Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 5 – Arco 3

Capítulo 37: O Trabalho de uma Maga

— Senhora Gê, por favor, não fume aqui dentro.

— Estou na janela

— … Ainda assim…

Eliza tossiu quando o cheiro de fumaça invadiu suas narinas. Ainda que a janela da sala ainda estivesse completamente aberta desde que a garota de cabelos azuis entrou, mantendo uma certa distância, o fedor ainda incomodava. A curandeira fez uma careta e torceu o nariz de novo, lutando contra a vontade de tapá-lo com as próprias mãos. Mas elas estavam ocupadas puxando a gaveta de uma mesa do outro lado do cômodo, de onde retirava uma pasta lotada de papéis. 

— Como uma curandeira, eu deveria impedir que usufruísse de tabacos. A senhora sabe que faz mal para a saúde…

— Não seja tão estraga prazeres, Eliza — Gê arqueou uma sobrancelha — Estou bastante ciente do meu próprio corpo.

— Não acho que colocar um selo de purificação dentro de si seja muito saudável…

— Como não me fez mal até hoje, não há razão para eu parar, não é?

— Parece o tipo de coisa que um viciado diria.

Eliza franziu a testa para a companheira e tentou apontar os perigos de fumar tanto cigarro, mas Gê apenas a retrucou com uma calmaria admirável. A curandeira se mantinha encostada contra a janela, expirando a fumaça entre os lábios entreabertos. Percebendo que continuar com aquela discussão, que não era a primeira vez que tinham, não levaria a lugar nenhum, a garota baixou os ombros em desistência.

— De qualquer forma, precisamos trabalhar. Aqui, senhora Gê. Arquivei os documentos e anotações que fiz sobre a pesquisa para te mostrar.

— Você realmente não perde tempo, não é? 

Quando a garota se aproximou com a pasta gorda de papéis, abrindo-a desastradamente para retirar uma folha, a mulher fez uma ligeira expressão de cansaço. 

— A-Ah… Sinto muito. Estou sendo apressada demais?

Eliza recuou ao perceber que poderia tê-la aborrecido.

— É claro que não. Apenas acho engraçado esse seu jeito apressado de fazer as coisas. Essa sua necessidade em começar a trabalhar assim que abre os olhos ou entra na sala. Acalme seu coração um pouco, Eliza. Pode ser perigoso para a sua saúde — Gê tragou o cigarro mais uma vez — Prossiga.

Piscando os olhos âmbar, a garota ouviu com cuidado as palavras de aviso. A voz de Gê era sempre baixa, arrastada e um pouco rouca. Era o tipo de som que você se sentia relaxado em escutar. Ao mesmo tempo, a sensação de maturidade exalada por aquela mulher fazia os olhos de Eliza brilharem em admiração. Apesar de ambas não serem de conversar muito, certamente eram próximas o bastante para que tivessem diálogos assim.

Quando o tópico saúde voltou a ser o tema central da conversa, Eliza soltou um suspiro. Ela esperava que não estivesse sendo provocada de propósito, pois não era o estilo de Gê. Geralmente a mulher era bastante direta e sincera em suas falas, bastante semelhante a Fuyuki neste sentido. 

Ignorando estes pensamentos, Eliza olhou para a folha que segurava. Era um papel branco com anotações manuscritas feitas por ela, com marca-páginas coloridas em algumas palavras específicas que eram importantes. Haviam pontos de interrogação em alguns lugares com setas marcadas em certas frases, como se fossem algo a ser retomado para pensar no futuro.  

— É sobre a pesquisa Minami.

— Ah, aquele projeto? E como anda?

Eliza piscou melancolicamente.

— Infelizmente, não tivemos progressos. Estive trabalhando ao longo de um ano, pesquisando o corpo de Coldy Minami com exames comuns corporais e de energia, mas não consegui detectar grandes anomalias. 

Gê suavizou os olhos negros como a noite ao ouvir a garota começar a falar. Ela gostava de como a curandeira jovem ficava realmente séria quando o assunto era seu trabalho.

— Realizei dois exames gerais. Um no ano passado, e outro este ano. Seu corpo, mesmo adormecido, segue realizando seus serviços como de costume, como se apenas realmente estivesse dormindo. Porém, como não consome nada, também nada produz para excreção. Os pulmões agem normalmente, ainda que a respiração seja lenta e quase impossível de se detectar ao toque ou com a visão. O coração bate devagar, mas ainda bombeia sangue o bastante.

Eliza seguiu citando todas as suas anotações do papel com uma feição séria.

— O mais estranho é que, normalmente, uma pessoa em coma receberia alimentação através de de sondas, mas este não é o caso. É quase como se seu corpo tivesse permanecido estável, sem ter sede ou fome, e como consequência sem a necessidade de limpá-lo. O que é contraditório com o fato de seu corpo ainda continuar funcionando normalmente, pois consumir nutrientes é necessário para que este processo ocorra. É quase como se algo externo a isso a mantivesse assim. 

— O poder da Insanidade?

— Eu não sei — Eliza sacudiu a cabeça, pegando outra folha idêntica — O resultado de um ser humano entrar em contato com os poderes de uma Entidade ainda são muito vagos. O poder de Libitina, por exemplo, que parecia estar conectado com as sombras, apenas engolia e envenenava as pessoas com alguma doença irreconhecível. Possivelmente algo que afetava o corpo através das vias de chi que se conectam ao tato físico. Ou seja, algo intocável aos seres humanos normais. Por isso, somente os seladores e curandeiros que possuem uma conexão e trabalho direto com essas vias de chi, conseguem a tentativa de restaurar e analisar melhor um caso tão raro como esse.

— E você conseguiu?

Eliza ergueu os olhos âmbar para Gê, que havia parado de fumar para prestar atenção em suas palavras. As cinzas do cigarro se acumulavam.

— Eu tentei. Fiz tudo o que estava ao meu controle para conseguir resultados significativos nos testes. 

— Então…

— Sim, acho que sim. 

Uma gota de suor escorreu pela testa da garota que se encolhia.

Gê estreitou os olhos negros, tragou seu cigarro uma última vez e jogou fora seus restos.

— Isso… É incrível. Posso ver?

— Sim. 

A curandeira, que ainda com sua calmaria parecia esconder uma surpresa por trás das palavras, estendeu os braços para a pasta.

— Eliza… Isso pode revolucionar a ciência. Você sabe que se essa pesquisa fosse vendida, poderia lhe render pelo resto de sua vida, não é? O que fez aqui… 

— É algo que somente eu poderia fazer.

Eliza completou a frase interrompida de Gê com um sussurro. O silêncio do cômodo era quase palpável à troca de palavras murmuradas. Quase como se contassem um segredo uma para a outra, mas na realidade pareciam temer que aquelas informações vazassem aos ouvidos errados. 

— E então? O que achou dos resultados?

— É complicado explicar. Eu não consigo chegar a uma conclusão por conta própria, então só posso contar com seu apoio. 

Gê nem piscou ao comentário e apenas voltou novamente seus olhos negros para os papéis.

— O poder da Insanidade não deveria estar correlacionado com o coma. Sua habilidade está relacionada a manipular a mente e os sentidos de seus alvos. Pude compreender isso ainda melhor quando estudei um paciente recentemente, há pouco mais de um mês.

— … Então, a sua conclusão foi…?

Eliza cruzou os braços

— Mania possuía somente essa capacidade. E Shai, ao contrário do que achávamos, não estava correlacionado ao poder da Entidade. Eles usavam kiais diferentes. Analisei, inclusive, as chances de que o Tigre Branco do Oeste tinha de estar relacionado a isso no passado, mas, como esperado, não consegui nada. São criaturas completamente diferentes.

O apontamento feito era bastante simples. Eliza, refletindo sobre tudo o que viu e ouviu a respeito de Fuyuki e os outros que enfrentaram Mania e Shai no passado, tentou conectar o que foi contado com seus próprios estudos. Porém, para sua surpresa, ela não chegou a lugar algum. Como ela mesma falou anteriormente, as Entidades possuiam poderes e consequências diferentes. Ou você sucumbia aos seus ataques, ou vivia o bastante para sofrer com as consequências disso. E, geralmente, sobreviver nunca era uma opção tão boa. 

Eliza se recordava de ter visto sobreviventes da Insanidade. Eram memórias sombrias pra ela, não somente porque ver uma pessoa berrar de dor, com sangue manchando suas pequenas e pálidas mãos, era aterrorizante de se ver, mas porque ela estava no início de sua carreira como curandeira quando encontrou uma situação dessas. Para uma garotinha que começou a entrar em sua pré-adolescência, encarar isso como uma de suas primeiras tarefas não foi nada fácil de lidar. Mas, ao mesmo tempo, ajudou-a a amadurecer, de forma que as futuras situações pudesse encarar mais mais foco.

Ela ficou impressionada que alguém que não apenas sobreviveu aos efeitos dos poderes da Insanidade, mas que também recebeu um golpe tão grotesco em seu corpo, sobreviveu e conseguiu se recuperar tão rapidamente. Jaisen, o tio de Ryota, se recuperou em pouco mais que três semanas, logo começando a recuperar completamente seu bom humor e movimentação. Ele era realmente um homem forte. Não somente em personalidade ou fisicamente, mas mentalmente. Lidar com seus piores pesadelos, reencontrar pessoas que causavam arrepios em seus pêlos e borboletas em seu estômago não era fácil. Eliza teve sorte em lidar com o nevoeiro do Tigre Branco com tanta facilidade e sem sofrer danos mentais. Ela não gostaria de saber como era a sensação de receber um sentimento tão horrível diretamente da Entidade.

Foi vendo aquelas pessoas que sobreviveram e superaram o impossível que algo dentro dela explodiu, como uma inspiração e força de vontade para prosseguir com sua pesquisa. Ela deseja descobrir o que estava acontecendo e, principalmente, ajudar Coldy. Queria ser capaz não de apenas achar uma resposta para os mistérios, mas também salvar a vida de alguém que dependia unicamente de seu esforço. E, como nunca sabiam o que poderia acontecer no dia seguinte, pois sequer sabiam o que estava acontecendo com a mulher inconsciente, o medo de Fuyuki em relação à sua mãe estava sempre presente. Por mais que hoje ela parecesse estável, nada poderia dizer que amanhã ela continuaria dessa forma. 

É por isso que ela estava sempre se esforçando. Passando noites em claro pesquisando e passando a limpo a parte teórica, durante o dia fazendo exames e testes práticos. Era cansativo? Com certeza. Mas, independentemente disso, ela tinha uma missão a cumprir. Havia sido contratada por uma duquesa não apenas por suas habilidades em selamento para manter a segurança de seus companheiros guardiões, mas principalmente para salvar a mãe de sua mestre. Essa que, não importa o quanto se mostrasse durona e firme diante das dificuldades, sempre enfraquecia diante da cama onde sua mãe repousava. 

Eliza reparou que, com medo de que sua vida se esvaísse de repente, ela sempre mantinha os olhos em seu peito. No pequeno movimento dos pulmões trabalhando. Ou, então, segurando sua mão fria, Fuyuki parecia querer ter certeza de que ela não ficasse sozinha de forma alguma. E que se, caso o pior acontecesse, ela pudesse partir com alguém ao seu lado até o final.

E ver tudo aquilo ao longo de tantos anos de serviço, acumulados em suas costas como responsabilidades e a necessidade em ajudar as pessoas. Porque seu coração doía ao ver os outros sofrendo. Porque ver aquelas pessoas que haviam perdido tudo, ligadas somente a uma pessoa restante, lidar com todas aquelas dificuldades enquanto Eliza ainda tinha ambos os pais, a fazia ter ainda mais vontade de ajudá-las. E justamente por isso que, independentemente do quão chata às vezes sua mãe poderia ser, ou o quão sem noção seu pai era, a garota nunca conseguia sentir raiva deles. Na verdade, ela seria uma pessoa horrível por sentir uma emoção tão baixa como aquela, quando ambos os seus pais apoiavam e admiravam tanto seu trabalho.

Eliza era sortuda, e por isso ela não tinha o direito de reclamar.

— Eu acredito em duas possibilidades diferentes.

A curandeira, sacudindo a cabeça para os pensamentos que viajaram, ergue dois dedos diante do rosto de Gê, abaixando um por um conforme falava.

— A primeira é que existe algum efeito colateral do poder da Entidade que ainda desconheço. Algo relacionado ao chi em si, provavelmente mexendo tanto na mente da vítima que o coloca em coma. Quase como um envenenamento mental que destroça sua mente e prende seu chi de forma que ele fique em uma repetição infinita. Acredito que seja possível devido à capacidade da Insanidade de causar pesadelos, dores profundas e, principalmente, alucinações. 

— Entendo. E a segunda?

Gê, finalizando a leitura, abaixou a folha e voltou seus olhos profundos para a garota pensativa.

— A segunda é que isso não foi consequência da Insanidade, mas de outra coisa. Ou de outra pessoa.

— Como assim? Não foi Shai quem fez a senhora Minami entrar em coma?

— Ele estava presente, sim, mas não temos como comprovar que foi culpa dele ou da Insanidade. Se bem me recordo, havia uma névoa densa cobrindo o ambiente, assim como quando invadiram a mansão no mês passado e destruíram a aldeia Aurora.

— … Entendo. Faz sentido, também. E justificaria a razão de ninguém que estava na invasão Minami ter sofrido de um destino semelhante ao da senhora Minami. Afinal, a pessoa responsável pelo coma não estaria presente.

Eram duas justificativas bastante plausíveis, apesar de serem bem difíceis de se raciocinar em como poderiam acontecer. Não existiam espaços para dizer se Mania ou Shai haviam uma técnica secreta e simplesmente não a haviam usado, ou se foi apenas um reflexo das habilidades comuns da Insanidade. Porém, a teoria do responsável pelo seu coma não estar presente nos incidentes mais recentes e, como resultado, ninguém sofrer da mesma condição, também fazia sentido. Agora Gê conseguia compreender a razão de Eliza se sentir tão perdida. Não era possível chegar a uma conclusão e, como consequência, por uma busca de resolver este problema, tão facilmente assim.

— Certamente é uma situação complicada, mas não acho que nenhuma de suas teorias estejam incorretas. Me parece que ambas podem ser verdadeiras. Na verdade — Gê franziu a testa branca — Pode ser que sejam ambas.

— O que quer dizer?

Ouvindo aquelas palavras, Eliza prontamente fez a pergunta, mas foi respondida com um silêncio afiado. Gê observou uma das folhas por um tempo antes de baixar os ombros com um suspiro.

— Não, esqueça. Entretanto, você está no caminho correto. Se fosse dar uma opinião, apostaria mais na primeira teoria. Porém, poderia sugerir uma terceira a você.

— Uma terceira?

— Ao invés de uma habilidade oculta ou a ausência de um elemento, eu diria que certamente poderia ser nada mais que um efeito diferente. Como uma situação única, mas causada por um elemento diferente e raro. 

Quando Gê colocou os dedos no queixo e refletiu em voz alta, Eliza pegou a pasta de volta e prestou atenção em seu raciocínio, também franzindo a testa.

— O que quer dizer?

— Coldy Minami não sofreu de um kiai proposital. Ela possivelmente apenas pode não ter resistido à pressão dos poderes de uma Entidade e vindo a quebrar. Isso não aconteceu pela vontade de Mania ou Shai, mas por sua própria fraqueza.

— … Isso é cruel.

— Não, é apenas uma possibilidade. Você sabe e conhece muito bem o que acontece quando alguém que não lida bem com seu próprio chi entra em colapso. Como um curto-circuito. A pessoa começa a sofrer fisicamente devido a problemas com suas vias de energia, de chi, refletindo em doenças que não podem ser tratadas por médicos comuns, mas por curandeiros. Imagine esta situação, porém dez vezes pior. O resultado é o que vemos.

Enquanto Gê assim afirmava, ela sacou outro cigarro e o acendeu com seu isqueiro, tragando com força antes de expirar a fumaça pela janela.

— Aah, cansei — murmurou ela então, se recostando contra a parede novamente e fechando os olhos. 

— Mas nós nem começamos a trabalhar… — Eliza fez uma careta interna de sarcasmo, olhando para o relógio na parede. Uma hora havia se passado — Mas, de toda forma, muito obrigada. Levarei sua teoria em consideração. 

— Não há de quê. Querendo ou não, estou acostumada a lidar com situações raras como essa. Mas não pretendo me aprofundar nisso, de toda forma. Hoje apenas vim ao auxílio de uma colega Maga, não desabafar sobre a vida.

Gê expirou fumaça pelas narinas e encerrou a conversa. Eliza arqueou uma sobrancelha para esse apontamento, mas nada disse. Ela não conhecia muito a respeito da curandeira, mas também nunca se esforçou para tentar descobrir. Na realidade, Gê não era o tipo de pessoa que se abria com facilidade, então, em respeito a isso, Eliza nunca perguntou. 

Porém, de uma forma ou de outra, isso as ajudou a chegar a algum lugar quanto à pesquisa de Eliza.

Quando assim pensava, a garota se agarrou na parede e os joelhos tremeram. Não, não foram seus joelhos, mas o palácio que começou a se mover, um som alto vindo de longe chegando aos seus ouvidos. Gê sequer se moveu. Eliza, porém, quando sentiu o palácio parar de tremer, se colocou de pé novamente com uma expressão de preocupação.

— O-O-O-O quê?! O q-que acont-teceu?!

— Parece que estamos sendo invadidos.

— I-I-I-Invadidos?!

Gê soltou um resmungo e bufou com o cigarro, parecendo incomodada que atrapalharam seu momento de paz. Quando terminaram de falar, ouviram sons de passos passando às pressas diante da porta. Possivelmente, eram guardas correndo para o local de onde se originou o terremoto. 

Eliza virou a maçaneta e botou a cabeça para fora, observando que eram realmente criados e guardas correndo em desespero. 

— O que aconteceu? — perguntou ela a um dos guardas.

— Estão invadindo o castelo! Parece que aconteceu algo no salão do trono, onde os nobres estavam!

— O quê?!

Então realmente estão tentando atacar o palácio… 

Eliza se virou para Gê, que estava logo atrás dela. 

— Vamos. Precisamos ter certeza de que não haverão feridos.

— Certo!

Com os olhos âmbar se focando nos negros da outra Maga, as duas curandeiras assentiram uma para a outra antes de começarem a se dirigir na direção de onde se originou todo aquele conflito.



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