Volume 6 – Arco 3
Capítulo 62: A Vontade de Marie
Por um segundo, o tempo parou. Uma vez que estava completamente focada nos próprios pensamentos, e, por consequência, digerindo ainda sua linha de raciocínio interna e reflexões, foi um pouco surpreendente que uma das pessoas às quais estava pensando tenha aparecido tão de repente ao seu lado.
A garotinha de boa aparência tinha uma expressão séria e mantinha os braços cruzados diante do peito. Era baixa com uma faixa branca envolvendo-lhe os olhos. Usava uma roupa casual e gasta, mas limpa. Vendo-a daquele jeito, usando um tom de voz forte, Ryota quase não acreditou que estava diante de Marie. Era como se fosse a mesma pessoa que conhecera pela primeira vez, firme nas palavras e espertinha nas ações. Porém, havia algo diferente na forma como se portava e falava.
— … Marie? — Ryota sussurrou, ainda com a mente branca — É você mesma?
— Conhece outra garota de cabelos loiros e sorriso tão radiante quanto eu? — brincou ela, dando um sorriso brincalhão.
A garganta não mais arranhava e a voz saia naturalmente, sem qualquer sinal de desgaste. Os olhos azuis se marejaram ao perceber que Marie parecia recuperada, tanto física quanto mentalmente. Ao contrário da última vez em que se viram, com a menina grudada a ela como um animal ferido, a garota bateu a mão no peito liso e falou com determinação. Ao ato, o colar com o botão dourado balançar.
— Mas o que… O que está fazendo aqui?
— Eu vim te encontrar, não é óbvio?
— Ah, sim. Eu entendi, mas… Como?
Ainda era difícil tocar no assunto de sua cegueira sem parecer mal educada ou grosseira, então Ryota hesitou. Porém, Marie não demonstrou qualquer abalo pelo tópico e respondeu prontamente:
— Ah, isso? — apontou para a faixa que cobria a área acima do nariz e riu — Estou me acostumando.
Apesar de ter dito isso, Ryota reparou que ela estava mais se esforçando para aceitar esse fato do que se acostumar com ele pelo jeito com que seu sorriso vacilou.
— Enfim — deu de ombros e, então, apontou o dedo magro para a garota sentada — Eu vim te encontrar sozinha porque precisava falar contigo, tendeu?
— Sozinha? Mesmo?
— Mesmo, mesmo! — Marie colocou as mãos na cintura e estufou o peito, parecendo orgulhosa de si mesma — Ainda preciso da ajuda do coruja do Luccas às vezes, mas jurei que conseguiria fazer isso sozinha.
Ryota torceu as sobrancelhas ao ouvir aquilo, conseguindo imaginar o desespero do rapaz de olhos bicolores. Marie sempre tratou Luccas de forma carinhosa, porém fazendo piadinhas a respeito dele, mas esse seu lado brilhante desapareceu depois do ocorrido nas celas. Porém, vê-la tão cheia de energia agora era revigorante para seu coração.
— Como posso dizer… Ainda é difícil andar e tocar sozinha, mas a escuridão não me assusta mais. Depois de passar tanto tempo convivendo com ela, acho que me acostumei o bastante pra usá-la ao meu favor.
Enquanto falava, Marie estendeu a mão em direção a janela, como se tentasse alcançar a luz do sol que vinha de fora, mas que jamais poderia voltar a ver, e fechou o punho. Ryota observou sua reflexão em silêncio.
— E, além disso — Marie virou-se para Ryota, parecendo analisá-la por uns segundos — Eu quase… Como digo isso…?
— O quê?
Ryota inclinou a cabeça para Marie, que pareceu perdida por um segundo. Então, a menina estendeu lentamente a mão e tocou o topo dos cabelos negros, passando perfeitamente o contorno deles até uma de suas orelhas. Foi um toque ligeiro e direto, sem hesitação ou medo de tatear.
— Eu meio que comecei a conseguir sentir a presença dos outros.
— Sentir?
— É… Quase isso. Como posso explicar? É quase como se eu pudesse ver as pessoas como silhuetas de luz colorida, ou algo assim. Mas não é uma cor forte, é como… Um delineado dos corpos, e às vezes ele fica mais forte e preenche esse corpo. É difícil de entender, não é?
A menina de cabelos loiros sorriu timidamente, ainda com a mão nos cabelos da outra.
— Então, é quase como se você pudesse ver e sentir o chi? — deduziu Ryota, colocando a mão no queixo.
— Talvez? — as duas inclinaram a cabeça — Seja como for, é bastante útil. Parece que meus olhos… Ou meu poder se adaptou à minha nova condição, então agora consigo me mover um pouco melhor graças a isso. Mas ainda preciso me acostumar e melhorar minha sensibilidade a essas luzes… Ou ao chi.
— Isso é ótimo, Marie. Fico feliz por você.
Ryota sorriu de volta e segurou a mão que estava por perto, transmitindo um calor que fez a outra garota alargar o próprio riso.
— … Mas, falando nisso, vindo até aqui, senti algo frio e nojento.
Encolheu os ombros e abraçou o próprio corpo, sentindo os pelos se arrepiarem. Então, Marie voltou-se para o outro lado da mesa. Kuro, que havia terminado de tomar seu café, apenas as observava conversar. A falta de interesse em sua expressão ainda permanecia, porém, ao notar que as duas voltaram sua atenção a ele, o garoto se encolheu no lugar. Escondeu ainda mais o queixo e parte do rosto na gola preta alta.
Era quase como se Marie, através de suas faixas e olhos que não mais podiam ver, sentisse a presença de Kuro. Ryota, ao reparar que a forma com que a garota se direcionava ao outro não era com boas intenções, rapidamente se colocou de pé e sutilmente segurou seu ombro.
— Espera, Marie.
— É seu amigo?
A garota perguntou com um ar de suspeita.
— Sim, é sim.
— Desculpe, mas não vejo nada de agradável em alguém com uma aura tão terrível — murmurou ela, usando um tom de quem estava irritado — Ryota, essa pessoa…
— Eu já entendi, Marie.
Ryota interrompeu a garota de continuar falando apertando um pouco seu ombro. Ficou nervosa ao perceber que o clima agradável rapidamente havia se dissipado e, agora, o rapaz que vestia preto havia arregalado os olhos e desviado sua atenção para o chão. Essa reação apertou seu coração ao ponto de doer.
Não queria suspeitar de Marie ou de seus poderes, mas não conseguia imaginar que um simples garoto como Kuro poderia ser tão perigoso quanto era apontado. Mais do que isso, era quase como se a menina loira o desprezasse apenas por sentir seu chi. E, ao perceber isso, Ryota entendeu que a razão disso era, provavelmente, o elemento ao qual Kuro possuía conexão.
Em termos gerais, enquanto a luz era um elemento que poderia ser sentido como calor, a sombra era o polar completamente oposto. As temperaturas variavam, mas a estranheza maior deveria estar direcionada à origem deste poder. Afinal, yin e yang eram raros de se ver, então era esperado que qualquer um se assustasse ao presenciar ou sentir o poder de qualquer um deles.
Porém, enquanto a luz era agradável e admirável, a escuridão sempre seria solitária e triste.
— Ryota, essa pessoa é perigosa — Marie, ao perceber que Ryota havia parado completamente de falar, decidiu continuar ao dar um passo adiante na direção de Kuro. Então, bateu a palma na mesa com força para chamar sua atenção — Não fica falando com quem não é da sua laia e cai fora!
— O qu-... Marie!
— Eu não tô nem aí pra quem você é, mas não fica se aproximando dos outros desse jeito!
Ainda que Marie desconhece completamente a aparência daquele com quem falava, ela não parecia se importar nem um pouco e confiou plenamente em seus próprios sentidos. Ryota ficou em choque ao vê-la elevar a voz e apontar o dedo para o garoto encolhido, percebendo que deveria ser assim que Luccas se sentia algumas vezes enquanto estavam em público.
Não era vergonha por chamarem a atenção das pessoas ao redor, mas apenas choque que corroía o corpo por vê-la ser tão corajosa e ousada para chegar a esse ponto.
— Quem você pensa que é, hein?
— Chega, Marie! Não grita com ele desse jeito!
Ryota segurou a garota pelo cotovelo e parou seus avanços.
— Me solta!
— O que deu em você, afinal? Por que ficou tão irritada do nada?
A menina tinha parado ao ser chamada, mas se sacudiu até se soltar quando ouviu as perguntas.
— Por que tá do lado dessa pessoa?
— Eu já te disse que ele é meu amigo.
— E vai confiar nele? Mesmo ele sendo-
Marie começou a tentar se explicar, baixando o tom de voz, quando parou ao sentir Kuro se colocar de pé. Ele, então, de cabeça baixa, saiu da mesa e caminhou para fora da cafeteria, em silêncio.
— Espera!
Vendo-o ir tão rapidamente, Ryota soltou Marie e disparou atrás do garoto que saiu. Do lado de fora, Kuro passeou por uma sombra, parecendo prestes a ir embora, quando foi segurado no ombro.
— Espera, não vai. Ela só… Ela só tá confusa. Eu explico pra ela a verdade, tabom? Deixa comigo. Por isso-
Desesperada para fazê-lo ficar, implorou usando qualquer justificativa que viesse à mente. Ryota se sentiria realmente mal se Kuro apenas fosse embora daquela forma, cabisbaixo. Enquanto falava, os olhos negros dele ainda permaneciam no chão. Mas antes que pudesse ser capaz de convencê-lo apropriadamente, o garoto apenas escapou das mãos dela e atravessou uma parede coberta por sombras, desaparecendo.
Suas mãos inertes no ar lentamente voltaram para o lado do corpo e Ryota soltou um suspiro pesado. O silêncio de seus ouvidos foram lentamente preenchido pelos sons da cidade grande, pelas vozes, passos e música que tocavam nas ruas. Inspirou fundo antes de dar meia volta até a cafeteria, onde Marie a esperava com os braços cruzados e as costas contra uma parede.
— Ele foi embora?
— Foi — Ryota respondeu, contendo a amargura em suas palavras — Não precisava ter sido grosseira daquele jeito, sabia?
— … Desculpa.
A menina virou a cabeça para o outro lado e murmurou, fazendo Ryota soltar outro longo e doloroso suspiro. Apesar de tudo, Marie ainda era uma menina cabeça dura e difícil de lidar. Porém, apesar de seus atos, havia uma razão por trás para suas palavras.
— Eu te desculpo — se aproximou para tocar o topo de sua cabeça, fazendo carinho em seus cabelos — Mas precisa pedir desculpas pro Kuro depois também, entendeu?
— Hã? Por quê?
— Porque ele não é uma pessoa ruim.
— Mas-
— Eu não estou desconfiando dos seus poderes, mas não quero acreditar que o Kuro seja alguém ruim apenas por isso, entende?
Marie ficou em silêncio, emburrada. Ryota riu de sua expressão, ainda batendo carinhosamente a mão em sua cabeça.
— De toda forma, agradeço por ter tentado me proteger, mas vamos deixar esse assunto de lado por enquanto, pode ser? Veio me ver porque precisava me dizer algo, certo?
Apesar de Ryota desejar fazer Marie se arrepender de seus atos, percebeu que acabariam tomando tempo demais naquela conversa e decidiu mudar o assunto para aquilo ao qual era mais importante no momento. Ouvindo aquilo, a menina assentiu e ergueu o queixo.
— É sobre aquilo que o Luccas queria te dizer ontem.
— Ah…
Imediatamente, os rostos se tornaram sérios, assim como o tópico exigia. Marie segurou a mão esquerda de Ryota e indicou a cafeteria com a cabeça.
— Mas esse papo vai demorar, então que tal a gente comer alguma coisa enquanto isso? Você paga.
***
Ryota bebeu o restante de seu suco de morango antes de depositar o copo vazio sobre a mesa. Seus olhos fitavam a garota de cabelos loiros, que recém havia terminado de falar. A verdade era que estava muito chocada. Surpresa demais para conseguir expressar qualquer opinião plenamente formada sobre o assunto, por isso, apenas permaneceu em silêncio, um pouco aérea em seus pensamentos, considerando consigo mesma como nunca havia percebido nada daquilo antes.
Se parasse para pensar, era realmente óbvio. Agora poderia ser um pouco difícil de apontar as semelhanças, mas os dois irmãos tinham cabelos loiros de tonalidades parecidas. Suas personalidades eram completos opostos, porém, em contrapartida, os olhos violetas com um aro dourado nas pupilas não era realmente estranho para a garota — afinal, os havia visto pela primeira vez na cidade, em Marie. Porém, enquanto as íris de Edward eram violetas como os cabelos de Zero, as de Marie eram rosadas. Nunca se esqueceria do quão maravilhosas elas eram, e as do príncipe não eram diferentes. Encantadoras ao ponto de que, se parasse para observá-las, não conseguiria desviar o olhar.
Mas, além disso, havia outra coisa que era semelhante entre os dois… Ryota não havia percebido a princípio, mas então, quando se lembrou de quando conheceu Marie, na cidade, imediatamente sua mente recordou-se também de como conheceu o príncipe. Não foi na sala onde fizeram o contrato, no palácio, mas ele a havia levado para longe de seu quarto com alguma habilidade estranha para poderem conversarem. Havia se esquecido completamente disso até então, porém, comparando com as informações, as coisas faziam sentido agora.
Edward e Marie eram capazes de usar teleporte. A sensação era, inclusive, a mesma. Entretanto, aparentemente Edward conseguia fazer isso à longas distâncias e sem olhar para o local teleportado, enquanto a garota ainda não era capaz de fazer isso. Era curioso, uma vez que supostamente Edward não deveria conhecer tantos lugares ao ponto de se teleportar à vontade para qualquer um, enquanto Marie e Luccas viajaram por vários locais ao redor do reino.
Bem, eram detalhes que podiam ser deixados de lado, por enquanto.
Mas, agora que estava ciente disso, os conflitos envolvendo a garota faziam muito mais sentido. O sequestro de Marie, as viagens de Luccas, a busca incessante de alguém dentro do palácio pelos seus olhos e poderes, a necessidade de mantê-la sob suas mãos e controle, os poderes, a história contada por Edward para ela… Lentamente, as peças começavam a se encaixar.
E, mais do que nunca, Ryota agora olhava de outra forma para a menina à sua frente.
— Então… — começou a sussurrar — Isso significa que você é uma princesa.
— É… Tipo isso.
Ryota falou como se fosse algo incrível, mas Marie respondeu dando de ombros. Era nítido o nível de importância que cada uma dava ao fato, e a garota mais velha não podia deixar de sentir borboletas flutuarem em sua barriga ao imaginar essa possibilidade. Se fosse com ela, possivelmente teria ficado feliz com a notícia. Era o tipo de situação inusitada e surpreendente que apenas acontecia com protagonistas de livros, certo? Um sonho para todo leitor.
Entretanto, Marie apenas permanecia séria e desinteressada. Ryota não poderia culpá-la, afinal, viver viajando durante toda a sua vida — ou melhor, fugindo durante toda a sua vida — enquanto precisavam sobreviver com tão pouco deveria ter sido terrível. Não apenas difícil, mas também uma luta constante pelas próprias vidas. Não conseguia imaginar o peso que Luccas deveria ter carregado por mais de dez anos em seus ombros, mas conseguia entendê-lo por ficar tão preocupado com a menina diante de si o tempo todo.
— Mas então… Isso significa que você pode reivindicar o seu lugar na realeza, certo?
Ryota imaginava uma situação semelhante a de que Zero passava no momento, mas talvez com muito mais facilidade. Afinal, não havia dignidade a ser recuperada, e a prova sanguínea era possível graças à existência de Edward. Era apenas chegar e tomar seu lugar de direito.
Porém, Marie negou veemente com a cabeça.
— É claro que não.
— Hã? Então, há mais algo que precisa ser feito antes?
— Não, eu só não quero.
Um silêncio constrangedor se seguiu até que Ryota gaguejasse, chocada:
— V-Você… Não quer…?
— Claro que não. Não vejo graça alguma em morar naquele palácio ou me tornar princesa. Que idiotisse — concluiu a garota com um ar orgulhoso e de braços cruzados — Já disse isso para o Luccas e ele concordou.
Ele concordou?! Sério mesmo?!
— Mas por quê? Digo, você não tem interesse em viver uma vida de luxo ou ser rainha? Ainda tem bastante tempo pra você se preparar, e tenho certeza de que Edward e todos os outros te receberiam de braços abertos…
— Não é esse o problema.
Marie negou mais uma vez as qualidades de viver como princesa com a mão, surpreendendo ainda mais Ryota. Era como pegar uma chance de ouro e apenas tacá-la na lama. Porém, essa possibilidade sendo jogada fora não era nada atraente para a menina, que ergueu o queixo para falar:
— Eu não preciso de nada disso.
A resposta foi alta e clara.
— Não preciso de vestidos, jóias, festas e nem nada assim. Que coisa idiota ficar esbanjando isso tudo.
— Então…
— Eu só quero… — Marie baixou o tom de voz, parecendo um pouco constrangida — … Viver uma vida normal com o Luccas. Só isso.
… Ah. Faz todo o sentido, agora.
Elas eram iguais, afinal.
Ryota fechou a boca escancarada e suspirou. Não havia razão para julgar o desejo de Marie, uma vez que ambas desejavam o mesmo. As duas nasceram e viveram vidas simples, então, ainda que hajam sonhos grandiosos, não significa que desejem viver uma vida de luxo. Marie, em especial, teria todo o direito de querer, mas, assim como Ryota, sua única vontade era viver um dia-a-dia comum com as pessoas que amava e considerava família. Mesmo que não fossem parentes de sangue, o laço forte jamais poderia ser quebrado ou manchado.
Pensando dessa forma, Ryota sorriu para a decisão da menina, que toda vez que mencionava algo sentimental sobre Luccas ficava sem graça. Ela parecia menos orgulhosa do que antes, então era possível dizer que a experiência no palácio a havia amadurecido um pouco. Ryota duvidava que ela talvez hesitasse em ter aquela mesma resposta se ainda fosse a mesma garota que conheceu nas ruas de Hera.
— Eu entendo o que quer dizer, Marie. E você está certa — aprovou a garota de cabelos negros sua decisão, segurando a mão que estava sobre a mesa — Tem todo o meu apoio.
Havia algo de tentador em viver uma vida simples dessa forma. E, para Marie, era realmente seu maior sonho e vontade desde o início: Dar a Luccas o descanso e recompensas merecido por todo o sacrifício feito por ele até agora apenas pelo seu bem. E, se pudessem lidar com a situação no palácio, seria possível para que os dois pudessem viver esse sonho juntos sem problemas.
— … Se eu pudesse resolver as coisas, isso seria possível, não é?
Ryota sussurrou sozinha o pensamento e refletiu. Se pudesse lidar com isso, Marie e Luccas poderiam viver felizes. Eles poderiam recomeçar, como mereciam. Não havia mais culpa em seu coração pelo ocorrido nas celas, pois o estrago feito foi consertado e a garota de cabelos loiros jamais aceitaria ver sua salvadora se culpar tão vergonhosamente. Porém, Ryota queria ser capaz de fazer mais. Ser capaz de cumprir com a sua palavra a pessoas que prometeu, mas também ajudar ainda mais aqueles que estão ao seu alcance.
Se pudesse fazer isso… Se pudesse ser capaz de mudar as coisas para Edward e Marie…
— E você pretende se encontrar com seu irmão, certo?
— Sim — respondeu, determinada — Mas quero fazer isso sozinha.
Era uma decisão corajosa, e Ryota respeitava — e quase invejava — essa força.
Após pagarem o que comeram, as duas saíram para as ruas novamente. Agora era possível ver que deveria ser de tarde, e Ryota notou que estava realmente ferrada. Suor de nervosismo passou por sua testa e mãos.
O Edward vai me matar por ter desaparecido de novo…
O príncipe era compreensivo e um bom amigo, mas até ele tinha limites para sua paciência. Enquanto se perguntava quais desculpas encontraria para justificar sua ausência e considerava a melhor rota para chegar ao palácio, Marie segurou sua mão úmida. Com a outra, segurou o botão de seu colar.
— Não se preocupe, vou te levar de volta para o castelo — garantiu Marie, como que sentindo sua preocupação — E posso sentir Luccas, então vou ir até ele logo depois.
Ryota sorriu e concordou com um som saído da garganta. Um misto de felicidade com orgulho aflorava em seu peito ao ver a menina agir daquela forma novamente.
— Obrigada, Marie.
— É apenas uma compensação pelo café da manhã — brincou a menina, antes de começar a usar sua habilidade e fazer o mundo tremer.
Quando seu estômago começou a se revirar e contorcer dentro de si, Ryota piscou a tempo de ver a paisagem da cidade diante de si se torcer e sumir.
***
Afastada, porém não longe demais, uma mulher de boa aparência estava sentada. Era um ambiente pequeno e fechado, uma sala para repouso onde podia fumar apropriadamente sem ser incomodada por ninguém. Seus olhos se fecharam, aproveitando o pouco de luz do sol que adentrava pela janela e tocava-lhe o rosto antes de sentir a presença de mais alguém.
Não foi ouvido o som de abrir a porta ou passos. Porém, era possível sentir o poder da pessoa que se aproximou para se sentar timidamente ao seu lado, encostando a testa contra seu braço descansando em seu colo.
Gê deslizou os olhos negros para baixo e deu um sorriso caloroso, erguendo os dedos da mão esquerda para afagar os cabelos de Kuro.
— O que foi, querido? Voltou cedo.
Os olhos se estreitaram e brilharam para a criança que deitava contra seu corpo, querendo atenção e afago, mas o garoto não mudou sua expressão neutra. Continuava em silêncio ao receber o cafuné lento e agradável nos cabelos, os olhos encarando o nada.
Gê tragou mais uma vez seu cigarro e expirou a fumaça pela boca.
— Parece um pouco abatido — observou ela, embora ele jamais tenha dito ou expressado nada daquilo — Algo aconteceu?
— … Não.
Apesar da resposta, Gê entendeu que era o jeito dele de ser teimoso quanto aos próprios sentimentos. Então, apenas suspirou pesado para esse lado dele.
— E? Como foi?
— Cumpri a ordem, como pediu… Mãe.
— Bom menino.
Depois de ser elogiado, Kuro escondeu ainda mais seu rosto na gola da roupa e fechou os olhos, aproveitando o momento agradável com sua mãe. Apesar de Gê estar preocupada com o que poderia tê-lo feito ficar amargurado, não insistiu em perguntar e apenas o deixou descansar em seu colo.