Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 6 – Arco 3

Capítulo 56: Perdão e Decisão

— E é por isso que, até os dias de hoje, Fanes segue sendo como rei mesmo sem ser verdadeiramente da realeza.

— Então, a história contada dele ser supostamente parente de Teresa é falsa?

Luccas estava prestes a encerrar seu relato quando Fuyuki, cruzando os braços, fez uma pergunta pertinente. O rapaz franziu a testa.

— As chances são baixíssimas, ao ponto de ser quase impossível. Tudo o que eu soube, e o que sabiam na época, era que aqueles dois se conheciam desde que vieram da classe baixa, ascendendo à posição que permaneceram com suas próprias habilidades. 

— Mas é inegável que foi essa aproximação repentina que criou uma dúvida na mente do antigo rei — continuou a duquesa — Estou certa de que Roger, assim como Eliza disse, passou por momentos difíceis, em conflito consigo mesmo. Porém, é possível que essa desconfiança e medo de perder a esposa não fosse apenas para o parto, mas estivesse relacionado com Fanes desde o início.

— É por isso que não consigo deixar de pensar que, por mais que ele houvesse enlouquecido no final, poderia haver alguma verdade em suas palavras.

Refletiu em voz alta, fazendo todos pensarem. Nos dias de hoje, era claro como o dia que o atual monarca continuava com sua mesma personalidade do passado, não tendo mudado absolutamente nada. Entretanto, Fuyuki estava ciente que usar máscaras na nobreza era apenas algo comum, e tinha dúvidas do quanto aquilo que o rei mostrava perante os outros era verdade ou mentira.

Porém, se mesmo aqueles que estavam ao seu lado e acompanharam todos os eventos eram incapazes de reconhecer, ela jamais saberia. 

— Sora, Kanami. Por acaso, vocês repararam em algo nas expressões e forma de falar de Sua Majestade?

A duquesa se virou para seus guardiões e os perguntou, esperando que eles, da família Akai, que estavam acostumados a ler e reconhecer os sentimentos dos outros por atos casuais, pudessem saber algo a respeito. Os irmãos trocaram olhares e se voltaram para sua mestre:

— Ainda não tive a oportunidade de passar um período ao lado de Sua Majestade, entretanto, desde a primeira vez que o vi, jamais senti qualquer falsidade vinda de sua persona — respondeu primeiro a garota.

— Digo o mesmo, senhorita.

— … Se nem mesmo eles são capazes de lê-lo como falso, me pergunto se realmente Fanes é uma ameaça, ou não. Afinal, ele jamais se impôs para cima da rainha ou demonstrou hostilidade, estou certa?

Fuyuki, um pouco decepcionada, mas tentada a continuar pensando, se virou para Luccas novamente. 

— A senhora está correta, porém não sabemos o que alguém como ele pode ser capaz de fazer. Fanes atua diretamente por baixo dos panos, jamais sujando as mãos por conta própria. Ao menos, é o que imagino ao vê-lo contratar um Akai para trabalhar como guardião… Ah, perdão, não quis insinuar nada com isso.

— Não, eu entendo perfeitamente o que quer dizer.

Embora as palavras de Luccas pudessem soar como ofensivas, Fuyuki estava ciente de que não era sua intenção. Afinal, mesmo os próprios membros da família Akai sabiam que suas habilidades eram corriqueiramente almejadas pela nobreza, e seus contratos eram caríssimos. A verdade era que sua lealdade e discrição eram especialmente invejáveis, então ter alguém com essas características ao seu lado era como um trunfo. Você poderia dizer que ter um Akai trabalhando como guardião era sinônimo de não precisar sujar suas mãos de nenhuma forma, pois eles sempre fariam as coisas em seu lugar.

Mesmo a duquesa era incapaz de negar aquele apontamento, e não pareceu que Sora ou Kanami se incomodaram com as falas de Luccas. 

— Entretanto, suponho que se seu verdadeiro objetivo fosse usurpar o trono, ele teria feito isso desde o começo — continuou Fuyuki a pensar — Me pergunto por qual razão ele passaria tanto tempo se dedicando a manter a estabilidade do reino e garantindo que seu filho se preparasse para a coroação, em primeiro lugar.

— Talvez ele quisesse manter a imagem? — supôs Eliza.

— Não duvido, porém me parece uma razão fraca demais. Fanes desde sempre possuiu uma boa fama, então não era necessário muito de sua parte para mantê-la. Quando as pessoas viram alguém da plebe no trono, sendo um monarca melhor que alguém da própria realeza, o povo se tornou mais esperançoso e alegre.

— Sim, você está correto, Luccas — Fuyuki se recordou de quando o evento da coroação real começou, em que todos estavam felizes por ver Edward tomar seu lugar de direito, vê-lo fisicamente em anos e, principalmente, ouvir Fanes falar. Era justificável que sua personalidade fosse parte principal disso — Mas, então, Edward está ciente de que Fanes não é seu verdadeiro pai?

— Suponho que seja o caso — respondeu Luccas — Não estou a par do assunto, mas é impossível que ninguém jamais tenha lhe contado a verdade. Porém, isso jamais pareceu razão para Sua Alteza destratá-lo. Sinto muito, após essa época, não possuo muito mais conhecimento a respeito.

O ex-capitão abaixou os ombros e relaxou o corpo, acariciando os cabelos de Marie, que ouvia tudo em silêncio. Ela parecia pensar a respeito de tudo aquilo, mas sem estar disposta a dizer nada.

— Desde que Fanes tomou seu lugar como rei provisório, me aposentei e sai imediatamente de Hera com Marie.

Fuyuki estreitou os olhos, descendo as íris verdes do rapaz para a garotinha grudada a ele. Então, depois de um instante de silêncio, a duquesa piscou.

— Estive pensando a respeito desde o começo, e suponho que todos aqui já tenham deduzido, mas me permita perguntar diretamente a você.

Luccas apurou os ouvidos.

— … Marie, na verdade, é a segunda princesa que morreu, não é?

— Sim, a senhora está correta.

Fuyuki soltou um longo suspiro.

Marie enrijeceu o corpo e paralisou.

— Isso é verdade, Luccas? — perguntou ela, baixinho.

— … Me desculpe por não ter contado antes. 

Ao ouvi-lo dizer a palavra chave, seus pêlos deveriam ter se arrepiado de raiva. Entretanto, mais uma vez, aquilo não aconteceu. Nem mesmo Marie soube dizer a razão disso, pois esperava que uma carga de emoções a atingisse quando escutasse Luccas se desculpar novamente com ela, dando aquele olhar triste e vago. Entretanto, agora, seu coração não estava dando qualquer indício disso.

— Hm-hm. Não precisa se desculpar. Eu… Meio que entendo agora. Estou entendendo ainda, mas… Acho que as coisas estão fazendo um pouco mais de sentido pra mim.

Descobrir que, na realidade, era uma princesa perdida que foi levada de um palácio há anos, parecia o tipo de história que se leria em livros. No passado, se tivesse descoberto, provavelmente teria saltitando de felicidade e euforia, imaginando que poderia voltar ao seu lugar de origem e conquistar tudo aquilo que lhe era de direito. Poderia vestir roupas bonitas, comer até empanturrar a barriga, ter a oportunidade de estudar corretamente como Luccas sempre desejou… 

Mas, ao invés de choque ou felicidade, um sentimento de compreensão a invadiu. Como se suas dúvidas começassem a se sanar, e as coisas que ele fizera até então ganhassem sentido. As perguntas que não podiam ser respondidas, a razão para estarem constantemente se mudando, o medo de Luccas quando Marie saia nas ruas, a razão dele sempre parecer olhá-la diretamente nos olhos e elogiá-los, a razão dele dizer que tinha assuntos a tratar no palácio…

— Você está irritada comigo?

Como uma criança que teme uma bronca, Luccas perguntou baixinho à garota que se calou, mas não se desgrudou dele. Ele teve medo de que, ao finalmente poder revelar aquela história, a jovem ficasse brava com ele. O silêncio fez seu estômago se revirar. 

Marie se afastou de Luccas e baixou os ombros. Todos evitaram dizer qualquer coisa, aguardando qualquer reação ou resposta.

— … Por que você me tirou do castelo?

Foi sua pergunta. Luccas, temeroso com seu tom de voz baixo e sério, a respondeu.

— Quando a rainha… Quando sua mãe, Teresa, faleceu, e todo aquele caos começou, eu não soube o que fazer. Apenas… Em algum momento, entrei naquele quarto e vi você. Eu vi você nos braços daquela enfermeira, que se afastou chocada quando ouviu Roger te insultar. Eu me aproximei dela quando o rei tentou partir pra cima de Fanes, que ainda estava em estado de choque, e me ofereci para protegê-la. Para tirá-la dali antes que fosse tarde demais.

Luccas se lembrava de se aproximar da moça e fazer a proposta. A mulher segurava a pequena garotinha nos braços, escondendo-a com o corpo. Seus olhos se suavizaram ao perceber seu verdadeiro desejo.

— Então, eu a peguei nos braços e pude vê-la pela primeira vez. Seu rosto era pequeno e branco como papel, assim como sua mãe. Mas parecia muito mais forte do que quando Edward… Do que quando seu irmão ainda era bebê. Eu senti uma vontade imensa de proteger você, de proteger aquilo que Teresa havia lutado tanto para manter ao longo daqueles meses. Então, enquanto aquela bagunça acontecia, eu fugi. Sem que ninguém visse ou descobrisse, simplesmente corri do palácio para longe. Depois que coloquei você em um local seguro, retornei ao castelo para encerrar minhas atividades e fui responsável por prender Roger, mas não estava lá quando ouvi de meus colegas que ele desapareceu. Alguns dias depois, eu peguei você e fugi para longe. Viajei para um lugar que ninguém jamais descobriria a verdade. Eu não queria que Fanes soubesse que você ainda estava viva. Supus que contariam a ele que a criança acabou falecendo logo depois, mas a verdade sempre foi outra.

Com a pequena princesa em seus braços, Luccas viajou para o mais longe que pôde e se escondeu. Criou Marie com seu coração, como se fosse sua própria filha ou irmã. Viu quando ela abriu os olhos pela primeira vez, revelando íris rosadas um pouco mais escuras que as do pai, mas o aro ao redor das pupilas denunciava sua origem. Ele temeu que algum dia descobrissem a verdade, então viajou por vários e vários lugares, nunca permanecendo na mesma cidade ou vilarejo por tempo demais. 

— Eu sabia que ninguém jamais descobriria apenas reparando em seus olhos, mas uma parte de mim sempre teve pavor de pensar no que aconteceria a você caso Fanes e os outros descobrissem. Eu não quis que nem ele, aquele homem que nunca fui capaz de confiar ou descobrir sobre seu verdadeiro caráter, ou Roger tocassem um dedo em você.

A pequena garotinha, que sequer havia sido chamada por um nome ainda, recebeu o nome de Marie.

— Sei que estou sendo repetitivo, mas… Me perdoe por jamais ter lhe dito a verdade. Eu não queria que ninguém mais descobrisse. Eu queria ter sido capaz de lhe dar a boa vida que merecia. Que sua mãe sempre desejou a você. Mas tudo o que estivesse ao meu alcance, tudo o que minhas mãos conseguissem criar e fazer por você, eu fiz. Me desculpe por ter te feito passar por tanta coisa nesses últimos anos. Não fui capaz de explicar as coisas direito, de te deixar ter amigos ou estabelecer uma vida. Me desculpe por jamais ser capaz de responder suas perguntas sobre seus pais, ou sobre nossa relação. Jamais consegui deixar de pensar que talvez não estivesse cumprindo um bom papel como pai, irmão, ou… Aah. Me desculpe por nunca ter conseguido lhe dar a educação que merecia, ou ter dado todos os doces e brinquedos quando pediu… Me desculpe por ter sido incapaz de proteger sua mãe e de te proteger desse lugar.

Em algum momento, as lágrimas começaram a escorrer. Luccas não soluçava ao ponto de ser possível ouvir, mas Marie certamente percebeu a alteração em sua voz. Ouviu suas lamúrias e pedidos de perdão. A culpa que Luccas carregava em seu coração, e a responsabilidade de tentar fazer o possível por ela transbordavam em lágrimas que não poderiam ser definidas apenas como de tristeza. Era como um turbilhão de pensamentos que se amontoavam e cresciam, fazendo surgir aqueles pensamentos terríveis que carregou por tantos anos sozinho. Mas, mais difícil do que suportar o peso da culpa e da solidão, era pensar que agora Marie o odiaria.

Isso Luccas jamais seria capaz de lidar. Ele preferia morrer ao dar tanto desgosto a ela ou à filha que lhe foi confiada, ao que havia restado da brilhante Teresa.

Por isso, quando Luccas recebeu um soco dolorido em seu braço e conteve um grito de dor, ele olhou para a menina ao lado sem entender. Se encolheu quando mais e mais socos vieram, atingindo seu peito e braço sem parar. Mas o que mais o surpreendeu não foram os golpes, mas as lágrimas que escorriam e manchavam as faixas ao redor dos olhos dela. 

Marie inspirou fundo e fungou, contendo os soluços enquanto ainda batia em Luccas.

— Idiota, idiota, idiota! Eu já falei que não quero te ouvir pedindo desculpas, não é? Para com esse mau hábito! É um saco! Seu imbecil! Não tem como eu te odiar por nada! Eu… Eu nunca me importei com nada disso! Eu não ligo, eu não me importo! Eu tô pouco me ferrando pra ser princesa ou descendente de sei lá o quê! Eu… Eu sei que sempre fui um saco — Marie parou de bater e abaixou as mãos, assim como o tom da voz — E que só te dou trabalho porque me metia em confusão e pedia coisas sem parar. Mas eu nunca te culpei ou te odiei por nada disso. Se algum dia eu já disse isso, era mentira, seu idiota! Você não foi capaz de entender nada disso? Eu só queria… Só queria poder te fazer feliz, também. Eu só queria poder fazer algo pra te fazer sorrir e ter orgulho de mim. Eu queria ser útil pra você, tentar retribuir o que você sempre fez por mim. 

Mas Marie era uma completa incompetente. Ela não era capaz de fazer tarefas ou trabalhar corretamente sem cometer erros. Ela era fraca e apenas despertou seus poderes por coincidência, mas isso nunca a tornou especial. Ela via Luccas voltar do serviço tarde da noite ou espiava pela porta quando o escutava entrar na casa de madrugada, após trabalhar um dia inteiro. Seu coração pesava ao notar a olheira de exaustão e o jeito que sempre era gentil com ela, como evitava conflitos a todo custo. 

Sim, ela queria ter sido capaz de entender as coisas mais cedo. Ela queria ter sido capaz de amadurecer sua mente antes e tentar compreender a razão de todas as suas atitudes. De entender que as perguntas sem resposta e as noites mal dormidas de preocupação dele tinham uma origem muito maior do que pequena mente infantil era capaz de entender.

— Ainda não entendo muito bem, mas… Eu não ligo pra nada disso. Eu sempre amei você, Luccas. Você é tudo o que eu tenho, é minha família… Eu sou muito feliz de te ter ao meu lado, e quero que continue assim pra sempre.

Mais uma vez, os dois se abraçaram, agora chorando baixinho. Luccas acariciou os cabelos de Marie, ignorando completamente todos os outros presentes na sala. Fuyuki dava um sorriso gentil, Eliza enxugava as próprias lágrimas. Sora e Kanami desviavam os olhos da cena, um pouco constrangidos de estarem presentes em uma conversa tão particular.

— Sobre o assunto que nos contou…

Fuyuki pigarreou e chamou a atenção dos dois, que limparam timidamente os rostos vermelhos de tanto chorar.

— Você disse que precisava avisar Ryota, certo?

— Exatamente. Eu temo que tê-la envolvido tão profundamente com Fanes, Miura e Sua Alteza tenha sido um erro meu. Agora, depois de tudo o que fez por nós, gostaria de ser capaz de ajudá-la como puder. E, primeiro, ela precisa saber da verdade. É o mínimo que eu poderia fazer.

Apesar do nariz vermelho, Luccas tinha determinação no olhar. Fuyuki percebeu que ele falava realmente sério, e isso parecia ser um sentimento compartilhado com Marie também, que com a mão livre segurava o botão de seu colar com força.

— Eu entendo. Têm meu apoio.

— Ah… Senhora Minami?

— Pode me chamar de Fuyuki, Marie — a duquesa amaciou a voz quando foi chamada pela garota.

— A senhora e a Ryota são amigas?

Fuyuki e Eliza trocaram olhares. Sora arqueou uma sobrancelha e Kanami deu uma risada discreta da expressão do irmão.

— Sim, somos amigas. 

— E-Entendi.

Parecia que Marie ficou surpresa com essa revelação, e deu um sorriso gracioso. Eliza quase morreu de amores internamente ao vê-la demonstrar uma reação tão adorável pela primeira vez.

— Acredita que Fanes possa tentar algo contra Ryota? — a duquesa endureceu a voz ao falar novamente com Luccas — Ainda não estou inteiramente a par do que ela se envolveu, mas suponho que não seja algo tão simples de se resolver.

— Senhorita, se me permite — Kanami de repente se aproximou para falar — Acredito que a preocupação do senhor Luccas é que Sua Majestade descubra a respeito de sua ligação com Marie. Agora que o guardião real descobriu nosso envolvimento, as chances de tentarem algo contra ela são grandes. 

— Miura está ciente de que os ajudei, mas segundo o que ouvi de Kanami, parece que ele desconhece a razão de estarem atrás de Marie — falou Fuyuki — Desconfio que algo foi feito para impedir que ele tentasse nos culpar… E acho que sei quem foi responsável por isso.

Falar disso de forma indireta fez com que todos pensassem em uma única pessoa que poderia ter feito isso, mas ninguém falou seu nome em voz alta. 

Eu sabia que ela ter sumido por tantos dias não foi à toa… Aquela idiota. Eu a avisei desde o começo para tomar cuidado… 

Fuyuki suspirou ao lembrar-se de sua conversa com Ryota no passado.

— Não estou a par do que ocorreu no salão, mas porque Sua Majestade e Miura pareciam tão inquietos, devo presumir que ele te reconheceu, não é?

— Isso mesmo.

— Acha que ele sabe da verdade? Que Marie ainda está viva?

— Desconfio que sim. Apesar de seu guardião não saber, é possível que tenham feito isso com Marie por saberem exatamente quem ela era desde o início… E por isso ele tentou conversar comigo no corredor.

Luccas sentiu os pêlos se arrepiar apenas de lembrar da cena em questão, mas sacudiu a cabeça para se concentrar na conversa.

— Então, o responsável por ter feito isso com ela… Foi Sua Majestade? Mas por quê?

Eliza ergueu a mão.

— Se me permitem dizer, quando curei os ferimentos de Marie, senti que havia uma quantidade de chi especialmente concentrada em seu cérebro. Primeiro, achei que fosse uma coincidência, como algo canalizado depois do que ela passou, mas percebi que a origem era outra. Possivelmente, os olhos dela possuíam grandes valor.

— Como assim? — perguntou Luccas — A Marie apenas pode teleportar. Bem, ela só pode fazer isso se o local que ela deseja ir está em seu campo de visão, mas agora ela está se acostumando com isso… 

— Não acho que tenha a ver com sua habilidade de teleporte — retrucou a curandeira — Me parece que pode ser algo bem diferente… Ah, sinto muito, não queria ter trazido memórias ruins à tona. Aqui, Marie. Pegue mais uma bala, vamos. Que sabor você quer?

Ao perceber que a menina tinha se encolhido, Eliza prontamente se arrependeu de falar aquilo e rapidamente se aproximou, oferecendo doces com um sorriso, mas ela parecia realmente concentrada em seus próprios pensamentos. A curandeira fez uma expressão de culpa quando, de repente, Kanami se aproximou novamente.

— Com licença, mas acabo de me recordar que haviam alguns biscoitos na outra sala. Gostaria de me acompanhar, Marie?

Fuyuki ergueu os olhos com surpresa quando a guardiã se ofereceu para fazer aquilo. Não era nem um pouco o estilo da Akai, porém, parecia que o sentimento de ajudar na conversa era genuíno. Dito isso, Luccas incentivou a garota silenciosa;

— Vamos lá. Não está com um pouco de fome? Acompanhe a senhorita e descanse um pouco, está bem?

— Uhum.

Luccas deu um beijo na testa dela e a ajudou a andar até Kanami, segurando sua mão. As duas garotas andaram lentamente até o outro cômodo, fechando a porta em seguida.

— Eliza, você não estava ciente do que estava acontecendo até então, não é? Bem, a Ryota me contou vagamente o que aconteceu nas celas, mas me lembro dela mencionar que Miura foi o responsável por cegar Marie — Fuyuki falou, agora em tom sério de novo — … E, aparentemente, eles coletaram sangue quando fizeram isso.

— Sangue? — a curandeira segurou o queixo, pensando — Eu sei que chi é algo naturalmente invisível e intocável, mas que pode ser manipulado para se tornar qualquer coisa que a pessoa deseje. O sangue está ligado, provavelmente, à sua genética. É unindo essas duas coisas que se formam as características do despertar de alguém, descobrindo qual elemento é mais compatível. Se eles coletaram sangue de seus olhos, é possível que estejam tentando algo com isso.

— Mas por que a Marie? — perguntou Luccas — Parece um pouco horrível dizer isso, mas se buscavam sangue real, por que não Edward?

— Eles devem saber de algo que ainda desconhecemos, mas acredito que está ligado aos seus poderes individuais. Embora sejam irmãos, não quer dizer que seus elementos compatíveis serão os mesmos — Fuyuki respondeu, olhando de canto para Sora — Isso é um problema.

***

— Como está?

— É doce. E o café amargo.

— Perfeito, então.

Kanami e Marie trocaram aquelas palavras, conversando. A garota estava sentada em uma cadeira de frente para uma mesa, e a guardiã permanecia de pé logo ao lado.

— Ei, senhorita. Você lutou para me proteger nas celas, não é? — perguntou a garota de repente, fazendo Kanami piscar — Não me lembro direito do que aconteceu, mas acho que ouvi o som de espadas batendo.

— Sim, eu lutei — respondeu a guardiã, sem interrupções.

Marie mordiscou os biscoitos novamente, balançando as pernas curtas no ar.

— Hmmmm. Você não teve medo?

— Não.

— Por quê?

— Porque eu tinha uma missão para cumprir.

— Só isso?

— Só isso.

— Hmmm.

Marie comeu o restante dos biscoitos doces com uma única mordida, bebendo do café logo em seguida. Kanami arrumou a postura e colocou as mãos atrás das costas.

— Como eu faço pra não ter medo?

A garota perguntou de repente, pensativa.

Kanami piscou duas vezes, em silêncio.

— Pra não ter medo, eu só preciso ter uma missão pra cumprir?

— Não. 

— Então, como faço pra perder o medo?

A guardiã desceu seus olhos vermelhos sem brilho na direção da menina, que havia se virado para ela. Vendo-a daquela forma, por alguma razão, Kanami lembrou de si mesma quando criança, chorando sozinha em uma floresta. Afastou a lembrança imediatamente ao inspirar fundo. 

— O medo é apenas um empecilho em seu caminho e não deve ser levado em consideração. 

— … Não entendi.

— Em resumo, apenas faça o que deve ser feito.

Kanami não era boa com palavras como seu irmão, mas conseguia ser mais sensível. Por isso, quando Marie começou a refletir sobre sua resposta, a guardiã se perguntou se aquilo poderia realmente ser levado em consideração. Uma parte dela queria dizer que sim, mas um pequeno temor dentro dela dizia que não. 

A assassina havia sido criada daquela forma, portanto, seus conselhos seriam dados diretamente, assim como lhe foi ensinado. Entretanto, havia descoberto que nem todos eram capazes de seguir uma única linha de raciocínio ou aprender igualmente, pois as pessoas eram diferentes. E, apesar de ciente disso, foi incapaz de dar uma resposta diferente daquela que ouvira falar no passado.

Mas Kanami se surpreendeu quando Marie começou a rir de forma orgulhosa.

— Entendi. Parece perfeito para mim.

— Mesmo?

— Mesmo. Afinal, eu sou um caso perdido que apenas faz o que quero fazer. 

A garotinha riu sozinha, parecendo se lembrar de algo do passado alheio à Kanami. Então, Marie se virou para ela e ergueu a palma da mão.

— Valeu, senhorita! Você é incrível!

A guardiã não entendeu a razão de receber um agradecimento, do elogio ou por que a garota ainda mantinha a mão ereta estendida em sua direção.

— Vamos, bate aí.

— Bater?

— É só bater sua mão na minha. Você sabe como fazer, não é? Vai! 

Kanami fez uma expressão de confusão ao ver Marie mexer os dedos, esperando uma ação. Então, lentamente a guardiã grudou a sua palma direita na da menina, que, percebendo que foi um toque fraco, recolheu o braço por um momento e bateu sua mão com tudo na dela.

— Agora sim!

Parecia que Marie havia recuperado seu humor e ânimo, e por mais que Kanami não tivesse entendido direto a razão, ela suspirou em contentamento. 

***

 — Sinto muito interromper, mas não temos mais tempo — disse Sora de repente, se aproximando do trio que conversava — Estamos há mais de uma hora aqui, e desconfio que permanecer por mais tempo é perigoso.

Era uma ameaça de previsão. Fuyuki deduziu que seu guardião temia que Miura pudesse descobrir que ela e seus guardiões estivessem fora de seu campo de visão. Ou melhor, que ainda não estivessem em seus quartos, mesmo com ela dizendo que retornaria.

— Muito bem. Retornemos aos nossos aposentos imediatamente, mas gostaria que você os guiasse para as passagens secretas mais uma vez, Sora. Apenas por precaução.

— Certo.

— Obrigado novamente — Luccas se colocou de pé também — Garanto que fugiremos assim que possível.

— Não vamos fugir.

A voz de Marie se ergueu em meio a eles. Com Kanami logo atrás, ela caminhou sozinha até onde o grupo estava.

— Eu quero conversar diretamente com meu irmão.



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