Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 5 – Arco 3

Capítulo 41: Coragem

Ainda que estivessem de costas um para o outro, enfrentando adversário diferentes, Tom podia dizer que Eliza foi capaz de dominar o ambiente. Não muito depois de terem se separado, com a espada padrão dele sacada de sua bainha entrando em contato brutalmente contra as garras daquela criatura horrenda, ouviu o som de uma porta se fechar. Então, uma pressão absurda vinda daquela ala atingiu suas costas, como se a gravidade repentinamente tivesse ficado mais poderosa em uma única área. Deu um sorriso para essa pequena conquista, ciente de que a pequena garota poderia cuidar da adversária, e se concentrou em sua própria luta.

Quando sua espada rasgou o ar, fazendo um chiado ao bater contra garras muito semelhantes a ossos humanos que foram lapidados até se tornarem afiados, Tom deu um grito enquanto usava toda a sua força para afastar a criatura para longe de Eliza. Eles haviam combinado de enfrentar os adversários separadamente, pois temiam que eles pudessem planejar algo caso estivessem juntos. O que eles não esperavam era que a figura da mulher, que havia causado a morte de tantos de seus homens, na verdade era acompanhada de duas criaturas sobrenaturais nunca antes vistas por olhos humanos.

Por Tom ter atacado sem pensar duas vezes, ele não teve a chance de tomar o choque inicial por presenciar algo tão horrendo. Porém, quando se afastaram, Tom empurrando a besta para longe — mais especificamente, para o outro corredor, passando pela porta contrária à que Eliza entrou —, o capitão ergueu uma das pernas e deu um chute forte contra o peito da criatura, mandando-a para longe. Com aquela distância deliberadamente segura entre eles, Tom finalmente foi capaz de focar sua visão no ser diante de si.

— Você… É um espírito, não é?

— Háááááá… Há, há, hã…

— Então por que você parece tão… Humano?

Tom conseguiu manter a voz pacífica e forte enquanto falava com a criatura. Seus pensamentos voaram para uma dúvida que pinicou em sua mente. Aquelas bestas eram espíritos? Ou poderiam ser algo a mais, algo completamente diferente? A aura que vinha delas era medonha, um nível de terror diferente do que espíritos normalmente demonstravam.

A verdade era que espíritos só possuíam formas animais ou semibestas. Isso porque eles estavam sempre conectados diretamente com o planeta, e dificilmente demonstrariam algo diferente disso. O Pequeno Sol, o fundador do mundo, as criou para que protegessem a natureza e mantivessem o equilíbrio do mundo. Ao longo dos anos, você poderia dizer que os seres humanos os idolatraram como deuses na Terra enviados pelo Pequeno Sol para abençoá-los e protegê-los, porém isso mudou conforme os anos passaram. Os seres humanos desmataram e destruíram suas terras, forçando-os a lutarem contra aqueles que nasceram para proteger.

Eventualmente, eles se tornaram criaturas hostis a humanos, protegendo os seres vivos em geral com suas vidas. Porém, alguns deles se desfizeram na natureza em chi para salvar uma determinada região da seca ou da fome, sacrificando-se pelo bem da vida. Outros, se mudaram para terras distantes, onde poderiam ficar mais poderosos e manter seguro aquilo que nasceram para proteger. Era realmente difícil dizer o propósito de um espírito nos dias de hoje, porém, aqueles que via eram diferentes.

A besta — Koalem — ficava sob dois pés, o corpo ligeiramente curvado para a frente, parecendo se dobrar ao meio, e seu pescoço era capaz de girar em qualquer ângulo, fazendo sons de estalos desagradáveis. Possivelmente de ossos quebrados. A besta tinha um sorriso desagradavelmente assustador em sua face, muito semelhante ao da outra criatura que estava no andar de cima, ao qual ele e Eliza conseguiram driblar para poderem entrar.

Ainda que fossem bestas horrendas, verdadeiras máquinas de matar, elas não eram inteligentes o bastante para pensarem sozinhas. Tom notou que elas possivelmente seguiam ordens de algum superior, então criar pequenas distrações permitiu que a criatura que estava barrando a entrada se deslocasse para outro local, averiguando algum barulho, enquanto eles silenciosamente entraram.

Parecia um plano idiota manter uma criatura dessas lá fora sem derrotá-la apropriadamente, mas Eliza temia que eles não pudessem fazer isso a tempo de impedir aqueles que estavam sob a terra. Havia a chance de que, até que eles destruíssem a criatura, se é que ela era mortal para que pudessem fazer isso, o invasor responsável pela besta já poderia ter escapado com o que desejava roubar.

E era justamente esse o grande problema.

Portanto, eles decidiram que deixariam aquela outra criatura para trás e invadiriam silenciosamente, com Eliza se recordando de ter sentido uma dor insuportável. Isso foi quando um de seus selos foi maculado diretamente, sem qualquer cuidado. Como uma seladora, ela sabia perfeitamente qual era e de onde veio, e afirmou veridicamente que havia vindo do subsolo. Não era um selo de relíquia, mas de segurança. Isso provou a eles que o invasor possivelmente não era o responsável por causar aquela bagunça no palácio, mas possivelmente alguém que teria ido sem este companheiro. Por isso não souberam disfarçar sua entrada e muito menos sentiram os selos invisíveis aos olhos comuns.

Foi o bastante para eles descerem e interceptarem quem estava lá embaixo.

— Você não pode falar, não é? 

Apesar de ser ridículo da parte dele tentar dialogar com Koalem, uma criatura que ele possuía ciência de não ter cérebro, não podia evitar. O medo o fazia tomar atitudes irracionais, mas parecia que isso distraía a criatura, que inclinava a cabeça em noventa graus para os dois lados, como se tentasse compreender suas palavras. Risadas sombrias e engasgadas saiam de sua garganta.

— Aaaaah… Hááááá… Há.

— Está tentando se comunicar?

— Há?

Tom ficou surpreso ao ver que ele parecia menos hostil do que a mulher que possivelmente o invocou e a criatura do térreo. Porém, não relaxou. Koalem ainda estava com suas garras expostas, os pontos brancos no fundos dos dois buracos que antes deveriam ter olhos o seguiam, fixos em seus movimentos.

— O que foi?

— Háá?

— Minha espada? Você gosta dela?

— Há?

Quando sentiu que algo estava errado e ergueu a voz para perguntar, Koalem respondeu. Seu tom não era alto ou irritante, como antes quando o atacou. Parecia curioso e tímido, apontando uma de suas garras na direção da espada que estava apontada para ele. Percebendo que não havia hostilidade no ato, Tom baixou um pouco os ombros e tentou entender o que Koalem estava tentando dizer.

— Hááá…?

A criatura lentamente aproximou seus longos dedos ossudos — suas longas e afiadas garras, tocando com cuidado a espada de Tom. Ele continuou a segurá-la com firmeza, temendo que Koalem tentasse roubá-la de suas mãos, mas ele não o fez. Os dois pontos no fundo de sua cabeça pareciam completamente focados na lâmina, admirando-a profundamente. Ele quase parecia pensar e refletir sobre algo… Como se estivesse tendo memórias de alguma coisa.

Tom franziu a testa. Ele percebeu que a criatura provavelmente não avançaria por vontade própria, provavelmente sendo mais dócil — não, mais quieta — do que a outra. Era possível que seu instinto de matar fosse atiçado pela invocadora ou por algo do ambiente, como o cheiro de sangue ou a visão de corpos, mas eram apenas teorias de sua mente. Por hora, tudo o que o capitão deveria fazer era evitar o conflito. Se houvesse uma forma de desfazer sua invocação sem o derramamento de sangue seria o cenário ideal. 

Porém… Talvez não fosse algo possível.

— Há?

De repente, Koalem se curvou para a direita, na direção da porta, e seu pescoço se virou completamente de uma forma que ele pudesse ver através dela. Porém, a porta que ia na direção do outro corredor foi fechada e completamente selada, não podendo ser atravessada à força. Mas, apesar disso, talvez até sentindo a pressão do local, a criatura ficou em silêncio naquela posição. Como se sentisse algo lá de dentro. 

— Há? Háááá? Háá… Hãaaaaaaaaannnnn…!

— Que merda…

Tom murmurou sozinho e se afastou a passos silenciosos quando Koalem perdeu o tom agradável na voz e a fez crescer para um rosnar violento. Ele ainda não havia se movido, mas parecia que havia sentido ou compreendido que sua invocadora poderia estar em perigo. Ou, talvez, que ela tivesse mandado a ele alguma mensagem. O capitão não sabia dizer se isso era possível, mas Koalem repentinamente ficou violento. 

Seu corpo, que antes se movia devagar, fazendo estalos quase mecânicos ao movimento, agora se virou rapidamente, o pescoço girando em 360º conforme sua boca arreganhada se abria em um grito colossal e ensurdecedor.

— Hááááá!!!!

— Ugh!

Garras voaram na direção do rosto do capitão, que rapidamente desviou de algumas e bloqueou outras com sua espada, um chiado horrendo disparando em seus ouvidos. Koalem era forte, mas Tom era resistente o bastante para combater isso diretamente. Porém, para sua infelicidade, a besta havia perdido completamente seu senso de distinção e agora desejava apenas saciar sua sede de sangue.

Para isso, não havia diferença entre uma folha de papel e uma simples espada.

— Ele tá… Quebrando a espada?!

Tom exclamou em choque ao ver que rachaduras começavam a aparecer em sua lâmina. Xingando baixinho, ele se afastou para trás com uma cambalhota, desviando de um corte no ar feito pelas garras da criatura.

Desse jeito, vou acabar sendo morto…

O capitão estava bastante ciente das próprias incapacidades. Se tantos homens seus foram mortos de uma única vez, sem fazer um único arranhão naquele monstro em aparência semi-humana, que avançava grotescamente na sua direção, correndo de forma desequilibrada batendo os pés no chão, ele, que era apenas um pouco mais experiência e forte possivelmente não conseguiria derrotá-lo.

— Ugh!

Tom desviou da sessão de ataques de garras com habilidade, se agachando, saltando ou rolando no corredor não tão espaçoso. Como havia espaço somente para que cerca de duas pessoas andassem lado a lado, quando havia uma criatura tão grande e catastrófica quanto aquela abria seus braços para tentar acertá-lo, era esperado que as paredes e portas sofressem com aquilo.

Golpes atravessaram as paredes que brilhavam como o céu noturno, destrinchando e destruindo o ambiente. Portas foram golpeadas e arrancadas, dando passagem para mais e mais corredores que se estendiam infinitamente. Os passos de Koalem afundavam no chão conforme avançava de forma desordenada, completamente desequilibrado, mas era horripilante de se ver um ser daqueles correndo em sua direção enquanto gritava. 

Quando você se vê diante de uma situação inimaginável daquelas, onde sequer existe a chance de ganhar, o ser humano automaticamente daria as costas e correria por sua vida, atropelando qualquer um que estivesse em sua frente. Dignidade? Orgulho? Honra? Todas essas coisas eram pisadas no momento em que seu miserável desejo por sobreviver atiçava seus pêlos e fazia suas pernas esquentarem, dispostas a correr por cima da lava se necessário. Não se pensava em salvar aqueles ao redor ou na família que lhe esperavam em casa. Tudo o que importava era sua inútil e pequena vida. Por isso haviam gritos de horror e seres humanos se arrastando pelos chãos quando Koalem se aproximava. Mesmo quando apenas olhava em suas direções, era claro para ele que era detestado e odiado. Sua aparência era tenebrosa e não podia falar. Não haviam qualidades, apenas defeitos que o tornavam cada vez mais temido. Mesmo Lysa, sua invocadora, não podia deixar de insultá-lo por qualquer coisa.

Koalem não era uma criatura racional, mas ele podia sentir coisas. Ele podia deduzir e partir para o ataque ciente disso. Portanto, quando viu Tom se afastando e empunhando sua espada rachada, naturalmente, pensou que o homem viraria suas costas e correria por uma das portas escancaradas. Não havia chance de vitória. Ele estava diante da própria morte, como um rato encurralado por um gato.

Mas foi realmente estranho para ele que este mesmo rato temeroso por sua vida tenha pegado um palito de dente para se defender. Não deu as costas para ele, não chorou ou implorou por sua vida. O homem não estava desesperado nem temeroso — muito pelo contrário.

Tom, estando diante de sua morte certa, olhou para Koalem com coragem. Seu coração, inspirado pelo medo de perder, usou os sentimentos ruins para impulsionar seu orgulho como espadachim, firmando seus pés no chão encarando a criatura. Os olhos negros observaram seus movimentos, que lentamente pareceram perder a hostilidade devido a surpresa, e prepararam o golpe.

— Ainda que seja uma criatura irracional, assim como qualquer ser vivo, você pode sentir. O instinto de alguém nunca mente, não importa se você é humano, animal ou um espírito. 

Koalem, ainda que não tivesse órbitas, pareceu arregalar os olhos em surpresa. Ele parecia compreender suas palavras, embora o significado delas jamais pudesse chegar ao seu cérebro.

— Se havia algo que ensinei aos meus homens, àqueles aos quais você matou com suas garras, devido à minha experiência em lutas de vida ou morte… Era que a rendição nunca era a resposta. Virar as costas para seu adversário, apenas porque ele é mais alto ou poderoso do que você, determinará o mesmo resultado. 

Algumas vezes, desistir poderia parecer uma opção decente. Porém, diante de um inimigo, diante de uma guerra em que todos perante você eram seus adversários e desejavam nada senão a sua morte, render-se ou não perante um inimigo impossível de derrotar levariam ao mesmo destino. A diferença estava em como você cairia, se seria lutando ou não. E essa determinação, algumas vezes, poderia fazer milagres acontecerem. 

A força de um ser humano perante a morte, quando encarada de frente, era tão poderosa quanto o instinto de proteção de uma mãe e seu filho. Não importa o quão doloroso ou quão difícil fosse, virar as costas para o problema nunca levaria a lugar algum.

— Porém, erguer os olhos e encarar a ameaça diante de si até o final, ainda que suas pernas tremam, o estômago se revire ou olhos encham de lágrimas, desejando sobreviver e proteger seus companheiros até o final… É isso o que nos torna guardas, cavaleiros honrados do rei!

Tom, conforme falava para a criatura irracional que interrompeu seu ataque no caminho, sentiu seu corpo pesar. Como se seu próprio sangue esquentasse e fervesse, algo novo percorreu suas veias. Veloz, ardente e poderoso. A determinação de sobreviver — não para vingar aqueles caíram lutando até o final, sem temer — e buscar um futuro onde poderia continuar a proteger o lugar onde seu coração foi depositado fez com que todo o seu ser tremesse.

Sua espada, que estava apontada para a critura, também começou a tremer, pressionada pelo poder que inundava do corpo e alma de Tom. E Koalem, que apenas assistia aquele pequeno rato se recusar a morrer de forma vergonha, desejando lutar até o final, quando o poder emitido de dentro daquela pequena criatura fez o ar vibrar como uma estática, os olhos negros ganhando um brilho amarelo como o sol se direcionando em sua direção, certo de que o mataria, algo o atingiu. Não foi físico, como um ataque direto do capitão. Não, era algo muito mais profundo do que aquilo.

Pela primeira vez na vida, Koalem sentiu medo. Seu corpo se abaixou e recuou bem devagar, ainda inconsciente do que era aquela nova sensação. Mas o ambiente não permitiria que ele escapasse. Tom, enquanto virava a espada na diagonal, com pequenos raios alaranjados e amarelos saltitando por seu corpo e cabelo, preenchendo sua espada com uma luz cegante, não permitiria.

Ley!

Tom berrou o nome do elemento ao qual seu corpo e alma mergulharam, eletrizando todo o corredor de uma só vez. Um som de chiado quase ensurdecedor, porém tão incômodo quanto o grito de terror de Koalem, que tentou encarar de frente aquele ataque assustador, ecoou. As garras desesperadas da criatura voaram na direção de seu corpo… Mas acertaram o vazio, afundando no solo. E foi neste instante que um som agradável de algo se partindo soou, assim como um trovão que rugiu por toda a Fortaleza, marcando para sempre aquele lugar.

Tom saltou, desviando do ataque de Koalem, e rasgou o corpo da criatura em dois com sua espada brilhante, pousando elegantemente diante da porta enquanto balançava a lâmina para limpar o sangue podre que o havia manchado.



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