Volume 6 – Arco 3
Capítulo 58: Você Tem Algum Arrependimento?
Algum tempo mais tarde, Edward caminhou novamente pelos corredores do palácio, apreciando o silêncio do dia. Uma vez que o baile fora um sucesso, com toda a nobreza aproveitando-o da melhor forma possível, era esperado que houvesse um único dia separado em toda aquela semana para um verdadeiro descanso. As pessoas que gastaram toda a sua energia na festa agora dormiam ou permaneciam relaxando em seus respectivos aposentos. Mesmo os empregados e guardas, que ainda trabalhavam, faziam isso em um ritmo mais lento. Todos pareciam exaustos, porém, felizes com a chegada do feriado da semana.
Os olhos violeta de Edward desceram imediatamente para os jardins e pararam exatamente em um caramanchão onde um grupo de pessoas se reunia. Sentados em bancos que mantinham suas costas eretas, o príncipe abriu um sorriso ao ver que toda a corte estava reunida. E, dentre eles, que conversavam algo, estava também o rapaz Furoto.
Internamente, Edward desejou sorte a ele. Como fazia pouco tempo desde que conversaram pela manhã, o príncipe não poderia se sentir mais lisonjeado por acompanhar uma mudança tão grandiosa na nobreza. Esperava que Zero pudesse ser capaz de fazer isso, assim como a nova geração que eventualmente ganharia o direito de descendência daquelas famílias.
— Parece bem esta manhã, Alteza.
Uma voz lenta, porém fria, se aproximou por trás. Edward sequer se virou para responder a Miura, que andou até seu lado com as mãos atrás das costas, pronto para fazer uma reverência.
— Sim, estou. O dia está lindo, hoje.
— Vossa Alteza andou conversando com alguém nesta manhã?
— Por que a pergunta?
Finalmente, os dois trocaram olhares. O príncipe não conseguiu ler nada naquelas íris vazias de sentimento, mas percebeu que Miura estava falando um pouco a mais que o normal.
— Notei que, desde o baile, Vossa Alteza pareceu se dedicar bastante ao contato com os convidados… Me parece que algo de bom aconteceu desde então.
— Era apenas uma cortesia. Não aconteceu nada demais.
— Não foi o que me pareceu durante a noite passada — Miura inclinou a cabeça — Me pergunto se Vossa Alteza… Ainda pretende continuar omitindo informações.
— Omitindo? A que se refere, Miura?
— Sua Majestade está preocupado — o guardião, sem pestanejar ou falhar, imediatamente colocou a culpa em seu mestre. Edward notou imediatamente a necessidade dele tentar justificar suas perguntas, e sabia que Miura estava ciente de sua perspicácia, também. Aquilo não podia ser chamado de diálogo. Nada mais era que uma simulação perigosa — Ele ficou realmente incomodado quando o viu agir de forma tão incomum no baile, e ainda mais quando perdeu a oportunidade de conversar com um amigo de longa data. Perguntou-me se não seria possível que Vossa Alteza, na realidade, estivesse envolvido em algo fora de sua ciência.
O príncipe ficou em silêncio. Miura não costumava se aproximar descaradamente daquela forma, fazendo perguntas com duplo sentido tão óbvias. Edward sentiu um arrepio percorrer suas costas, incomodado com o fato do guardião parecer ameaçá-lo tão silenciosamente. Ele sabia. Podia sentir que sim. Entretanto, enquanto não houvessem provas, nada poderia ser feito. Um guardião não poderia ameaçar seus superiores, porém, poderia tentar induzi-los a fazer o que queriam colocando outras pessoas no meio de seus assuntos.
Edward sabia que, dentre todos, Ryota foi a mais prejudicada. Tornar-se uma guardiã a fazia estar no mesmo nível de Miura — ou melhor, ainda mais abaixo, pois ele ainda era apenas um príncipe. Porém, ainda que não fosse sua obrigação, a garota lutou para honrar seu papel e responsabilidade, desejando estender a mão a todos que precisassem. Tudo em silêncio e segredo.
— Não acha que é falta de respeito indagar-me com tanta audácia? — irritou-se Edward imediatamente, para a surpresa do guardião — Ainda que fosse um assunto referente a meu pai, ele deveria interrogar-me diretamente, não mandá-lo até aqui.
O príncipe soltou um suspiro pesado.
— Espero que jamais se esqueça com quem está falando, Miura. Você também me deve sua lealdade e respeito, ou devo lembrá-lo disso pessoalmente?
— Não, Alteza. Peço perdão por minhas palavras.
— Muito bem — quando o tom duro de Edward se amaciou ao ver Miura inclinar-se, voltou a andar — Agora, peço que tire este dia para descansar um pouco. Ao contrário de mim, você parece realmente precisar.
Apesar do apontamento não ter sido feito com o intuito de ferir seu ego, assim pareceu para ele quando uma aura raivosa foi sentida. Entretanto, Edward estava ciente de que jamais poderia ser atingido por ela, então apenas deixou o guardião de seu pai para trás enquanto seguia seu caminho.
Sim… Eu sou o futuro rei de Hera. Não, de toda Thaleia.
Às vezes ele mesmo esquecia qual era a responsabilidade que carregava em seus ombros. Parecia simples esquecer, mas aquela conversa com Zero o fez perceber que seu desejo de mudar poderia se tornar muito mais do que uma expectativa, mas uma realidade se carregada ao lado de várias outras pessoas que desejavam o mesmo.
É por isso que, pelas pessoas que me ajudaram a trilhar o caminho até aqui, tenho de ser capaz de corresponder a seus sentimentos,
Piscando com determinação, foi isso que ele pensou ao abrir a porta de uma sala isolada, aos fundos. Era um cômodo relativamente pequeno, porém, com várias poltronas e pilares espalhados. Uma janela que ficava logo à frente da porta estava aberta, com a luz penetrando pelos vidros.
Havia, ali, uma única pessoa sentada. Logo de frente para a vidraça, com as pernas cruzadas e inalando um charuto, o homem de cabelos grisalhos e boa postura voltou seu olhar dourado para o príncipe. Não houve surpresa, nem qualquer resquício de irritação por ter sido incomodado.
— Alteza, que honra vê-lo nesta manhã.
Albert apenas cumprimentou Edward com um sorriso educado, convidando-o a se unir a ele. Fechando a porta logo atrás de si, o príncipe se aproximou para sentar-se na poltrona diante do homem.
— Digo o mesmo, senhor Megalos.
— Gostaria de um charuto?
— Não, muito obrigado.
Edward recusou erguendo a palma da mão. Um silêncio agradável permaneceu na sala, acompanhado do cheiro amargo da fumaça, que escapulia pela janela. Os olhos violetas focaram-se no senhor que parecia realmente aproveitar a sensação de inalar e expirar profundamente, os pensamentos vagando longe enquanto, por vezes, apenas fechava os olhos.
— Não tema, Alteza. Se tiver algo que deseje me perguntar, fique à vontade.
O príncipe não demonstrou qualquer reação ao compreendimento direto de Albert da razão de ter ido até ali.
— Estou ciente de que Vossa Alteza não fuma, então percebi que, ao vir até aqui, deseja conversar comigo. Na verdade, fiquei um pouco surpreso por saber onde estava.
— Foi apenas uma intuição. E, sim, desejo perguntar-lhe algo.
— Prossiga.
Edward jamais conversou de forma interessada com Albert. Eles, sim, por vezes, trocaram algumas palavras em reuniões ou festas, mas nada a ponto de perderem o horário. O senhor Megalos, a quem todos se referiam como um parente direto de Sofia, nada mais era que mais um dos convidados da nobreza que eram tratados de forma igual e sem interesse pelo príncipe.
E as coisas teriam continuado daquela forma se não fosse pelos acontecimento daquela semana. Antes, quando olhava para Albert, apenas via alguém que teve uma boa vida, respeitado pelos mais jovens por sua experiência e habilidades sociais. Agora, conhecendo o histórico com Ryota, algo mais prendia-se dentro do coração do príncipe.
Não apenas porque ele havia se apegado à garota, mas por algo ainda mais profundo. Como se, ao entender o relacionamento conflituoso que ambos tinham, e reconhecendo os esforços da guardiã para tentar recuperá-lo, uma semelhança ainda mais profunda entre os dois surgia. Ryota encontrou-se diretamente com Fanes para tentar ajudar Edward, e pagou caro por isso. Ao mesmo tempo, ajudou-o a abrir os olhos para cenários que antes não lhe interessavam.
Parte dele desejava saber… E, a outra, apenas se queimava de raiva por ter presenciado o desespero da garota que foi rejeitada tão cruelmente. Não houve um diálogo com detalhes, sequer mencionando profundamente o ocorrido ou tudo o que Albert e Ryota passaram por tanto tempo. Entretanto, ele entendia perfeitamente como era esperar o retorno de um amor que pareceu ser inteiramente unilateral… Ou, apenas, esquecido pelo tempo.
— Perdoe-me se estiver sendo intrometido ou mal educado, mas… O senhor tem uma família, certo? A dona Sofia é sua neta?
Albert expirou a fumaça do charuto.
— Não se preocupe, Alteza. Quanto à sua primeira pergunta… Sim, eu tenho uma família. Ou, para ser mais honesto, eu tive. A Sofia é como uma neta para mim.
Uma neta…
— O senhor ainda os vê? Digo, a sua família.
— Minha esposa faleceu há anos, e meus filhos também. Desde então, apenas acompanho o trabalho de Sofia.
Edward estava ciente de que Edward e Sofia compartilhavam o mesmo sobrenome e deveriam ser parentes distantes, uma vez que ninguém jamais ousou se aprofundar no assunto, e ambos nunca demonstraram interesse em explicar seu relacionamento. Entretanto, era perceptível que, ainda que nunca fossem vistos conversando ou andando juntos, eles se parecessem em suas personalidades — uma vez que a aparência não batia de forma alguma.
— Por que a pergunta, Alteza?
— Eu estive curioso a respeito… Afinal, o senhor jamais desejou comentar sobre eles. E, para ser honesto, sempre fiz o mesmo. Entretanto, queria ser capaz de me reconciliar com meu pai, e achei que poderia contar com os conselhos do senhor.
Não era inteiramente mentira. Edward realmente estava curioso a respeito de Albert, mas também, no fundo de seu coração, desejava se aproximar mais de seu pai. Ainda que fosse difícil, um pedaço dele realmente gostaria que fosse possível.
Albert piscou lentamente para o príncipe.
— Compreendo, meu jovem. Mas, infelizmente, não sei o que lhe dizer.
— Mas o senhor foi pai e avô, certo? Deve ter tido experiências com discussões, ou situações semelhantes.
— É claro. Porém, sinto que meus conselhos não lhe serão úteis.
Albert não respondia ao príncipe com ousadia ou negação, era mais como se estivesse sendo sincero da sua própria maneira. Edward respeitava isso, e teria deixado o assunto de lado ao perceber que poderia incomodá-lo ao insistir. Entretanto…
— O senhor teve uma neta, não teve?
— Sim, como lhe disse, a Sof-
— Não a dona Sofia, mas uma outra jovem.
O Megalos interrompeu o charuto que ia em direção aos lábios. Seus olhos dourados não refletiram qualquer sentimento além de uma leve surpresa.
— E? — foi sua resposta.
— O senhor nunca mais a viu?
— Perdoe-me Alteza, mas não posso lhe responder.
— Por quê?
— Me recordo de ter-me dito que desconhecia minha família, e estou certo de que essa informação não deveria ser divulgada dessa forma.
Albert continuava respondendo com educação, ao contrário do príncipe, que parecia sentir seu sangue ferver a cada resposta vazia. Para conter seus sentimentos, agarrou os braços da poltrona com os dedos.
— Estou certo de que gostaria de saber mais, mas não posso.
— Por quê? — perguntou novamente Edward, agora com clara frustração na voz e rosto.
As íris douradas focaram-se nas violetas.
— Meu jovem… O passado é o passado. Não se pode viver ficando preso nele para sempre.
— Isso é apenas uma desculpa.
— Estou certo de que Vossa Alteza pensa o mesmo. Afinal, se não, estaria com um bom relacionamento ao lado de seu pai — As palavras atravessaram o príncipe como uma agulha, e ele se calou. Percebendo isso, Albert fez uma expressão de culpa e suspirou — Peço perdão, não era minha intenção magoá-lo.
Edward ignorou a reverência, apertando os lábios e relaxando os músculos.
— … Apenas me responda mais uma coisa.
— Sim?
Albert ergueu o rosto.
— O senhor jamais se arrependeu de algo que fez no passado? Algo… Como um erro profundo o bastante para ter machucado alguém, mas que não pôde consertar?
Um piscar de olhos lento. As íris douradas se abaixaram para o chão, e então as pálpebras se fecharam.
— Não.
Edward se colocou de pé tão rapidamente que a poltrona quase caiu. Sua mão voou contra a gola da roupa de Albert, que foi puxado para cima, mas não resistiu ou demonstrou qualquer sentimento além da neutralidade.
— Vossa Alteza se arrependeu de algo assim?
— … Meu único arrependimento foi ter sido incapaz de reatar o relacionamento com meu pai quando minha mãe morreu. Ter me tornado ignorante aos seus sentimentos na época nos afastou, e eu sei que ele me odeia por isso.
Edward sentia saudades de sua mãe, mas nada poderia ser feito quanto a isso. Não havia raiva quanto ao ocorrido, embora tristeza apertasse seu coração ao lembrar. Mas, mais do que isso, havia os pensamentos de arrependimento quanto a ter negligenciado a tentativa de Fanes de se aproximar, de tentar consolá-lo pela perda, mesmo quando ambos estavam quebrados.
Rejeitar seu ato foi rejeitar seu amor.
Não deveria ficar surpreso ao notar que Fanes nunca mais conseguiu tentar amá-lo ou vê-lo como filho.
Albert arrumou sua postura e roupas ao soltar lentamente a mão do príncipe de sua gola. Edward estava com a cabeça baixa, a franja cobrindo seu olhar melancólico. O Megalos jogou fora o restante do charuto.
— Esse sentimento é terrível.
— Me dirá para esquecê-lo?
— Não. Eu diria para convertê-lo em forças.
— Como pode dizer isso depois do que fez?
Um pequeno instante de silêncio, e Albert colocou a mão no ombro do príncipe.
— Não tenho arrependimentos, porém, estou ciente de meus erros. Se fosse para responder qual foi o maior deles, seria, com certeza, ter me envolvido demais com pessoas que não me mereciam.
A mão que segurava seu ombro deu um leve aperto, e Albert saiu da sala. Ainda havia um pouco de fumaça que fazia os olhos e nariz de Edward arderem, mas conteve as lágrimas que ameaçavam cair.
Ainda arrumando a gola de sua roupa, Albert caminhou pacientemente para longe da sala. À distância, ouviu o som de passos. Eram de duas pessoas que vinham de um corredor ao lado, conectando-se ao que passava. O velho imediatamente reconheceu as duas pessoas que conversavam, olhando em sua direção com um pouco de surpresa.
— Olha só, se não é o velhote? — disse Sasaki com um sorriso — Anda, Diz. Cumprimenta ele.
Diz apenas deu de ombros e acenou com a cabeça para Albert.
— Conversemos depois.
— Oooh? Olha ele, sempre todo ocupadinho.
Sasaki riu, cutucando Diz, que apenas permanecia parado, piscando lentamente. Então, ao trocar olhares com Albert, se encararam.
— O senhor tem uma reunião importante, agora.
— Falou e disse, Diz! Por isso, nos acompanhe.
Os dois homens assim avisaram o mais velho, que piscou uma vez, apertando os olhos, antes de se virar e caminhar na direção deles.