Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 6 – Arco 3

Capítulo 54: Uma História de Treze Anos Atrás

— Essa é uma história que aconteceu há mais de uma década atrás, em uma época que as coisas em todo o reino de Hera e até mesmo Thaleia eram completamente diferentes.

Após inspirar profundamente, recepcionado por um silêncio confortável, Luccas começou a falar. Ele ainda envolvia Marie com um dos braços, mas seus olhos desceram para o chão, reflexivos. A emoção de nostalgia e melancolia era demonstrada pelo brilho em seu olhar.

— Há mais de dez anos… Ou melhor, mais especificamente, há mais de treze anos atrás, uma série de eventos mudou a história de Hera. Como essa não é uma história em que estou diretamente envolvido, não possuo conhecimento de todos os eventos, mas, ainda assim, eu sinto que preciso explicar a vocês a verdade… Especialmente, preciso contar isso para Ryota. 

— Uma história de mais de dez anos… — Fuyuki refletiu em voz alta, levando uma das mãos ao queixo — Está se referindo a como a família real colapsou?

Luccas assentiu.

— Como eu disse, não estou ciente de tudo, mas estive presente durante alguns dos momentos mais importantes e ouvi bastante a respeito ultimamente, quando perguntei a meus antigos companheiros de serviço.

— Antigos companheiros? — Eliza perguntou.

— Sim. Na realidade, no passado, eu fui capitão da guarda real, mas acabei me aposentando.

A curandeira fez um som de surpresa, piscando. Luccas devolveu um sorriso a ela, entendendo que ela reagiu daquela forma ao perceber que ele deveria ter tido tal posto ainda bastante jovem.

— Por isso, acredito que, nos dias de hoje, apenas Fanes esteja ciente da história completa… Mas, enfim. Como sei que ele jamais seria capaz de contar a verdade a ninguém, preciso alertá-los do perigo futuro… Ou melhor, alertar especialmente Ryota e Sua Alteza, Edward.

O ambiente imediatamente se tornou ainda mais sério, com todos se concentrando nas palavras de Luccas.

— Quando me tornei capitão da guarda, eu recém tinha feito vinte anos.

As memórias de Luccas viajaram no tempo, para um passado não muito distante da atualidade. Ele se recordou da época em que ainda era bastante imaturo, quando havia recebido aquele tão prestigiado título, sendo aplaudido por seus colegas e recebendo abraços de seus antigos mestres e professores da área. Luccas não era um homem talentoso por natureza ou descendeu de uma família boa, mas foi determinado o bastante para ser reconhecido por seus esforços, sendo condecorado com aquele uniforme e profissão tão honrados.

Ainda se recordava de seus antigos colegas de trabalho, dos antigos empregados do palácio real que por vezes reconhecia e cumprimentava em seu dia-a-dia. E, principalmente, se lembrava de alguns rostos bastante nostálgicos em sua mente, mas que não necessariamente lhe traziam boas memórias.

Naquela época, quando foi prestigiado com o título de capitão, lembrava-se de ter sido uma ocasião grandiosa entre a guarda real. Porém, houve uma surpresa ainda maior quando uma pessoa nada esperada por ele surgiu no evento, fazendo todos se assustarem. Era um homem de estatura baixa e corpo consideravelmente musculoso. Seu rosto não demonstrava simpatia, era mais como uma expressão naturalmente séria que poderia ser facilmente confundida com desgosto. Cabelos loiros caiam como ondas na direção de seus ombros, dando uma impressão selvagem. Seus olhos eram de uma tonalidade rosa clara, completamente desproporcional com sua aparência geral. Aquelas íris claras pareciam ser o único ponto que poderia demonstrar algum tipo de emoção agradável. Uma barba por fazer serpenteava em seu rosto, assim como uma expressão constantemente séria. Andava com uma postura enrijecida, digna de um soldado ou espadachim renomado.

Aquela pessoa que se aproximou de Luccas com uma coroa em sua cabeça e o saudou com um aperto de mão era Roger Fiore, o antigo rei de Hera.

— Roger Fiore… — Fuyuki soltou um suspiro — Ouvi falar a respeito dele. Me recordo de meu pai comentar que ele era bastante respeitável quando se tratava de suas habilidades de batalha, porém desprezível socialmente e como rei.

— Exatamente. Roger era um homem detestado e com péssima fama, porém, na época, eu me senti honrado por ver o rei vir de seu palácio apenas para me cumprimentar. Isso demonstrou que ele possuía expectativas em mim. 

Luccas deu um sorriso bobo, como o de um garoto que relembrava um encontro com seu ídolo. Na realidade, ele não tinha uma opinião a respeito de Roger, porém, seu coração se preencheu de orgulho e grande respeito pelo homem. Entretanto, aquela sua visão sobre ele viria a mudar conforme o tempo trabalhando no palácio e na capital passou.

Roger Fiore era um péssimo monarca. Não porque ele não recebeu os devidos estudos ou não era astuto. O problema em sua época de reinado estava em seu caráter como pessoa. Afinal, ainda que fosse alguém inteligente, sua sagacidade não era compatível com os trabalhos de um rei, mas com um soldado que iria para o campo de batalha.

Na época, o povo temia sobre qual seria o futuro de um país nas mãos de um monarca como aquele. Roger era especialmente desgostoso com a própria vida, mas sempre cumpria com seus deveres, não importava o quanto a corte ou a nobreza o questionasse a respeito de seus métodos ou ideologias dignos de um homem de mentalidade e personalidade fria e direta. 

Em termos de comparação, Roger e Fanes eram pólos completamente opostos.

A verdade era que Roger sempre desejou ser um soldado, ser alguém que poderia ir ao campo de batalha lutar por seu povo, por seu reino e seu país. Entretanto, como era jovem demais, jamais teve tal oportunidade, mesmo durante a época em que a Era Sombria ainda assolava o mundo. Quando príncipe, suas habilidades com a espada eram de tirar o fôlego, mas ele jamais viria a usá-las. Nem mesmo quando seus pais acabaram falecendo durante essa era, quando mais do que nunca desejava ser capaz de lutar e vingar sua família. Dito isso, ele precisou ficar completamente preso ao seu destino como rei, e possivelmente isso moldou seu caráter e personalidade, o fazendo ter desgosto pelo próprio trabalho ao invés de orgulho e honra.

Esse comportamento gerou não apenas medo no povo, que via Roger com certo medo, mas até mesmo raiva pelas famílias nobres e corte, que sempre tentavam lhe passar a perna ou se sobressair. Porém, ainda que fosse do tipo rabugento, jamais poderia ser chamado de idiota, então sempre foi capaz de lidar perfeitamente com todas as situações de risco ou ameaça que chegavam até ele e seu reino. Era um homem impossível de ser manipulado por sua mentalidade estratégica, tomando sempre o caminho árduo de decisões e atitudes firmes.

Além de todas essas características e passado detestável, Roger também não era particularmente belo. Ao contrário de muitos outros príncipes e parentes seus da realeza e nobreza, o rapaz esteve longe de ser considerado algo como alvo de elogios. Isso nunca mudou, desde sua infância até sua fase adulta — e este combo pode ter sido a razão dele jamais ter conseguido se casar ou noivar adequadamente, afastando todas as mulheres que se aproximavam. 

Isso o fez se tornar um homem amargo e solitário, que sempre afirmava não haver necessidade em ter relações próximas com amigos ou com mulheres de forma alguma. Roger não era desonesto ou uma pessoa ruim, mas apenas difícil demais de se lidar, e que ninguém jamais conseguiu se aproximar e sequer ter sua confiança ou coração. 

Foi nessa época de seu reinado que seu povo — em especial, Hera — começou a empobrecer. Este problema há muito se espalhava graças aos problemas com as guerras entre países, como Clior, porém as coisas escalonaram de forma absurda e inimaginável com a chegada da Era Sombria. Os pais de Roger, e até mesmo ele, tomaram a abordagem mais absurda, porém necessária, de todas: Optar por trégua. Apenas dessa forma, a humanidade poderia sobreviver à catástrofe que se espalhava ao redor do mundo. Os Fiore, desde então, apertaram a mão de seus inimigos e formaram “laços” com eles, porém, sempre havia o medo de serem traídos em algum momento, e os problemas internos com pobreza, fome e segurança ficavam mais complicados a cada dia.

A tristeza do pós-guerra e pela passagem de uma época apocalíptica também afetou toda Thaleia, que agora se adaptava à ideia de conviver com povos de outras nações — Urânia, Polímia e Clior. As pessoas desejavam mais, algumas queriam vingaça, queriam expulsá-los e ignorar a decisão de seu rei de optar pela paz e sobrevivência. O ser humano egoísta e orgulhoso não aceitou tal decisão, mas como Roger sempre foi precavido, ele jamais permitiu que as revoltas ganhassem força e manteve a ordem e “paz” — ainda que essa ordem fosse feita de forma violenta e autoritária.

Então, como esperado, assim como seu rei, as pessoas se tornavam cada vez mais amargas. O destino de Hera, e de Thaleia, o único país restante no mundo, começava a ter sua contagem regressiva. Havia desespero e necessidade, medo e ansiedade, tristeza e solidão.

Mas, acima de tudo, Roger precisava dar sequência ao seu trabalho. E, para isso, precisaria de uma esposa. Ele não se importava com aparências ou personalidade — afinal, quem era ele para julgar? Seu único requisito era que fosse uma mulher digna de ser rainha, capaz de ajudá-lo a manter a ordem e dar-lhe filhos o bastante para que pudessem reestabelecer o espírito esperançoso e alegre de sua nação. Ele precisava de uma mulher forte e de coração e espíritos inabaláveis, assim como seu rei.

— E então… Ela apareceu.

Eliza piscou, sem entender.

— “Ela”?

— … A rainha Teresa.

Por fim, os olhos de Luccas, que haviam passado de nostalgia para melancolia, finalmente brilharam novamente ao se lembrar da moça. Um sorriso escapou em seus lábios.

— Honestamente, até hoje não sei exatamente como tudo aconteceu… Mas, um dia, enquanto andava pelo palácio, encontrei uma linda jovem. Pela aparência, não deveria ter mais de dezenove anos, mas sua mentalidade era tão madura quanto o de uma mulher mais velha e experiente.

As lembranças de Luccas o levaram a uma cena que ficaria gravada em suas memórias para sempre. Seus olhos bicolores foram atraídos para uma movimentação no jardim real, e ele observou por uma das portas uma moça tocar delicadamente nas flores com uma expressão perdida. Seu sorriso suave e olhos azuis brilhantes informaram a ele ser uma garota de bom humor e gentil. Seus cabelos castanhos caiam como cachoeiras por suas costas. Ela usava um vestido que se adequava perfeitamente ao seu corpo, um tecido confortável e que lhe permitia andar sem estar presa a grandes saias ou mangas apertadas. 

A jovem andou pelo jardim com a mesma expressão encantada, um sorriso crescendo quanto mais observava a variedade enorme de flores disponíveis. Foi nesse instante que outra pessoa se aproximou, falando com ela. Luccas não conseguiu escutar o que era, mas percebeu que as palavras de Roger a fizeram revelar ainda mais os dentes brancos. 

A parte mais curiosa daquela cena tão colorida e iluminada como um quadro em movimento era que Roger não estava com seu habitual rosto de amargura, pois suas feições se suavizaram ao ponto de parecer quase relaxado. Ele não sorria, mas parecia tão encantado pelo ambiente quanto a jovem.

Imediatamente Luccas percebeu que o rei havia se apaixonado pela dama. E, sentindo que talvez estivesse se intrometendo em uma espécie de encontro à sós, fez uma reverência solitária e foi embora, ainda com a imagem daquelas duas pessoas em sua mente. 

Não demorou muito para que as conversas entre os soldados, guardas e empregados corressem à solta sobre a bela jovem que repentinamente surgiu no palácio. Porém, eles também falavam que ela era uma plebéia que encantou Roger com suas palavras e beleza, embora, quando tivesse chegado, estivesse suja para os padrões da realeza. Nem mesmo a nobreza foi capaz de compreender o que Roger viu naquela moça de aparência e personalidade bonitas, que nada mais era do que simples e sem qualquer qualidade exuberante ou especial.  

Mas não importava, pois Roger, ainda que não tivesse notado, estava definitivamente apaixonado por ela.

O nome da dama era Teresa. Ela era de fato apenas uma plebéia, mas que viera ao palácio trabalhar para Roger como médica. Aparentemente, a moça era habilidosa no assunto e tinha uma mente aguçada, sendo capaz de preparar remédios caseiros com facilidade e velocidade. Aos poucos, as fofocas entre os empregados e guardas cessaram, pois Teresa se mostrou uma mulher doce, que sempre cumprimentava a todos quando passava e elogiava-os pelos trabalhos. Além disso, suas habilidades eram dignas de serem notadas, então aqueles que também uma vez foram de classe baixa deixaram de falar por suas costas, se arrependendo.

Mas a nobreza e a corte não viram-na dessa forma, e houveram relatos de abuso e maus tratos à garota, porém ninguém jamais foi capaz de lidar com eles diretamente sem temer o que poderia acontecer caso descobrissem a origem da denuncia. O medo de não apenas perder seu emprego em um lugar de prestígio, mas ser ameaçado e ter sua família envolvida eram grandiosos — portanto, tudo o que as pessoas podiam fazer eram fechar os olhos e apoiar Teresa em silêncio, orando para ser forte.

Entretanto, Teresa jamais retrucou os maus tratos ou denunciou ninguém a Roger. Na verdade, sempre foi forte de mente e coração, sendo gentil com quem eram gentis com ela, mas jamais deixando seu orgulho ou raiva assumirem suas atitudes e palavras.

Luccas, em especial, não via a jovem com frequência. Porém, em todas as manhãs que saia para patrulhar ou reunir-se com seus homens dentro do palácio, recordava-se de ouvir uma bela melodia. Era o som da flauta de Teresa, que a tocava durante o amanhecer e o anoitecer. Uma música que encantava e acalmava o coração de qualquer um que a ouvisse. Normalmente, Teresa tocava no jardim, ao lado da natureza, parecendo estranhamente próxima com ela. Para Luccas, que apenas a observava à distância, sem desejar se aproximar demais para não atrair a atenção de Roger, Teresa parecia tocar para espairecer a mente ou esquecer dos problemas, como se isso também a fizesse relaxar.

Ele compreendia aquele sentimento. Na verdade, todos que a rodeavam, escutando-a tocar todos os dias, entendiam. Então, alguns anos mais tarde, quando Teresa e Roger oficializaram seu noivado, não foi uma surpresa que o povo a aprovou. É claro, a nobreza e a corte eram inteiramente contra, porém Roger estava feliz com a delicada moça. Sua amargura e desgosto pelo trabalho sumiram, revelando uma face inteiramente plena e direta do homem, que agora até mesmo era capaz de cumprimentar seus colegas e sorrir de forma leviana algumas vezes. Ainda era bastante recluso e tinha dificuldades em dialogar, porém, ninguém poderia dizer que essa mudança não tornou o ambiente de trabalho, e até mesmo o ambiente da capital real, muito mais agradável.

Teresa foi um evento que mudou a todos, de alguma forma.

Porém, ela não foi a única.

Afinal, na mesma época em que seu noivado se oficializou, ela foi capaz de contratar outras pessoas para trabalhar ao seu lado como médica real até que finalmente se aposentasse para se tornar rainha. Pessoas exclusivamente de classe baixa, assim como ela… E, uma daquelas pessoas era um homem de cabelos e olhos de tom pastel, um bege bastante simples, assim como sua origem e personalidade. 

Fanes eventualmente ocupou o posto antigo de Teresa como médico real, parecendo realmente próximo da jovem. Boatos diziam que ambos já se conheciam há tempos, pois foi impossível não notar como eles conversavam tão alegremente um com o outro. As fofocas iam e vinham. E, naturalmente, pessoas que desejavam acabar com o casamento de Roger também, pois essas conversas venenosas chegaram até ele. Entretanto, Luccas apenas ouviu falar que o escândalo eventualmente foi abafado com a verdade sendo revelada, e que Teresa e Fanes nada mais eram do que amigos de infância que outrora foram muito próximos, sempre se apoiando.

Não demorou muito mais tempo para que o casamento acontecesse, oferecendo uma grande festa em todo o reino. Eles eram um casal feliz. Mesmo depois de terem passado meses, anos juntos, eles continuavam com as mesmas práticas e conversas isoladas, como se fossem um par de adolescentes apaixonados. Ainda saiam em encontros noturnos, sozinhos. O casamento de Roger e Teresa Fiore foi feliz… Até que a notícia do primeiro filho do casal chegou aos ouvidos de todos, que estavam ansiosos para conhecer o príncipe primogênito da nova família real.



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