar direito — sussurrou ela — Desde que você me contou sobre a verdade de Aurora, e eu decidi engolir isso, nunca mais nós pudemos conversar como antes. E isso me deixou muito triste.
Não era como se eles não interagissem. Os dois se cumprimentavam e trocavam palavras casuais, mas não eram mais tão próximos quanto antigamente. Era como se, desde a conversa no quarto, após o despertar de Jaisen, uma grande cratera tivesse se formado entre eles, separando-os. Era desconfortável ter que tocar num assunto tão delicado para ambos, quanto mais continuar a fingir que aquilo jamais existiu.
Ryota não foi capaz de aceitar a verdade, mas não teve escolhas. Jaisen ainda carregava aqueles sentimentos conturbados e pensamentos misteriosos dentro de si. Desde então, eles nunca mais ficaram tão próximos quanto no passado. Ela nunca mais conseguiu ouvi-lo rir de forma natural ou fazer piadinhas com Zero, e ele jamais foi capaz de provocá-la ou tratá-la tão gentilmente quanto um pai faria.
Aquele frio que os envolvia doía demais para ser suportado. E, desde então, Ryota apenas decidiu que faria seu melhor para reatar aquela relação. Ela não ligava para o que eles pensaram de Aurora um dia, só esperava que Jaisen fosse capaz de continuar vivendo ao seu lado, feliz. Dessa vez, eles poderiam lidar e superar as dores juntos, e então viveriam lado a lado. Ela queria ser capaz de entendê-lo, e aceitá-lo por completo. Mas era difícil quando nenhuma das partes era capaz de colocar em palavras as dores que sentiam.
— Tio, me escuta. Eu só quero… Só quero entender o que você está pensando em fazer. Me desculpa por ter ficado irritada, antes. Não era minha intenção te magoar. Eu… Eu amo você, e sinto falta do que tínhamos antes… Antes de… — ela perdeu as palavras, e então segurou os próprios cotovelos, como se abraçasse o próprio corpo — Apenas me diga, por favor. Eu quero poder te ajudar. Eu quero… Quero ficar ao seu lado. Mas, pra isso, eu preciso saber.
Os olhos azuis dela se encheram de lágrimas e pareciam prestes a desabar. Ryota não poderia dizer a ele sobre o fracasso com Albert. Não agora, depois deles terem conversado e discutido. Não antes dela ter certeza do que se passava na mente de seu avô. E, mais do que tudo, não poderia ser capaz de contar a ele tudo o que aconteceu sem antes lidar com todos os problemas que precisavam de uma solução na capital real.
Havia Edward, Fanes, Marie, o ataque à capital e tantas outras situações a serem resolvidas. Dores de cabeças, a queimação em seu pescoço, o medo da perda e o desespero para liberar todos aqueles sentimentos guardados faziam seu pequeno corpo tremer. Se não fosse a presença constante de Zero, que mesmo desconhecendo a origem dos problemas, sempre a apoiava e era seu ombro amigo, enxugando suas lágrimas e dizendo palavras de carinho, ela provavelmente já teria desistido há muito tempo. Teria sido incapaz de continuar trilhando um caminho de culpa, dor e solidão. Mas, enquanto ainda houvesse um pouco de força dentro dela, não pararia.
Seu desejo de consertar as coisas era a razão de despertar todos os dias pela manhã.
Ouvindo as palavras de Ryota, Jaisen inspirou fundo. A espada que estava em sua mão brilhou e então desapareceu, tornando-se uma aliança que foi colocada em seu dedo. Ryota observou aquilo com espanto, mas nada comentou. Ela aguardou pacientemente pela resposta do homem que se virou para ela, torcendo as sobrancelhas.
— Eu também te amo, Ryo… E é por isso que não posso te dizer nada.
— … Por quê?
— Não quero que me odeie por isso… — a expressão desolada dele destruiu seu coração.
Era quase como se ele completasse internamente que se odiasse, também.
E foi exatamente aquilo que a quebrou completamente.
Aquela expressão de culpa, dor e rejeição. Não apenas a si mesmo, à sua própria vida, mas ao mundo e as pessoas. Como se não fosse digno de nada, mas, ao mesmo tempo, desejasse tudo. Era o cúmulo do egoísmo e da fraqueza do ser humano. Ryota era capaz de entender perfeitamente aquilo. A sensação de se sentir perdida e com medo.
Mas o problema não estava no sentimento, e sim na forma de resolução. Ryota, por vezes, optou por enfrentá-lo diretamente ou carregá-lo consigo. Jaisen, por outro lado, o aceitou como parte de si. E, ao fazer isso, era incapaz de se esforçar para mudar.
— Eu não entendo… Eu não entendo…! — Ryota soluçou, sentindo as lágrimas escorrendo por seu rosto — Por que… Por que as coisas acabaram assim…? Por que a gente… Por que todo mundo… Por que ninguém consegue conversar direito comigo…? Por que vocês são assim…? Por que… Por que sempre escondem as coisas de mim?!
Jaisen arregalou os olhos para a garota que se debulhava em perguntas roucas. Ela agarrou os próprios e os puxou. Lembrou-se de Albert. Lembrou-se de Stella. E, agora, pensou na dificuldade da pessoa que considerava como um tio. Ainda que os amasse com a própria vida, nenhum deles foi capaz de lhe contar a verdade. De dar-lhe uma explicação ou sequer tentar. Apenas davam desculpas e desviavam do assunto principal.
— Ryo… — Jaisen estendeu a mão na direção dela, mas a garota se afastou.
— Esquece. Esquece tudo, então… Eu não quero mais saber — fungou ela, limpando raivosamente o rosto molhado — Se não vai me contar… Então, eu não me importo. Faça o que quiser.
Ryota olhou com uma expressão de mágoa e frustração. Ela estava cansada daquilo tudo. Não queria mais ver as pessoas que amava se remoerem por razões que não entendia. Queria poder entendê-las, mas se as próprias eram incapazes de explicar… Então procuraria outro caminho. Se nenhum deles fosse capaz de dar uma razão para suas ações e pensamentos, Ryota não se importaria. Agora, sua maior vontade era encerrar com todos aqueles problemas de uma única vez.
E, também, mais do que tudo, ela não queria brigar com nenhum deles por isso. Portanto, apenas afastou-se e recusou quaisquer desculpas que poderiam vir de sua boca. Ryota deu as costas a Jaisen e começou a andar para longe, marchando para fora da barreira.
— E-Espera! Ryota! — de repente, quando havia se afastado o suficiente, Eliza surgiu ao seu lado, arfando depois de correr — Aonde pensa que vai?
— Voltar ao palácio — respondeu ela, sem se virar.
— Isso é loucura! Você não vai conseguir sobreviver às criaturas se encontrá-las de novo, e também não sabemos se algo pode estar atacando o palácio!
— É exatamente por isso que devo ir. Eu sou a guardiã do futuro rei de Thaleia. Mesmo que tudo seja de mentira, o meu desejo de ajudá-los… A minha vontade de proteger o Edward é real. Então, eu vou voltar ao palácio, sim.
— … Ah.
Eliza soltou um suspiro de surpresa ao ver a alteração de emoções na voz da garota. A vontade exercida nela era imparável, e a curandeira percebeu que não poderia impedi-la. Ainda de costas para ela, Ryota ficou em silêncio. E então, quando percebeu que ela provavelmente não diria mais nada…
— Fique com isso aqui.
A curandeira tocou no pescoço da garota, exatamente acima da marca do voto. Em um instante, a queimação que latejava diminuiu, como se água fosse jogada no fogo, abafando o calor. Ryota virou levemente o rosto para trás, revelando seu nariz e bochechas vermelhos, resultado das lágrimas que haviam caído até pouco tempo atrás.
— Obrigada — disse a ela, fungando.
E assim, deixando para trás Eliza e Jaisen, Ryota disparou na direção do palácio real.