Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 6 – Arco 3

Capítulo 59: Realidade Imutável

No jardim iluminado pela fraca luz do sol, dentro de um caramanchão que permitia apreciar a fria brisa suave, Zero se encolheu perante as pessoas que estavam ao seu redor. O grupo que se sentava em uma mesa circular elegante era composto por cinco membros da corte com personalidades e expressões completamente diferentes. O rapaz se sentiu levemente deslocado ao escutar a interação, apertando os olhos quando Al-Hadid, mais uma vez, ergueu o tom de voz enquanto fazia gestos exagerados.

— Minha nossa! Como esse bolo é recheado! Está escapando entre meus dedos, há, há! Veja, senhor Juan!

— Sim, estou vendo… Por favor, pode se afastar um pouco com esse doce? Está espirrando para todos os lados.

— Não seja tão tímido. Você e o senhor Shin são sempre tão reservados! Aqui, provem! Abram a boca!

— Não! Lorde, por favor! D-Dona Sofia, diga algo para ele!

Enquanto Juan se afastava a todo custo das investidas inocentes de Omar, que segurava com uma das mãos uma espécie de bolo recheado com creme de leite, Shin estava pleno sentado logo ao lado bebendo sua xícara de café preto. Ignorou completamente a bagunça que acontecia diante da mesa, e apenas abriu um dos olhos quando mencionaram a donzela de olhos fechados do outro lado.

Sofia, com seu sorriso casual, apertou os olhos.

— Ora, dizer o quê?

— Sua…!

Juan fez uma expressão de raiva para ela, que se fez de boba. Enquanto lutavam sozinhos, Fuyuki silenciosamente beliscou alguns biscoitos com gotas de chocolates, o chá soltando um vapor agradável de sua xícara.

— Como sempre, a senhorita come pouco.

— Posso dizer o mesmo de você, dona Sofia.

Fuyuki e Sofia trocaram palavras simples e superficiais, o tipo de conversa que estavam acostumadas a ter, ignorantes ao caos ao seu lado. 

— Damas devem saber se maneirar, não é mesmo? — Sofia piscou para a duquesa com um ar de inteligência — Entretanto, estou contente que estamos acompanhadas de um novo rapaz. Nossos encontros estavam ficando entediantes.

— Entediantes? — Shin murmurou, olhando para Juan que mastigava o pedaço de bolo que Omar forçou em sua boca, tapando a visão com as próprias mãos — Eu diria irritantes.

— Não seja tão rabugento, senhor Shin! Veja, este café não é agradável? Devemos agradecer a todos pela ótima recepção!

Como sempre, Omar abriu os braços e saudou os serviçais que estavam à volta, prontos para atendê-los assim que pedissem.

— Al-Hadid tem razão — comentou Zero, chamando a atenção completamente para si — O trabalho dos serviçais é excelente. 

— Viu só? Viu só? Eu adoro esse garoto que entende das coisas!

Omar lançou um “jóinha” na direção do rapaz de cabelos violeta, que apenas balançou os ombros com um sorriso em retorno. Fuyuki, reparando que a reação da maioria dos presente foi a favor das palavras de Zero, suavizou a expressão tensa e concordou.

— É verdade. Ainda que os serviçais da casa Minami sejam incríveis, não posso deixar de notar que houve cuidado no preparo do café da manhã. 

— Parece que todos aqui gostam de bons aperitivos, e provar novos pratos é uma das especialidades do senhor Al-Hadid — Sofia comentou, levando a xícara de chá aos lábios — Não me surpreenderia se Sua Majestade estivesse ciente disso desde o começo.

O que ela indicava com aquele comentário era algo óbvio: Os anfitriões deveriam estar preparados e cientes de qualquer tipo de situação que pudesse conflitar com o humor dos convidados. Então, prepararam planos para agradá-los de todas as formas possíveis, evitando que perdessem a vontade de estarem ali. Como a maioria da corte apreciava um bom café ou chá acompanhado de doces, assim prepararam os serviçais.

Além disso, a estação fria colaborava para que isso fosse possível. Ainda que estivessem do lado de fora, o jardim era perfeitamente cuidado e podado à perfeição, adaptando-se ao clima. Naquela manhã, não estava especialmente frio, pois o sol fraco cobria seus corpos como um lençol.

— Não esperaria menos de Sua Majestade — disse Juan, limpando a boca com um papel toalha — Porém, estou surpreso que tenha convidado um forasteiro para nosso encontro.

— Palavras maldosas para um homem de honra como o senhor — respondeu rapidamente Sofia, defendendo Zero — Como afirmei antes, nossas conversas têm se tornado monótonas o bastante para que precisemos incluir mais uma pessoa. E não, ele não é um forasteiro, como apontou. O senhor Furoto estava ansioso para unir-se a nós.

Sofia piscou para Zero com um ar sedutor, mas ele ignorou, apenas agradecendo com os olhos por seu apoio. 

— É verdade? — continuou Fuyuki, propositalmente incitando a conversa — Então, é realmente uma honra tê-lo conosco.

— Concordo! Eu concordo plenamente! Aqui, senhor Zero! Pegue estes bolinhos!

Com três dos cinco membros da corte apoiando-o, Zero relaxou os ombros e delicadamente alcançou a oferenda de Omar com o pegador disposto ao lado.

— Muito obrigado pela recepção. 

Al-Hadid abriu um sorriso tão radiante quando o rapaz comeu o doce com um garfo, demonstrando que era realmente saboroso, que quase cegou Shin.

— Senhor Al-Hadid, poderia se sentar, por gentileza?

— Ah, é claro!

Quando essa conversa aconteceu, Zero novamente foi atraído por Sofia, que o olhava de escanteio. Ela ergueu as sobrancelhas duas vezes e acenou discretamente para o lado, para Shin. O rapaz, então, notou exatamente o que queria dizer com aquilo, então inspirou fundo.

— Com licença, é isso que o senhor gostaria?

Notando que o patriarca dos Akai parecia impaciente, tendo sua visão atrapalhada graças ao lorde exuberante, Zero reparou que o velho apenas desejava um papel toalha. Então, o rapaz rapidamente pegou um e o estendeu na direção dele. Os olhos vermelhos do homem se ergueram, fitando-o, e Shin pegou o papel sem agradecer.

— Esse deveria ser o trabalho dos serviçais — apontou Juan, cruzando os braços — Não há necessidade de se colocarem de pé para… Ah.

Ele começou a tentar dar um sermão no rapaz intrometido, mas rapidamente perdeu as palavras ao ver Omar novamente de pé, estendendo-se sobre a mesa para pegar alguns pasteizinhos assados.

— Mas me diga, senhor Juan! Ouvi falar que entregou seu cimélio a Sua Alteza durante a manhã, certo? Como foi?

— Apenas uma entrega comum, infelizmente. Entretanto, como parte da corte, não poderia deixar de tomar essa atitude o quanto antes.

— Está correto — concordou Shin, para a surpresa de todos. 

Afinal, o patriarca dos Akai havia sido um dos únicos a claramente não demonstrar qualquer sentimento ou honra ao participar do Benesse, e mesmo assim falava daquela forma sobre o trabalho de Juan. A verdade era que eles possivelmente apenas estavam aproveitando que o rapaz convidado não era oficialmente um nobre ainda, logo, sequer estava no patamar deles para falar a respeito. Dito isso, mencionar o cargo como parte da corte nada mais era que uma estratégia para alfinetá-lo com suas palavras.  

— Sinto muito pela cerimônia ter sido interrompida quando ainda estávamos participando, mas não havia nada a ser feito. 

— Pelo menos todos saímos vivos e bem! Essa é a parte mais importante!

Fuyuki soltou um suspiro pesado.

— Não me diga que ainda está inconformada com o fim dos invasores?

— Infelizmente, não posso negar sua observação, dona Sofia. Gostaria de ter sido capaz de fazer algo a respeito, porém…

— Os invasores mereceram o final que tiveram — pontuou Juan, rapidamente — Neste sentido, foi quase constrangedor ver a ação que um mero rapaz como este convidado finalizou o trabalho, ao invés da senhorita. 

Poderia parecer que estavam desfazendo de Fuyuki, entretanto, mesmo a duquesa estava ciente de que, como a matriarca de uma família responsável por manter a ordem e a segurança do país, possuindo uma das maiores elites com guardiões de todos, era realmente uma atitude a ser refletida.

— Percebo que não apenas suas atitudes, mas também suas decisões e escolhas são duvidosas. Não acha, senhor Shin?

Ao ter seu nome colocado no meio da conversa, o patriarca deslizou seus olhos sem brilho na direção de Juan, não recuou. Dessa vez, ele parecia ter ido longe demais. Mesmo Sofia e Al-Hadid, que normalmente não se intimidavam, sentiram a aura perigosa que começou a crescer ao redor do Akai. 

Shin não estava irritado por provocarem a duquesa, mas por terem falado da competência de seus guardiões indiretamente como se isso estivesse ligado a ele. Como se a origem viesse de sua família, e não do trabalho de Fuyuki.

— Gostaria de dizer algo com isso, rapaz? — a voz áspera e dura de Shin soou, arrepiando Zero.

— Preciso repetir? — rebateu Juan, olhando-o de cima a baixo.

— Estou certa de que as críticas feitas pelo senhor Juan eram direcionadas a mim e a minha competência como duquesa — interferiu Fuyuki, sem medo ou hesitação — Concordo com seu apontamento a respeito de minha indecisão no Benesse, porém, não permito que fale dessa forma de minha elite ou de minhas decisões.

A aura de assassina de Shin se desfez em um instante, e a atenção de Juan se virou para a matriarca.

— Apenas disse a verdade. O seu trabalho como duquesa é péssimo. Foi incapaz de proteger seus próprios territórios e controlar seus guardiões. Não teve tato para livrar-se dos ratos que causaram problemas. Essa sua empatia e sentimentos inúteis apenas são um incômodo. Eu não deveria esperar menos de uma reles mulher no poder.

— O meu trabalho é manter a segurança dos territórios que estão sob meu domínio, e meus guardiões sempre são excelentes em todas as suas tarefas. Parece que são apenas seus olhos que pecam em analisar isso, pois percebo que se nem mesmo o senhor foi capaz de tomar uma atitude perante a ameaça que espreitava o palácio, uma “reles mulher” como eu ter sido capaz de controlar a situação deve ser mesmo uma vergonha.

Fuyuki bebeu seu chá após devolver as palavras de Juan, que ferveu em raiva. Shin ignorou o conflito, mas Al-Hadid escondeu a risada atrás de sua mordida no bolo. Não parecia que ele estava confortável com a discussão, mas era engraçado ver alguém sempre tão bem composto como o Over perder a paciência. Sofia, como esperado, sorria satisfeita para Fuyuki, quase que orgulhosa de sua resposta.

— Sim, é uma grande vergonha ver que, por sua incompetência e inexperiência, pessoas morreram. Além disso, precisar contar com um grupo tão grande de guardiões e não ter cumprido com sua tarefa é inadmissível. Se bem que eu não deveria ficar admirado, pois mais da metade são todos pessoas indignas de trabalharem com alguém da nobreza, quem dirá da corte.

Dessa vez, os dedos de Fuyuki se apertaram na alça da xícara. Seus olhos deslizaram para Juan, que lhe dava um sorriso zombeteiro. Zero, assim como Sofia e Al-Hadid, sentiram o clima esfriar. 

— Não me diga que ficou irritada com a verdade?

— Meus guardiões não são indignos de suas posições — rosnou Fuyuki com um brilho de irritação nos olhos.

— Como pode dizer isso quando estamos diante de um agora mesmo? 

Agora, Juan apontou diretamente com o queixo para Zero, que havia ficado em silêncio, ciente de que a discussão se voltaria para ele cedo ou tarde. O rapaz não respondeu, os olhos focados na xícara de café perante si.

— Controle-se, duquesa Minami — alertou Al-Hadid, mostrando uma seriedade rara em sua voz — Não estamos aqui para brigar entre si.

— Aparentemente, como disse, essa moça não aprendeu nada ao longo dos últimos dois anos — falou Juan conforme uma camada de gelo subia lentamente por seu pescoço e alcançava seu rosto — Mas, ainda pior do que ela, é esse garoto que se acha no direito de recuperar algo que perdeu o direito há muito mais tempo. A senhorita Fuyuki ainda leva crédito por ter chegado onde está sendo uma mulher e sozinha, porém podemos dizer o mesmo dele?

Agora, a seriedade de Juan se tornou zombaria. Shin manteve seus olhos fechados, Al-Hadid endureceu a expressão, Fuyuki mantinha uma expressão irritada e Sofia apoiou o queixo em uma das mãos.

Zero apertou os olhos e, por fim, ergueu suas íris prateadas, quase cinzentas para Juan. Decidiu que, ao menos, deveria ter uma mente capaz de lidar com todas as críticas e apontamentos esperados pela nobreza. Ainda que uma parte ficasse frustrada e outra quisesse chorar, ele encararia aquilo.

— A senhorita Fuyuki não possui o direito de dizer nada a respeito do garoto, pois está claro para mim que apenas o protege por ser seu guardião. O senhor Al-Hadid e a dona Sofia são pessoas com corações moles demais para entenderem o quão importante é o que estamos discutindo aqui. Estou aliviado que ao menos o senhor Shin parece dedicado a se manter firme em sua decisão.

Shin não respondeu.

— Esse garoto — chamá-lo daquela forma era o mesmo que dizer que era meramente uma criança — Não apenas abandonou seu sobrenome e títulos de direito. Lembram-se de quando ainda os Furoto ainda viviam entre nós. Ele sempre foi um completo incompetente em todos os aspectos, e estou certo de alguns como o senhor Al-Hadid e o senhor Shin se recordarão dos apontamentos feitos pelo antigo patriarca dos Furoto. Esse moleque não é digno de recuperar algo que abandonou sem pensar duas vezes, e não pode ousar se comparar a nós colocando esforços ínfimos durante pouco menos de uma semana. Conheça seu lugar, ralé. Você nem é mais parte da nobreza, é apenas um canalha sem vergonha.

A essa altura, o ambiente havia mudado completamente. As palavras de Juan apontaram não apenas para os nobres ao redor, mas principalmente para o rapaz de cabelos violeta, que abaixou a cabeça. Um silêncio denso fazia a respiração se tornar difícil. Estava claro como o dia para Zero que seria impossível para ele conseguir a confiança e o apoio de Juan e Shin. 

Fuyuki conteve sua fúria, embora o gelo ainda permanecesse nos arredores como sinal de sua alteração de humor. Sofia e Al-Hadid, ao serem alfinetados por aquelas palavras, demonstraram uma expressão de desgosto, porém permitiram que o Over falasse até o final. Shin permaneceu ignorante, parecendo realmente não se importar com nada do que acontecia.

Suor frio escorreu pelas costas de Zero. Ele inspirou fundo devagar, sentindo como se sua pressão tivesse baixado. As íris perderam o brilho e se tornaram nebulosas. Não havia o que ser feito ou dito naquela situação. Zero realmente era uma vergonha em todos os aspectos. Quando comparado seu histórico ao dos outros membros da nobreza, não havia espaço algum para sua presença. E, acima de tudo, a corte não precisava de mais uma pessoa. Estava perfeitamente equilibrado, como deveria ser.

Fechou os olhos e conteve as lágrimas de frustração. Parecia que o silêncio não era apenas por Juan ter destruído o clima agradável. Era como se esperassem uma resposta do rapaz. O Over, em especial, parecia preparado para ouvir qualquer tipo de reação desagradável que apenas provasse ainda mais o seu ponto. Zero não poderia perder a paciência agora, muito menos demonstrar fraqueza. Dentro da nobreza, era preciso usar uma máscara perfeita. Demonstrar sentimentos ou se envolver demais era o mesmo que entregar seu coração, permitindo ser manipulado.

Recordou-se de Edward falando sobre isso antes e entendeu perfeitamente o que ele queria dizer, agora.

Entretanto, ainda que a vergonha e a frustração manchassem seu coração, Zero não perdeu a determinação. 

— O senhor tem razão.

Zero falou, a voz baixa e rouca. Fuyuki se virou, surpresa, parecendo pronta para gritar algo, mas foi silenciada por Sofia com apenas um olhar sereno.

— Eu joguei fora o que estava em minhas mãos e fugi. Não tenho o direito de retrucá-lo, muito menos de dizer que está errado, pois estaria mentindo — engoliu em seco aquelas palavras que eram apenas a verdade, para então inspirar profundamente — Ainda assim, minha vontade de reconstruir o que foi destruído e reconquistar aquilo que uma vez abandonei também não deixa de ser verdade.

— Seus sentimentos não podem mudar a realidade. Apenas aceite esse fato. Tanto você quanto a senhorita Fuyuki pecam nesse sentido — respondeu Juan, seriamente.

— Ainda que a realidade seja imutável, eu ainda posso ser capaz de mudar. Senhor Juan, senhor Shin — Zero se colocou de pé, engolindo toda a coragem que ainda lhe restava para falar — Eu me arrependo do que fiz, mas quero ser capaz de apoiá-los. Quero me tornar uma pessoa digna de ser chamada como parte da nobreza, poder ser um dos pilares desse país e trabalhar ao lado de todos. Sei que estou sendo egoísta e sou completamente inexperiente, mas se ainda houver uma chance para que isso se torne realidade, vou me esforçar para que meu desejo se torne parte dessa realidade imutável.

Colocou a mão direita sobre o coração, endireitou a postura e falou. A determinação não deixou sua voz e lentamente o brilho retornou às íris, que quase sucumbiram à falta de força. Era difícil, e era perceptível para qualquer um que estava tremendo. Suas mãos, em especial, se mexiam discretamente. Fuyuki, vendo aquilo, sentiu sua fúria se desfazer, assim como o gelo conjurado. 

— Devo admitir que sua atitude na Cerimônia de Benesse foi admirável, garoto. Entretanto, força sozinha não é o bastante para sustentar um nobre. Ainda precisa de muito mais do que isso para ser digno do título. Até que seja capaz de entender isso, jamais o apoiarei.

Juan assim falou, também se colocando de pé. 

— Com licença, vou me retirar.

Enquanto ia embora, o som de outra cadeira se arrastando, então de Shin se colocando de pé chamou a atenção.

— Me retirarei.

E então, as duas pessoas que Zero esperava ser capaz de conquistar o coração apenas foram embora, ainda rejeitando-o completamente. Um se revoltou com sua tentativa e o outro sequer o notou, e ele não sabia dizer qual foi a pior reação.

Quando a dupla conflituosa se afastou, todos soltaram um suspiro de alívio. O clima imediatamente retornou à sua estaca inicial, mas Zero ainda estava determinado a fazer algo a respeito dos apontamentos feitos por Juan. Ele queria ser capaz de mudar, de ficar mais forte e mais confiável. Queria ser capaz de orgulhar aqueles que nele depositaram confiança.

Mas, para isso, antes de mudar a si mesmo no presente, deveria ser capaz de encarar seu passado.

Os olhos de Sofia, como que lendo novamente seus pensamentos, se encontraram com os dele. 

Se preciso mudar, acho que já sei por onde começar.

***

Quando Ryota abriu os olhos e sentiu a luz do sol batendo contra seu rosto, tomou um susto ao ponto de se sentar na cama rapidamente. Seus olhos se arregalaram. Haviam olheiras e um inchado que denunciava suas lágrimas da noite passada. Sua boca se abriu, a mente ainda processando o que estava acontecendo.

— … Por quanto tempo eu dormi?

Aquela era certamente uma situação inusitada. Fazia muito tempo desde a última vez que a garota havia caído no sono tão profundamente ao ponto de perder completamente os sentidos e a noção de espaço e tempo. Seu corpo estava relaxado. A mente, calma. Ao contrário da noite anterior, em que tudo doía e estava uma bagunça, agora era possível lidar com seus pensamentos sem temer como reagiria por estar à flor da pele.

Seus olhos deslizaram para o relógio pendurado em uma das paredes.

— Já… PASSOU DO MEIO DIA?!

Ryota pulou da cama bagunçando tudo. Cobertores e travesseiros voaram enquanto corria na direção do banheiro, esfregando água em seu rosto. 

— Não acredito, não acredito, não acredito! Vou me atrasar de novo, desse jeito!

Secando o rosto com a toalha, sua mente vagou. Se perguntou por que será que não a haviam acordado, como geralmente acontecia ao perder o horário. Não esperava que Miura fosse ser gentil a esse ponto, mas parte dela se perguntava qual seria a impressão que Edward tinha. Seria um grande problema caso suas esperanças fossem perdidas. Ryota acreditava que, por ter ido dormir mais cedo, ela certamente deveria acordar mais cedo e com a cabeça boa para trabalhar, certo?

Enquanto arrumava a cama que bagunçou completamente, resgatando o travesseiro que voara para perto da janela, abriu as cortinas e sentiu o sol da manhã aquecer a pele. As íris azuis observaram o jardim, parando especialmente em um local que parecia ter um grupo de pessoas conversando. Não era possível reconhecê-los à distância, mas presumiu que fossem nobres.

Como seu uniforme de guardiã havia sido completamente destruído, a garota optou por vestir sua roupa casual. A calça azul e a jaqueta vermelha eram confortáveis de usar, quase nostálgicas, como se fizessem anos desde a última vez que provou aquelas roupas. Porém, enquanto passava os braços pelo tecido, parou para se olhar no espelho. O que viu era uma garota com rosto descansado, porém marcado pelas lágrimas. Além disso, a jaqueta que começava a vestir, ao mesmo tempo que lhe dava uma sensação boa, lembrou-lhe da conversa com seu avô na noite passada.

Ryota lentamente retirou o braço e segurou a jaqueta perante os olhos, de cabeça baixa. Recordou-se de ter ganhado aquela vestimenta de Albert, anos atrás, e desde então sempre a usou. Era uma boa recordação, e a garota realmente gostava da jaqueta. Era confortável, vestia bem e não era quente ou fria. Porém, agora, ao invés de vesti-la com uma sensação de saudade e carinho, uma dor em seu coração pulsava como se agulhas o perfurassem repetidamente.

De repente, ela quis chorar novamente, mas conteve as lágrimas. Fungou o nariz e limpou os olhos úmidos, decidindo se concentrar. Então, incapaz de apenas deixá-la para trás, amarrou a jaqueta na cintura e deu tapinhas leves no rosto para acordar de vez dos pensamentos melancólicos.

Preciso deixar isso pra trás. Agora não é hora de lembrar disso. Você precisa se concentrar nas suas tarefas. São apenas mais alguns dias, e então podemos decidir o que fazer daqui pra frente. Apenas termine a semana, e então você pode descansar. Muito bem. Seja forte, apenas mais um pouquinho.

Enquanto fixava aquelas palavras em sua mente e se acalmava, a garota finalmente se tornou capaz de refletir melhor sobre os acontecimentos do baile. E, é claro, a primeira coisa que a preocupou foi a respeito de Luccas e Marie, pois haviam se separado, mas nada ouviu falar a respeito de seus paradeiros. Como sua mente tinha ficado exausta, foi incapaz de considerar como estavam até aquela manhã.

Uniu as mãos e orou para que estivessem em segurança. Queria acreditar que os dois haviam conseguido escapar, como prometido.

— Se me lembro bem, havia algo que eles queriam me contar…

Ryota se recordou de sua conversa com Luccas e refletiu.

— Não me diga que eles ainda estão no palácio apenas por isso… Mas é tão importante assim… 

Soltou um suspiro. Primeiro, iria atrás de Edward para confirmar a situação das coisas. Agradeceria por seu apoio e por tudo o que fez no baile. E então… Havia Zero também. Precisava encontrá-lo para agradecê-lo apropriadamente.

Mais uma vez, ele me salvou de enlouquecer completamente…

Ryota pensou assim, sem notar como seu rosto pegou fogo de vergonha ao lembrar-se da noite passada.

E, é claro, após isso tudo, poderia ir atrás de descobrir o estado de Luccas e Marie. Precisava organizar seus objetivos para que pudesse ir atrás deles sem quaisquer distrações.

— Certo.

Foi nesse instante que batidas suaves na porta soaram. Ryota se assustou, dando um pulo.

— Já vou!

Pensando que poderia ser Edward que vinha buscá-la ou puxar sua orelha por ter demorado tanto para se aprontar, a garota arrumou tudo e rapidamente abriu a porta, dando pulinhos.

— Me desculpa pela demora, Ed-

Porém, quem estava ali não era o príncipe. 

Era uma figura relativamente mais baixa. Quando vista em meio a um corredor colorido e cheio de luzes, poderia quase se assustar, como se fosse uma assombração. Porém, Ryota não demonstrou qualquer outro sentimento além de surpresa quando trocou olhares com o garoto que estava coberto por preto. 

Após hesitar por um segundo, sua voz finalmente saiu:

— Kuro…

Assim que chamou por seu nome e recebeu um olhar do garotinho, que apenas mantinha a expressão neutra de sempre, uma mão gelada segurou seu pulso. Incapaz de reagir adequadamente, Ryota apenas sentiu seu corpo ser puxado na direção dele, para dentro das sombras, e os dois desaparecerem do corredor.



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