Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 6 – Arco 3

Capítulo 52: Razão Para Estar Aqui

— Zero.

— O quê?

— Seu rosto tá vermelho.

— N-Não está.

— Tá siiiimmm.

— Para de me cutucar.

— Zero.

— O que foi?

— Você é uma gracinha.

— Ugh.

— Ah. Ficou vermelhinho de novo. Quem é o tomatinho agora? 

— Eu já falei pra parar de me cutucar!

Por alguns minutos, entretidos em seu próprio mundo, Ryota e Zero começaram a ter interações dessa forma. Edward, que observava de canto, apenas encarava sem entender direito o que estava acontecendo. Fazia apenas pouco mais de uma hora que havia se afastado da garota após sua última dança e, ao vê-la com Luccas, parecia perfeitamente normal. Ao menos, era assim que enxergava à distância. Agora, ele percebeu que ela não apenas estava completamente bêbada, como também perdeu completamente o raciocínio, ficando presa a zombar de Zero a cada instante.

Os três estavam de pé próximos a uma parede do salão, um pouco afastados do restante das pessoas. Agora que todos estavam praticamente bêbados ou extasiados demais com a festa para se concentrarem nas formalidades, o príncipe teve um tempo de descanso depois de ser rodeado por pessoas. 

Mas ele quase desejou bater a cabeça contra uma parede ao ver a cena diante de seus olhos. Não porque sentia algo em especial assistindo Ryota praticamente agarrada com Zero, cutucando-o com o dedo indicador e rindo sozinha, mas parte dele se sentiu tão afastado que parecia estar assistindo a um filme genuinamente constrangedor.

E era ainda pior quando as pessoas que estavam envolvidas eram conhecidos seus.

— E eu posso perguntar por que ela ficou desse jeito? — Edward finalmente conseguiu espaço para dialogar com Zero, que estava completamente sem graça com a situação, porém, era incapaz de se livrar da garota grudada a ele.

— Ah… Honestamente, sei tanto quanto o senhor, Alteza.

— Me chame apenas de Edward, Zero. A essa altura, não precisamos de formalidades. Acredito que esteja a par de muito mais coisas do que realmente estou ciente. 

Zero deu um sorriso torto para as palavras do príncipe, que apesar de ter apontado algo que não poderia ser ignorado, ele não parecia incomodado com isso.

— Não estou irritado, muito pelo contrário. Estou ciente de que tanto você como a senhorita Fuyuki são pessoas que Ryota confia, então gostaria de poder confiar em vocês, também.

Vendo Edward falar dessa forma, Zero mostrou uma expressão surpresa. 

— E-Entendo. Então, muito obrigado por sua confiança. 

— Não agradeça a mim. Deveria direcionar esses sentimentos a ela — Edward apontou com o queixo para Ryota, que passou os braços ao redor de Zero e permanecia com o rosto colado junto ao seu peito, sorrindo de forma idiota.

— Zerooo.

— O que foi? — a voz dele, que antes havia saído de uma irritação constrangida, para uma de completa desistência, a respondeu.

— Estou ouvindo seu coração batendo.

— Bem… Eu estou vivo, então é claro que está batendo.

— Uhum, uhum — Por um segundo, ela pareceu pensativa a respeito, então logo desfez a expressão melancólica e estampou novamente um sorriso — Mas ele não tá fazendo “tu-dum”, tá fazendo “tudum tudum tudum”.

— … Falando dessa forma, soa igual para mim.

Zero entortou o rosto durante a conversa, claramente desejando mudar de assunto. A verdade é que ele não queria afirmar em voz alta diante do príncipe que seu coração realmente estava disparado — embora seu rosto vermelho denunciasse perfeitamente seus sentimentos.

— Ryota.

— Hm? O que foi, Ed? — Ryota abriu os olhos azuis e olhou para Edward, o fazendo franzir a testa.

— Em primeiro lugar, o que é esse apelido?

— Hm? O Ed é o Ed, ué. 

Zero e Edward trocaram olhares confusos, então riram.

— Por que você bebeu?

— Hm? Porque eu quis.

— Não parece uma desculpa conveniente para alguém que claramente não está acostumada a beber — apontou Zero, fazendo Ryota mostrou um bico com os lábios.

— Eu só queria limpar a mente. É só isso. Ou o quê? Tá dizendo que sou irresponsável, Ed? É isso? É isso mesmo?

Novamente criando uma paranóia em sua cabeça, a garota inclinou o rosto para os dois lados repetidamente, fazendo seu cabelo balançar de lá para cá. Edward balançou as mãos no ar, de repente ficando nervoso ao ser acusado tão seriamente pela garota que tinha lágrimas de tristeza nos olhos — as famosas lágrimas de crocodilo que Zero imediatamente reconheceu.

Enquanto ouvia os dois discutirem, o rapaz reparou em algo. Em determinado momento, os cabelos da garota ficaram completamente bagunçados e, assim que foram jogados de um lado para o outro, algo estranho chamou sua atenção. 

Do lado esquerdo do pescoço da garota, havia uma marca. Zero pôde dizer apenas de relance que se assemelhava a um desenho conhecido, possivelmente ao símbolo de alguma família. Apenas quando Ryota jogou o cabelo para o lado novamente que viu perfeitamente o que era: Uma marca dos Fiore fora gravada ali. Mas não desenhada com tinta ou algo do tipo, mas cravada como se tivesse sido queimada na pele.

A mente de Zero ficou em branco. Porém, ao mesmo tempo, uma infinidade de pensamentos passou pela sua cabeça. Ele queria realmente perguntar a origem daquilo e, ainda assim, uma parte dele tinha certeza de que saberia dizer o que era, mas não conseguia lembrar. 

— Alôôôu? Ryota chamando Zero? Câmbio, responda? Oiii?

— Eu já falei pra parar de me cutucar!

Sendo chamado para a realidade aos cutucões do dedo indicador de Ryota, Zero exclamou alto, a fazendo rir de novo. Ele piscou e, imediatamente, o pescoço com a estranha marca desapareceu por trás dos cabelos negros cheios de nós.

— Parece que ele não está nada bem, senhor Ed. O que devemos fazer? Levá-lo para a cama?

Edward piscou algumas vezes, um pouco constrangido quando a garota de repente começou a interpretar uma enfermeira e olhou para ele, como se aguardasse uma ordem do médico chefe. Isso o fez lembrar da cena que tiveram em seu quarto certa vez, e ele provavelmente teria entrado no jogo caso não estivessem rodeado de pessoas. Então, o príncipe apenas pigarreou e olhou seriamente para Ryota.

— Na realidade, acredito que quem deveríamos levar ao quarto seja você.

— Hã? Então na verdade a doente sou eu? Eu sou a paciente aqui? Hã? Hein? — Ryota apontou várias vezes para si mesma, realmente em choque com a reviravolta de acontecimentos.

— Como o clímax do baile já se encerrou, não vejo problemas para se retirarem — continuou Edward, olhando para Zero — Antes da festa começar, ela havia dito que não se sentia bem. Agora que as coisas pareceram se acalmar, e com Miura e meu pai envolvidos demais com o baile, acredito que está tudo bem retornarem aos seus apose-

— Não quero! Não quero voltar pro quarto!

De repente, como uma criança, Ryota bateu o pé no chão e rejeitou brutalmente Edward. Zero poderia ter caído de susto com esse comportamento rude dela, preocupado como o príncipe reagiria a ele, mas na realidade Edward pareceu apenas surpreso.

— Como não? Você não disse que queria descansar?

— Quem é que disse isso? Eu tenho mais o que fazer do que dormir! Eu não tô cansada, nem um tiquinho assim. Eu preciso ir atrás do Luccas e garantir que tanto ele quanto a Marie tenham conseguido fugir.

— Luccas? Marie? — Zero olhou de Ryota para Edward, confuso.

— É uma longa história.

— De qualquer forma, eu estou perfeitamente bem — ao dizer isso, como num passe de mágica, a garota tropeçou e foi segurada imediatamente pelo príncipe — Viu?

— “Viu”, nada! — exclamou Zero, agora irritado — Não vê que está causando problemas a Vossa Alteza?

— O Ed não liga! Tá vendo? Ele me segura bonitinho, que fofo.

— Agora já chega! Para de agarrar o futuro rei desse jeito, que vergonha!

Zero praticamente puxou Ryota do colo de Edward, que apenas se encolheu quando foi abraçado pela garota risonha. Mais uma vez, as bochechas do rapaz ficaram vermelhas, mas era de constrangimento por estar vendo um lado tão irritante repentinamente surgindo nela. Ao dar um suspiro, direcionou seus olhos prateados para o príncipe.

— A levarei de volta para seus aposentos.

— Obrigado.

Assim que Edward e Zero trocaram palavras, o príncipe se virou para sair andando de volta para o meio da multidão, mas foi parado quando uma mão segurou suas roupas.

— Ei. Tem certeza de que consegue fazer isso sozinho? Eu posso ficar com você e entreter seu pai e Miura, e até os outros da corte, se precisar. Sou sua guardiã, afinal de contas.

Apesar das palavras saindo de forma bagunçada, Ryota falou com uma certeza que não poderia ser dispensada. Ela sabia que o príncipe não gostava de ficar conversando com pessoas por muito tempo — principalmente com Fanes e Miura. Então, parte dela se sentiu preocupada e até culpada por precisar deixá-lo sozinho naquela situação, enquanto retornava aos seus aposentos. Porém, com um sorriso gentil, Edward retirou a mão dela de suas roupas.

— Não se preocupe e apenas descanse nesta noite. Além disso, preciso cumprimentar algumas pessoas e agradecer de forma apropriada à senhorita Fuyuki pelo auxílio, então, de toda forma, devo estar sozinho.

Ryota semicerrou os olhos e encarou Edward como se o fuzilasse, mas desistiu soltando um suspiro.

— Toma cuidado.

Assentindo novamente em despedida aos dois, Edward deu meia volta e caminhou para longe deles, entrando no meio das pessoas e desaparecendo. Agora, a festa havia diminuído o ritmo da música e as pessoas não mais dançavam fazendo voltas pelo salão, apenas se mantendo em seus grupos conversando ou dançando no próprio canto. 

Lentamente, o baile finalmente chegava ao seu fim.

— Então, vamos?

— Não precisa me carregar, eu não estou tão bêbada.

— É exatamente isso o que uma pessoa bêbada diria.

— Eu não estou!

— Parece o Jaisen falando… Certo, certo, então apenas segure no meu braço, está bem?

Ryota inflou as bochechas e gritou com Zero, mas acabou acatando sua oferta fazendo um som de convencimento. Os dois começaram a andar e passaram por uma porta, saindo do salão de festas. Assim que as portas duplas foram fechadas e ambos caminharam pelos corredores vazios, porém com o som distante da música, um silêncio se instalou entre eles. 

Zero não conseguia parar de pensar na marca que estava no pescoço da garota e, lentamente, a vontade de perguntá-la o que era aquilo começou a crescer. Porém, antes que pudesse fazer a pergunta, sentiu algo errado. Afinal, o braço que envolvia o seu fraquejou e o corpo que andava começou a cair, precisando ser segurado rapidamente quando Ryota adormeceu no meio do caminho.

O rapaz soltou um suspiro quando começou a carregá-la.

— Você realmente dá trabalho…

***

Era um calor nostálgico. Embora não pudesse enxergar apropriadamente e nem raciocinar, podia sentir o quanto gostava daquela sensação. Doce como um abraço de mãe. Agradável como um cheiro de infância. Não haviam formas no mundo recheado de cores, mas tons pastéis e quentes preenchiam sua visão, com formas sendo desenhadas como numa grande tela em branco. Como se milhares de pincéis espalhassem as cores em formas de nuvens suaves. 

Como fechar os olhos em um dia de primavera sob a sombra aconchegante de uma árvore e apreciar a brisa que batia, o cheiro suave de flores invadindo seu nariz. Ou, então, como se seu próprio corpo entrasse em contato com outro ainda mais quente, encostando suas próprias costas contra ele e relaxando-o. Havia um cheiro agradável que lhe lembrava de casa, um cheiro que fazia relaxar os ombros e músculos. Fechava os olhos e a vontade de dormir a atravessava. Era confortável, agradável e sereno. 

Embora formas e vozes não fossem distinguíveis naquele mundo colorido e precioso dentro de suas memórias e coração, os sentimentos eram. O calor de amar e ser amada; a vontade de proteger e ser protegida; o carinho de cuidar e ser cuidada; a felicidade de abraçar e ser abraçada. Sensações como essa vinham e iam, transmitidas por diversas formas e cores, mas que uniam-se em apenas um único núcleo dentro dela, refrescando seu coração e, ao mesmo tempo, o apertando dolorosamente em disparada. 

Lágrimas escorreram pelo rosto adormecido que fazia uma careta na cama. Seu corpo estava encolhido em posição fetal, sem cobertas. Havia sido deitada com delicadeza para que não despertasse e, então, o rapaz que a carregara até ali se afastou para ligar a luz fosca e amarelada do abajur. Ele iluminou vagamente a cama, as costas da garota dormindo, e parte do cômodo.

Zero caminhou até a porta do quarto para fechá-la e se dirigiu até as janelas, fechando as cortinas silenciosamente. Seus olhos prateados reluziram com a luz do abajur quando ele os voltou por um instante para Ryota na cama, torcendo as sobrancelhas em preocupação

O rapaz, desde que a vira no baile, estava se contendo bastante. Ele não queria importuná-la ou atrapalhá-la de forma alguma. Na verdade, a festa de alguns minutos atrás e todo o caos que ocorreu durante ela foi apenas parte daquilo que o preocupou tanto. Faziam dias desde que Zero havia visto Ryota pela última vez. Discretamente, havia perguntado a respeito para Fuyuki, para os seus companheiros guardiões, para os outros nobres e até mesmo para o próprio príncipe Edward, sem qualquer medo de ser rejeitado. Mas ninguém sabia nada sobre seu paradeiro. 

Quando dois dias sem sinal algum dela se passaram, com Zero prestes a criar uma confusão por conta de seu desaparecimento, ele a viu no baile. À primeira vista, parecia normal como sempre, mas Zero sentiu algo em seu coração. Havia nas expressões e sorrisos da garota uma cicatriz invisível que não estava sob a pele. Aliás, não apenas uma, mas talvez muito mais além do que ele sequer poderia imaginar. 

Ele teria corrido em sua direção para verificar seu estado se não tivesse feito uma promessa a outra nobre em troca de seu apoio. Sofia Megalos manteve o olho no rapaz durante todo o baile, bastante ciente de sua preocupação, mas ignorando completamente seus sentimentos, como se estivesse se divertindo com seu sofrimento. Apenas algo natural de se esperar de alguém como ela. E Zero não poderia ficar ainda mais frustrado do que isso até que os eventos tivessem se desenrolado até aquele instante. Até o ponto em que a garota, completamente bêbada, grogue, falando coisas sem qualquer sentido e rindo feito boba, tivesse caído em um sono profundo.

O rapaz sentiu quando, enquanto a carregava até o quarto, lágrimas caíram e molharam sua roupa. Não lágrimas de tristeza ou dor, mas com um outro sentimento imbuído que ele não soube dizer o que era. Queria perguntar o que havia de errado, queria ser capaz de lhe estender a mão e oferecer auxílio. Queria ser capaz de emprestar-lhe o ombro para que chorasse e lamentasse o quanto precisasse. E, então, como sempre, ela se colocaria de pé e o agradeceria com um sorriso sem graça no rosto, completamente envergonhada por ter “dado trabalho” a ele mais uma vez.

Tinha sido por aquele sorriso que se fazia de forte, pela expressão de vergonha sempre que mostrava um ponto fraco seu, pelos olhos e expressões que podia entender como se fossem dele, pelas suas risadas e ideias sem sentido… E, principalmente, pelo seu grande e gentil coração, que Zero havia se apaixonado por Ryota.

E, pressupondo que ainda fosse capaz de entendê-la, acreditou que apenas precisasse de um bom descanso naquela noite. Ele se aproximou, conteve as próprias frustrações e medos, ficando feliz apenas de saber que estava viva. Então decidiu que conversaria e perguntaria sobre o que tinha acontecido em outra hora.

 Zero deu um longo e pesado suspiro caminhando até a cama da garota. Ele torceu os lábios ao perceber que ela ainda estava calçada com os saltos, então os tirou devagar para colocá-los arrumados no chão. Pegou uma das cobertas dobradas e estava prestes a cobri-la até os ombros quando reparou em algo. O corpo encolhido dela estava tremendo, mas não era de frio. Estava sonhando com alguma coisa. Lágrimas escorriam por seu rosto rapidamente enquanto fazia uma expressão de dor. Ryota abraçou o próprio corpo e se encolheu ainda mais. Sua respiração começou a ficar fora de ritmo. 

— … Ei. Ei, Ryota. O que aconteceu?

O rapaz, preocupado, deu meia volta na cama e subiu nela pela vertical, esticando uma das mãos para sacudi-la e acordá-la. Porém, para sua surpresa e choque, Ryota repentinamente se sentou e quase chocou sua testa com a dele. Foi tão do nada que ele sequer reagiu à proximidade, mais concentrado no fato de seus olhos ainda estarem fechados como se dormisse. As lágrimas haviam manchado seu rosto e fizeram a maquiagem escorrer, fazendo uma completa bagunça. 

— Ryota? Está acordada? 

Zero usou a mesma mão que havia estendido para segurar levemente um de seus ombros, chamando sua atenção, mas não houve resposta. Entretanto, as pálpebras tremeram e se abriram. Os olhos azuis estavam escuros e abaixados, não olhando para seu rosto, mas para o peito do rapaz. Como se evitassem encará-lo.

Mas tinha algo de errado. Não era que ela estivesse sonâmbula ou com medo. Era mais como se ela estivesse tentando lidar com o que sentia, em silêncio. Os olhos piscavam devagar, as bochechas que antes estavam brancas de maquiagem, agora haviam ganhado um leve tom avermelhado, assim como suas orelhas. A mão que segurava o ombro de Ryota se afastou um pouco, deixando que uma das alças do vestido deslizasse pelo ombro e permanecesse pendurada no braço. 

Era muito, muito estranho. O clima havia mudado completamente. Zero sentiu como se o quarto estivesse encolhendo. A lareira não estava ligada, mas um ligeiro calor lhe subia pelo corpo, atravessando sua cabeça até a ponta de seus pés. Engoliu em seco, sem saber o que dizer ou fazer. A única luz do cômodo, o abajur, estava agora de costas contra a garota, então ele mal podia enxergar sua expressão.

Então, ele abriu os lábios para tentar dizer algo.

— Você está b-

— … Hm.

— Uaah?!

Mas, para a sua surpresa, Ryota se moveu primeiro. Ela se inclinou para a frente e encostou a ponta do nariz na clavícula do rapaz, o cheirando. Como esperado, a reação de Zero a essa ação nada esperada foi se afastar com um meio grito, mas ele acabou caindo de costas na cama com força o bastante para deixá-lo tonto.

Quando abriu os olhos de novo, uma cena extraordinária estava diante de si.

Os cabelos negros e curtos dela escorriam para baixo, ocultando brevemente o rosto avermelhado. Pelo álcool ou pela vergonha? Ele não sabia. Um cheiro doce pairava no ar, e Zero percebeu que vinha de seu perfume. Estavam próximos de uma forma nunca vista antes. Era diferente da primeira vez quando se beijaram, dias atrás. Dessa vez, ainda que Ryota estivesse por cima dele, havia uma diferença gritante no clima. Na expressão e na profundidade de seus olhos azuis escuros misteriosos. Na respiração entrecortada que vinha dela e batia contra seu pescoço como um suspiro gelado que lhe arrepiava as costas. 

Com a luz fosca do abajur que iluminava parcialmente seus corpos e rostos, Ryota prendia Zero contra a cama com as pernas e braços.

O tempo pareceu ter parado por um milésimo instante, com ambos tentando compreender as coisas que remexiam seus corpos e corações. Embora Zero não fosse capaz de entender direito qual era o objetivo da garota, que parecia completamente distraída com seus próprios pensamentos, ele sabia que precisava dizer alguma coisa. Porém, quando percebeu que sua garganta havia entalado completamente e as palavras não saiam, ficou desesperado. 

Portanto, quando Ryota se abaixou novamente até seu pescoço para cheirá-lo de forma muito mais profunda do que antes, outro arrepio percorreu suas costas e o rapaz precisou virar o rosto para o outro lado, escondendo a expressão de constrangimento. Seus dedos seguraram o lençol da cama, como que contendo um instinto. A ponta do nariz gelado da garota tocou seu pescoço quente, e dessa vez um gemido escapou de seus lábios.

Foi tão vergonhoso que Zero quis morrer.

Mas, mais do que isso, ao perceber a situação em que estavam, e ao lembrar-se de que a garota havia bebido antes de irem até o quarto, o senso se acendeu em sua mente e o fez querer impedi-la de tomar qualquer atitude posterior a essa. Então, ele voltou seus olhos para o rosto de Ryota quando ela começou a abrir a retirar o casaco do rapaz, desabotoando a camiseta social de baixo de forma que não apenas seu pescoço, mas seu peito também se mostrassem à luz do abajur.

Era um clima extasiante e perigoso demais. Ele precisava pará-la.

Porém, quando estava prestes a falar… Lágrimas escorreram e pingaram em seu peito nu. Lágrimas quentes escorriam como uma cachoeira pelo rosto da garota que recobrou os sentidos, os olhos azuis escuros ganhando nitidez e, finalmente, parecendo acordar para a realidade. Porém, ao invés de vergonha pelo o que estava fazendo, o que Ryota sentia era algo ainda pior. Era uma dor tão ligeiramente forte que fez seu peito doer como se estivesse sendo perfurado por uma lâmina. 

Uma de suas mãos tapou sua boca, tremendo.

— … Eu não aguento mais. 

A voz que saiu foi abalada, lenta e trêmula. Em desespero e dor. A respiração em descompasso demonstrava o quão alterada se sentia. 

— … Eu só… Não quero mais. Eu não quero mais, eu desisto. Me tira daqui — continuou a dizer, com esforço, cobrindo o rosto que continuava a se manchar e debulhar em lágrimas — Toda vez… Toda vez que eu fico perto de você… Eu sinto que vou me desfazer. Mas não é sua culpa… Não é sua culpa… É toda minha. É sempre minha culpa. Porque você tem o cheiro de casa… Porque quando eu sinto o seu cheiro e lembro de Aurora, eu sinto o cheiro do sol e das flores… Eu sinto que quero morrer. Só quero sumir de uma vez e esquecer tudo. Eu não quero mais ficar aqui. Não tem… Mais razão para eu estar aqui. Foi tudo em vão. Tudo, tudo. Eu sou tão estúpida. Por que eu ainda tô aqui? Por que eu ainda…?

Eu deveria ter mesmo morrido. Se eu tivesse só deixado a Mania me matar, eu não teria envolvido mais ninguém nos meus problemas. O Zero poderia ter seguido a vida dele sozinho, sem se envolver comigo ou sofrer com minhas decisões. A Fuyuki e os outros não teriam tido problemas por minha causa, eles poderiam ter derrotado o Shai e a Mania sozinhos. Se eu tivesse só sumido desde o começo, se eu tivesse ouvido o que o Zero e o Jaisen tinham dito pra mim e não ficado insistindo em sonhos idiotas… Eu deveria saber. Deveria ter percebido desde o começo que foi tudo ilusão da minha cabeça.

— … O vovô me abandonou e me esqueceu. 

Ryota finalmente falou aos murmúrios a verdade que destruiu seu coração. A verdade que desejou esquecer enquanto estava envolvida com os conflitos do baile, mas não podia fugir. Era apenas um fato. E, agora, precisava encarar isso.

Mas doía tanto. Tanto, tanto, tanto.

— Eu não tenho mais razão… Pra estar neste lugar. 

As lágrimas lentamente começaram a parar de escorrer, perdendo a intensidade.

— Eu pensei que seria fácil reconstruir… Aquilo que nós tínhamos. Um lugar pra gente chamar de lar, sabe? Eu achei que, se contasse pra ele o quanto esperei por esse dia, o quanto esperei por nosso reencontro… Ele fosse me entender. 

Mas do que adiantava trazer memórias e sentimentos à tona quando a pessoa decidiu se esquecer deles completamente?

— Eu só queria… Poder viver nós quatro juntos. Eu queria… Não sei mais o que eu quero. Minha cabeça tá doendo muito, o tempo todo. Meus machucados tão doendo, também.

Era como se reagissem ao pesar de seu coração, às lágrimas que escorriam e à necessidade de encontrar algum amparo.

— Me desculpa por ter te envolvido nisso tudo. Eu sempre faço isso, não é? Eu sempre te envolvo nos meus problemas. Eu envolvo todo mundo nas minhas próprias ideias imbecis e todo mundo se ferra por minha causa. Você, o tio Jaisen, a Fuyuki, o Sora, a Kanami, o Luccas, a Marie, o Edward… Todo mundo acabou se ferrando por minha causa.

O calor do ambiente lentamente se desfez. A luz do abajur pareceu tão instável quanto o clima. Quando as lágrimas finalmente pararam de escorrer e apenas a mente completamente branca restou, Ryota percebeu que o efeito da leveza havia se passado. Por pouco quase uma hora, a bebida foi capaz de fazê-la esquecer da verdade. Os conflitos foram capazes de fazê-la fingir que nada havia acontecido. A dança com Edward a fizera deixar de lado momentaneamente os problemas.

Porém, eventualmente, tudo aquilo desmoronaria sobre ela. E, justamente por estar carregando todos aqueles sentimentos que não haviam para onde ir, ela mesma acabaria cedendo também. 

— Me diga, Ryota: Por que acha que eu vim até aqui?

Quando Zero começou a falar, a garota apenas paralisou. Agora, era a garganta dela que estava presa demais para poder dizer qualquer coisa.

— Eu te disse antes, não foi? Que foi graças a você que consegui chegar até aqui. Que consegui ter certeza do que deveria fazer — as duas mãos do rapaz afastaram as da garota, que haviam grudado ao rosto para esconder a expressão de desespero. Então, ele segurou seu rosto — É verdade que foi você quem me fez entender isso, mas a decisão foi escolha minha. Se eu estou aqui agora, não foi porque você me pediu para estar, foi porque eu quis. Eu vim até a capital, sim, para reivindicar meu título, mas também porque não posso viver em um mundo sem você.

Ryota segurou os pulsos dele.

— Você salvou a minha vida, e eu falo isso no sentido literal. Mas não apenas a mim, mas ao Jaisen, que tinha desistido de viver. E eu tenho certeza de que nem a Fuyuki, ou o Sora, ou a Kanami ou a Eliza diriam que você foi um fardo. Muito pelo contrário. 

Os dedos de Zero enxugaram as lágrimas.

— Pra ser honesto, eu sei que talvez as coisas que eu te diga possam parecer bobas, mas é a verdade. Eu sei que você esteve se adaptando a tudo o que aconteceu, então é natural que possa ter cometido erros no começo. Eu fiz o mesmo, e com certeza o Jaisen também. Nós todos cometemos erros, mas isso não significa que é tudo sua culpa — ele parou para respirar — Não sei quanto ao Luccas ou à Marie, pois não os conheço, mas tenho certeza de que você fez de tudo ao seu alcance para ajudá-los, não é? O mesmo posso dizer de Sua Alteza. Bem, de Edward. Eu não sei o que aconteceu entre vocês dois, ou em que você se envolveu aqui no palácio, mas estou certa de que foi por uma boa razão, certo? E, pelo o que vi, você foi capaz de conquistar seu coração em tão pouco tempo, assim como fez conosco. 

Ryota balançou a cabeça.

— Isso é só o resultado.

— Mas é um bom resultado.

— Eu não fui capaz de protegê-los quando eu devia. Eu não fui capaz de proteger a Marie.

— Mas você fez o possível para ajudá-la, certo? E não fez isso sozinha, foi graças ao apoio de todos. Eu tenho certeza de que, mesmo nas horas difíceis, você foi capaz de contar com a Fuyuki e os outros pra te ajudar. Eu fiz o mesmo, e não há vergonha alguma nisso.

Ela continuou a balançar a cabeça, em uma negação fraca.

— Não sei se consigo continuar com isso. Não tenho razão para estar aqui.

— … Tem certeza?

A pergunta feita com seriedade fez Ryota pensar. Ela fitou os olhos de Zero, que pareciam dizer que, se afirmasse isso mais uma vez, poderia apenas saltar pela janela com ela nos braços e fugir para longe. Dentro de si, havia essa sensação de certeza. Parecia o tipo de loucura que ele faria.

Mas, ainda que fosse tentador, ela não podia. Afinal, havia a marca do voto. E, acima disso, a promessa que fez com Edward. Ela devia sua ajuda à ele, assim como ele a ajudou até agora. Então, ao ficar em silêncio, Zero percebeu que havia algo mais.

— Eu acho… Que se eu precisar lidar com isso por mais alguns dias, vou acabar desabando completamente. Talvez eu não consiga mais me levantar.

— É por isso que estou aqui. Vou te estender a mão e te apoiar quantas vezes forem necessárias. 

Ryota riu de forma amarga.

— Fala como se isso fosse fácil.

— É que eu sei que a garota que eu amo não desiste tão facilmente quanto costuma falar.

Eles piscaram um para o outro, em silêncio. Então, Ryota corou bruscamente.

— C-Como consegue falar essas coisas sem pensar?!

Mas ela percebeu, mesmo na escuridão, que o rapaz também estava constrangido, mesmo sorrindo.

Então, vendo-o dessa forma, Ryota inspirou profundamente e expirou, tentando retirar o peso que ainda fazia doer seu estômago.

— … Por que é que você sempre me apoia tanto? Eu ainda não consigo entender.

— Você quer que eu diga de novo a razão?

— N-N-Não é isso! É só que… Bom… Parece demais pra alguém como eu.

— É por ser pra você que sempre faço mais que o necessário.

— Para de falar essas coisas! Minha nossa, mas você parece que fica sem vergonha às vezes, hein?!

Ryota deu tapinhas que não doíam nada no rosto e peito de Zero, que continuou rindo do constrangimento dela. Era divertido inverter o jogo às vezes, ele pensou.

Eventualmente, a garota se sentiu com vergonha demais para continuarem naquela posição, então rapidamente saltou para o outro lado da cama, se encolhendo e arrumando o cabelo bagunçado, além de limpar o rosto cheio de lágrimas e manchado com maquiagem. Naquele silêncio agora um pouco mais confortável, Zero, depois de alguns minutos, se colocou de pé.

— Acho que vou indo. Já está bastante tarde — disse ele, olhando para o relógio.

— Espera.

Mas então, uma mão segurou seu pulso. Percebendo que o que fez e o que desejava falar era constrangedor demais, Ryota hesitou por um longo instante, até que finalmente continuou, baixinho:

— … Você pode… Hm… Dormir aqui… Hoje? É-É que eu acho… Que não conseguiria fazer isso sozinha. 

Apesar da vergonha, Ryota realmente sentia que seria incapaz de cair no sono corretamente. Era quase a mesma sensação de insegurança de quando dormia no mês de aniversário da morte de sua mãe, acordando de tempos em tempos com um sentimento horrível. E, agora, depois de tudo o que falou e ouviu, depois de ter passado por tanta coisa em tão pouco tempo… Não sabia se realmente poderia fazer isso sozinha.

— Está bem. 

— Está bem.

Ryota repetiu a resposta dele, nervosa. Então, ao novamente ficarem em um silêncio estranho, a garota saltou da cama e correu até o banheiro, catando o pijama no caminho e praticamente gritando rapidamente.

Voutomarbanho!

E bateu a porta.

Zero, após essa cena, riu sozinho tapando a boca. Posteriormente, arrumou a cama e aguardou que ela saísse. Lentamente, os dois conseguiram lidar com o medo e a vergonha, se aninhando na cama. Eles mantiveram uma distância segura, porém, os dois dormiram quase que imediatamente um segurando a mão do outro de exaustão.



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