Volume 6 – Arco 3
Capítulo 60: Difícil Reencontro
O sol lentamente começou a sumir quando a tarde deu as caras. O frio da estação finalmente se revelou, permitindo que ventanias não muito agradáveis rodeassem pelo local. No palácio, ainda haviam as paredes para proteger-se daquele clima, porém, do lado de fora, era fácil sentir os pêlos se arrepiarem. Não estava frio o bastante para que a respiração condensasse, mas, ainda assim, Sasaki esfregava os próprios braços enquanto assobiava.
Ao seu lado, Diz lhe lançou um olhar entediado antes de voltar-se para trás. O trio, que havia saído do castelo e andava pelas ruas de Hera, estava isolado. À distância, ainda era possível ouvir o som de música e de conversas inabaláveis. A festa em comemoração à coroação do novo rei continuaria sem parar, ainda que as pessoas ficassem exaustas.
O grupo seguiu pelos becos e ruas isoladas, se afastando cada vez mais do centro e dos altos sons. Em um local onde o sol já não mais batia, o ambiente gelado com céu nublado parecia prenunciar o encontro que haveria. Afinal, atrás da dupla que estava em silêncio, seguia-os um homem de aparência elegante e cabelos grisalhos.
Albert manteve-se à distância de Sasaki e Diz, seguindo-os como havia pedido. Porém, era claro para ambos que não havia a necessidade de conversarem. Afinal, não demorou muito para que chegassem ao local prometido, ao lugar onde se encontrariam com alguém.
Por isso, quando fizeram uma curva e caminharam na direção de um homem que estava parado de costas com os braços cruzados, não foi surpresa para ninguém que ele fosse a pessoa que desejava conversar com Albert. O Megalos, em especial, apenas piscou um pouco surpreso ao se aproximar, reconhecendo a figura alta e forte com pele escura. A careca e as roupas simples ainda eram as mesmas de que se lembrava, porém, assim que Jaisen se virou para o trio que parou diante dele, sua expressão desmanchou-se de neutralidade para seriedade num instante.
— Olha só se não é o grande Jaisen! Como vai? — cumprimentou Sasaki sem qualquer hesitação, estendendo a mão — Faz um tempo desde que não nos víamos.
Por um segundo, Jaisen franziu a testa, como se tentasse reconhecer a dupla que chegou perto primeiro. Porém, ele rapidamente desfez a expressão e deu um sorriso que mais se assemelhava a um aperto de lábios.
— E não é que tu cresceu um monte, rapaz? Mas continua com a mesma cara de bobo.
— Nossa, que maldade! E eu achando que ter te ajudado antes ia melhorar nossa relação, mas pelo jeito me enganei… — Sasaki fez uma cara de decepção, murmurando algo baixo demais para os outros entenderem, antes de estender o braço e apresentar o homem enfaixado ao lado — Mas se até de mim você se esqueceu, com certeza não vai lembrar dele, não é?
Diz desviou os olhos quando Jaisen se virou para ele, piscando.
— Esqueça. — apenas disse Diz, dando um passo para o lado e se afastando para as sombras.
— Ele continua tímido como sempre — brincou Sasaki de novo, piscando antes de mostrar seriedade — Mas, como você pediu ajuda pra mim mesmo sem nem saber direito quem eu era, acho que não posso subestimar sua intuição.
Apesar da tonalidade menos brincalhona e com um quê de provocação, Jaisen apenas continuou dando um sorriso levemente desconfortável para o homem de cabelos negros que insistia em ser aquele que manteria o clima agradável para todos. Diz sequer se apresentou, então Jaisen o ignorou completamente, sem se esforçar para se recordar de quem era, embora o homem enfaixado não parecesse se importar.
Entretanto, de todos ali, havia uma única pessoa que quase não mudou nos últimos dez anos.
— De toda forma, fiquem à vontade para conversarem.
Percebendo que Jaisen sequer prestava atenção em suas brincadeiras, Sasaki apenas se afastou rapidamente para perto do amigo enfaixado, permitindo que os dois homens mais velhos se encarassem. O som da ventania foi, por um instante, tudo o que seus ouvidos puderam ouvir. O clima entre o grupo não era dos mais agradáveis, mas quando aqueles dois finalmente pudessem conversar cara a cara um com o outro, Sasaki teve a impressão de que as coisas não andariam para um bom caminho.
— Vai ficar tudo bem? — sussurrou, então, para Diz, que permanecia em completo silêncio — Eles não parecem muitos felizes de se ver…
— Apenas deixe-os em paz — respondeu o homem, para o descontentamento de Sasaki, que suspirou.
Jaisen fechou os olhos, como se controlasse a respiração, e os abriu novamente antes de se aproximar do velho. Albert ergueu a cabeça, ainda mantendo uma postura digna de um nobre, parecendo, mais uma vez, completamente alheio ao clima estranho do ambiente.
— Há quanto tempo — cumprimentou Albert.
— É, há quanto tempo, vovô.
Apesar dos sentimentos que colapsavam no coração, Jaisen não se permitiu levar por eles. Ainda que fosse capaz de fazer isso, ele percebeu que não sabia exatamente o que queria dizer ou fazer, quem dirá como reagir. Ao homem perante si com uma aura inabalável, perguntou-se se tê-lo chamado às escondidas foi o correto.
Enquanto pensamentos iam e vinham, notando sua dificuldade em dar continuidade à conversa, Albert soltou um suspiro.
— E então? A que devo seu convite?
— “A que deve”? Tu sabe… — quando o tom começou a subir e as emoções ferverem, Jaisen se conteve, fechando os punhos ao lado do corpo — Tu sabe o que aconteceu com o vilarejo?
— Faz mais de dez anos desde a última vez que o vejo e é dessa forma que me cumprimenta? Parece que não mudou nada… Me trás um pouco de nostalgia.
Albert falava como se estivessem apenas bebendo chá durante a tarde, como velhos amigos se reencontrando para colocarem as conversas em dia. E poderia ter sido dessa forma que o reencontro ocorreria se as atitudes tomadas no passado fossem diferentes.
— Nostalgia?
— Sim, nostalgia. Mas sinto que não estamos aqui para falar sobre o passado… Ou estamos?
Parecia que o tópico do assunto não o agradava, mas Jaisen sequer se importou.
— Me diga, como foi que chegou até a capital? — perguntou o velho, inclinando a cabeça.
— Por que eu deveria dizer?
— Estou apenas tentando conversar, não podemos?
Jaisen franziu a testa antes de suspirar, respondendo duramente:
— Peguei carona.
— Carona? Com quem?
— Com uma pessoa a quem eu e a Ryo nos aliamos.
Albert se calou.
— Eu vim sozinho falar contigo porque é de um assunto muito importante, e quero que seja sincero comigo.
— Quando não fui sincero com você?
— Tu pode achar que me engana se fingindo de tolo, mas eu sei perfeitamente o quão espertinho cê é.
O velho deu um sorriso sábio para o careca que lentamente começava a se irritar, ainda alheio aos sentimentos dele. Vendo de fora, era como se Albert apenas estivesse brincando com as emoções de Jaisen.
— Fala de mim como se eu fosse uma pessoa terrível. Está perdendo o controle de suas emoções, então que tal se acalmar um pou-
As palavras de Albert sequer chegaram a ganhar uma conclusão, pois o murro dado em seu rosto o fez voar para longe. O velho caiu no chão fazendo um som terrível, assustando Sasaki, que foi impedido de avançar para ajudá-lo por Diz, segurando seu braço e balançando a cabeça em negação.
Albert tossiu, sentindo sangue escorrer por seu nariz e boca. Manchas vermelhas se espalharam por seu rosto, pingando no chão sujo da avenida. Para qualquer um, parecia uma injustiça ver um homem com aquela idade ser atingido tão brutalmente na face por alguém tão forte quanto Jaisen, que distorceu a expressão raivosa. Entretanto, mesmo depois de receber um golpe que certamente quebrou seu nariz e latejava de dor, Albert se colocou de pé sem dificuldades, apenas limpando o sangue nas mangas das roupas. O sorriso de antes se desmanchou, e a expressão da pura neutralidade, como se realmente não se importasse com o que havia acabado de acontecer, surgiu em sua face.
— Isso é tudo?
Foi uma provocação barata para alguém como Jaisen, que rapidamente perdia a cabeça e não conseguia interpretar a intenção das palavras de Albert. Para o homem, que outrora foi apenas dono de um restaurante isolado do mundo, era como se estivesse pisando em cima não apenas dos seus sentimentos, mas também dos de todos em Aurora.
— “Isso é tudo”? O que quer dizer com isso, seu maldito?! Eu que deveria perguntar isso a você!
Jaisen avançou como um touro para cima do velho, que permaneceu parado, sem reagir, quando foi segurado pela gola e erguido do chão. Os dois se encararam profundamente.
— Me solta, Diz! Precisamos pará-los! Desse jeito-
— Deixe-os — repetiu o homem enfaixado, também observando o desenrolar da cena.
— Mas-
— Não é um assunto de nossa conta. Deixe-os se resolverem.
Sasaki parou de lutar contra Diz, que apenas o segurava sem fazer qualquer força pelo antebraço. A expressão do curandeiro continuou preocupada ao olhar para a dupla que discutia.
— Como ousa me encontrar desse jeito?! “Isso é tudo”? E que tal se eu voltar essa pergunta pra tu? Isso é o que tem a me dizer depois de tudo o que fez?!
— O que fiz? — repetiu Albert.
— Não se faça de idiota!
— Parece que está interpretando a situação de forma errada, Jaisen. Ainda não estou entendendo de que está falando.
Jaisen apertou ainda mais o puxão na gola do velho, fazendo-o mostrar uma expressão leve de resistência, mas nada fez para impedi-lo. Em contrapartida, Jaisen, levado pelas emoções, apertou-o forte antes de soltá-lo novamente.
— Então, era verdade, não é? Ou será que tudo o que me falou um dia foi mentira? Que nós poderíamos recomeçar, que todos nós poderíamos ter uma vida de redenção e tentar mudar… Mas do que adiantou se tudo se desfez em pó tão rápido?
Lágrimas escorreram e pingaram no rosto de Albert. Jaisen começou a chorar, soluçando raivosamente. Sua expressão era de alguém que pensava em algo longe, como se lembrasse de algo.
— Por quê? Por que você fez isso tudo? Por que nos levou pra lá se… Se tudo… Foi em vão?
— Você se arrepende de ter ido morar em Aurora?
— É claro que não!
— Então, por que está me fazendo perguntas retóricas? Se não há arrependimentos, não há nada para se lembrar ou temer.
— Tu… Tu sempre é desse jeito!
— “Desse jeito”, como?
A troca de respostas e apontamentos era completamente desconexa e sem sentido. Perguntas eram feitas, mas resposta alguma era dada. Ao mesmo tempo, será que realmente havia algo que precisava de um sentido? Sob quais circunstâncias aquilo era decidido, se a verdade sempre foi clara para ambos? Ainda que os de fora jamais pudessem compreender, jamais pudessem entender o sentido de terem se levado àquele destino, por que agora discutiriam sobre algo que já aconteceu?
De fato, o arrependimento nada mais era do que o pesar do coração de alguém por algum erro cometido no passado. A pura negação ou desistência, a percepção de ter cometido um ato que não deveria ter feito. Então, quando se levava isso em conta, as palavras de Albert eram verdadeiras. Se não havia arrependimento sobre a decisão, não deveria haver também memórias ruins ou razão para se recordar com tanta vontade de algo. O que aconteceu, aconteceu. O passado não podia ser mudado, não importava o quão forte fosse o sentimento de alguém. Não há temor ou raiva que possam alterar o resultado de um arrependimento… Se é que havia algum.
Mas, para Jaisen, realmente não havia arrependimentos. Ele jamais teria sido capaz de tomar uma atitude diferente no passado. Se pudesse voltar com sua mentalidade de agora, poderia ter tido uma visão diferente, mas provavelmente teria acatado ao mesmo futuro. Isso porque ele era fraco e incapaz de lidar com os próprios erros, era incapaz demais de poder lidar com eles diretamente sem ferir seu próprio orgulho.
Então, era mais fácil jogar a culpa em outra pessoa. Mais especificamente, na pessoa a qual havia levado todos para aquele local, que futuramente se tornaria um campo de cinzas sem vida. Porém, qual era a culpa de Albert naquilo tudo? A que estava acusando-o?
Não, não era sobre acusá-lo de algo. Albert não foi responsável diretamente pelo ocorrido. E, com certeza, não havia arrependimento.
Porém…
Jaisen amaciou os olhos que haviam se apertado em fúria, baixando o tom de voz.
— … Eu quis acreditar em você. Quis acreditar que a sua oferta não era boa demais pra ser verdade. Mas tu é sempre desse jeito… Fala coisas dão esperanças, faz as pessoas acreditarem que podem mudar, que podem ter uma vida nova… Mas vira as costas e deixa os problemas para aqueles que acreditaram nas suas palavras sem qualquer remorso. Tu pode achar que isso não é problema seu, que isso não te torna uma pessoa ruim… Mas saiba que criar raízes de esperança em alguém e trair esses sentimentos sem pensar duas vezes te torna algo ainda pior.
Ainda que falasse daquela forma, Albert não esboçou uma única reação às provocações. Jaisen, por sua vez, pareceu conseguir conter os sentimentos fervorosos que cresciam dentro de si, permitindo que uma conversa civilizada se desenrolasse.
— Se me perguntou isso, quer dizer que tu não se arrepende de nada, não é? — continuaram falando baixinho.
— E isso importa?
— Importa.
— Por quê?
O careca piscou devagar, olhando no fundo das íris douradas do velho.
— Eu fui uma pessoa horrível no passado, assim como todos que moravam em Aurora. Todos nós nos arrependemos dos nossos pecados, e desejamos poder recomeçar nossas vidas. Ainda que a gente soubesse que um dia teríamos que arcar com as consequências, pudemos aproveitar as coisas até o fim. Tanto eu, quanto você, sabíamos disso. Mas jamais perdoarei ter envolvido pessoas inocentes no meio e levado elas pelo mesmo caminho.
Aquelas eram palavras que não vinham apenas de Jaisen. Vieram, principalmente, de Ryota, que uma vez brigou com ele por ter desejado a morte ao invés de permanecer vivo por mais tempo. Quando revelou que tudo havia acontecido porque apenas esperavam que aquele momento chegasse, ela não conseguiu aceitar. Ainda que muitas dúvidas rondassem sua mente — a razão de terem aceitado um destino daqueles e o que fizeram no passado de tão ruim —, a garota decidiu engolir tudo e abraçá-lo. Decidiu que aquilo não era mais importante do que tudo o que haviam feito por ela desde então.
E foram aqueles sentimentos, aqueles momentos puros de pessoas que desconheciam a verdade que salvaram e destruíram seu coração. O ajudaram a ser capaz de tentar de novo, mas fizeram a culpa torná-lo amargurado com o futuro que em breve chegaria. A contagem regressiva era como um tique-taque incessante ocupando suas mentes. Mas eles jamais contariam a verdade às crianças e jovens que nasceram e cresceram ali — eles não poderiam, não importava o quanto de esforço fosse colocado.
Quiseram acreditar que o futuro nunca chegaria. Que o tempo passaria e eles morreriam naturalmente, com o tempo. Queriam acreditar que a justiça de seus atos jamais os incomodaria. Porém, chegou mais cedo do que imaginavam, e de forma mais dolorosa do que esperado.
Jaisen desejou ter morrido naquele dia. Ele desejou, pelo menos, morrer salvando uma das pessoas que passou a mais amar no mundo. Mas foi incapaz de fazer as duas coisas, e pecou novamente graças a isso. Agora, no entanto, mesmo com as reconciliações, não era mais capaz de olhar para Ryota sem sentir vergonha do que fez ou sentiu. Ele desejava, mais do que tudo, ser capaz de realmente mudar e deixar o passado para trás, assim como Albert dizia.
Mas será que esquecer do passado era a coisa certa a se fazer?
— A Ryo esperou por você durante todos esses anos.
Mais uma vez, Albert se calou.
— Ela sempre esperou por você. Todos os fins de semana, ficava ansiosa para que alguém descesse dos trens. Com o tempo, o rapazinho… O Zero começou a fazer isso. Mas, no fundo, ela ainda esperava que mais alguém aparecesse. E, mesmo depois disso tudo, ela ainda… — conteve os sentimentos e as palavras que ameaçavam emergir como uma chuva de agulhas e os engoliu — … Só queria que soubesse disso.
Jaisen soltou a gola de Albert e se afastou, passando direto pelo velho parado, caminhando para longe deles. A expressão de ambos era cabisbaixa, pensativa. Tocar no assunto principal era algo difícil para os dois. Porém, pelo menos um deles era capaz de fazer isso sem ter medo.
Quando ergueu as íris douradas, Sasaki e Diz não estavam mais lá. Sozinho, Albert inspirou fundo antes de, minutos mais tarde, dar meia volta e voltar ao palácio.