Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 5 – Arco 3

Capítulo 36: Aqueles que há Muito Tempo Não Via

Era um ambiente fechado com extensas janelas de vidro. As paredes de madeira possuíam luminárias foscas e amareladas que davam ao ambiente um clima agradável. Ao contrário das músicas ao vivo que tocavam nas ruas, havia uma melodia ambiente dentro do espaço que tocava com uma sutileza gentil aos ouvidos. Aquela cafeteria era praticamente um abraço a todos os cinco sentidos. Aos ouvidos que escutavam uma doce música, aos olhos que se enchiam de doces exuberantes, ao olfato que se aprofundava no cheiro de café recém produzido e ao paladar que se deliciava com o sabor das produções.

As empregadas uniformizadas cumprimentavam os clientes na porta, que tocava um sininho ao entrarem,o os guiavam até suas respectivas mesas. Cardápios pequenos eram dispostos diante daqueles que estavam sentados, que logo escolhiam dentre as opções algo para comer. Apesar da cafeteria estar praticamente cheia, não haviam ruídos irritantes e as conversas eram educadas e baixas o bastante. Ao contrário das ruas, aquele lugar era perfeito para relaxar e descansar a mente. Para se afastar um pouco da loucura das festas, Eliza se sentiu realmente confortável, ali.

— E-Então, um latte para mim e uma torta de morango, por favor.

A garota finalmente fez seu pedido para a empregada que havia aguardado uma eternidade até que ela finalmente se decidisse. Entretanto, ainda assim, sua expressão receptiva não mudou. Ela apenas assentiu com a cabeça e se retirou silenciosamente.

— Mas, minha nossa, Liz. Você estava branca como papel quando te encontramos. Por acaso não comeu mais cedo? Ai, ai… 

— Ah… Há, há… Como sempre, mãe, a senhora me lê como um livro…

Eliza se encolheu perante o olhar acusador da mãe — de Rosa. Apesar de ser uma mulher relativamente baixinha em comparação com outras mulheres, tendo praticamente a mesma altura da filha, Rosa era bastante parecida com Eliza. Cabelos azuis claros e olhos grandes, um corpo pequeno e magro que parecia mais delicado do que fraco. A única coisa que certamente as diferenciava era a personalidade e a cor dos olhos, que ao invés de serem âmbar, puxava para um tom mais mel.

Como se podia ver, Rosa era o tipo de mãe que sempre conseguia ver perfeitamente as filhas, mesmo que elas não tivessem contado com palavras. Eliza não era uma exceção. Os olhos de sua mãe conseguiram entender seu estado e ela prontamente ergueu a voz para lhe dar uma bronca. Não com um tom agressivo, mas certamente deixando claro que aquilo era um erro. 

— Vamos, Rosa. Não seja tão dura com ela. Estamos comendo agora, não estamos? Aqui, seu queixo ficou sujo com o molho.

Oposto ao comportamento da mãe, o pai de Eliza veio ao seu socorro com uma tranquilidade admirável. Ravi pegou um guardanapo e esfregou com cuidado no rosto da esposa enquanto ela fazia uma careta engraçada. Eliza deu um sorriso sem graça para a conversa que veio a seguir entre os pais, aos quais já estava acostumada a ouvir, embora fizessem anos desde que haviam se visto pela última vez.

— Lá vem você, Ravi. Sempre passando a mão na cabeça dela.

— Não é isso, Rosa.

— É isso, sim… Obrigada — a mãe de Eliza agradeceu quando o marido limpou seu queixo para ela com um rubor nas bochechas que desapareceu instantaneamente ao se virar para a filha — De qualquer forma, Liz, coma bem. Será por nossa conta.

Parecendo se acalmar, Rosa respirou fundo e assim ofereceu para Eliza, que arqueou as sobrancelhas.

— M-Mesmo?

— Acho que é o mínimo que podemos fazer pela nossa filhinha que trabalha tanto — Ravi completou as palavras de sua mulher e segurou a mão da filha por cima da mesa, sorrindo.

Como era possível ver, Ravi era totalmente diferente de Rosa. Não apenas em personalidade, sendo um homem relaxado em qualquer situação e bastante racional, mas também atencioso e até um pouco lento às vezes. Tinha cabelos curtos pretos e olhos escuros, também. Era uma pessoa bastante comum até para os próprios padrões, mas certamente tinha suas qualidades. 

Eliza sentiu o coração palpitar com calor ao ouvir as palavras do pai e sorriu orgulhosamente de volta, os olhos âmbar brilhando de felicidade. Parte dela se sentia orgulhosa do próprio trabalho e ouvir aquilo dos próprios pais a deixava realmente contente, mas um outro lado ainda sentia que não havia feito o bastante para receber toda aquela atenção. Ainda era nova e imatura. Havia um longo caminho a se trilhar.

Logo quando assim pensou, uma quarta pessoa alcançou a mesa que a família estava reunida, carregando uma bandeja com uma xícara de café branca e um prato portando um pedaço de torta. A moça se inclinou sobre a mesa, fazendo com que Ravi desfizesse o laço de mãos com a filha, e despejou diante de Eliza o pedido.

— Muito obrigada — agradeceu a jovem, e a empregada se retirou.

Os olhos âmbar de Eliza se encheram de brilho ao verem a refeição diante de si. Era linda e delicada como deveria ser uma cafeteria da capital real. Provavelmente era exatamente essa a imagem que tinham de Hera em geral. Com a boca enchendo de saliva, pegou o garfo, pronta para tirar um pedaço da impecável torta de morango.

— Que coisa mais linda! Aqui, Liz, tira uma foto comigo!

— Hã? Foto? Ah, mãe! Espera aí!

Ignorando completamente os protestos da filha, Rosa sacou do bolso um celular de tela plana, se jogou nos braços de Eliza, passando um braço ao redor dela, e mirou a câmera para ela e o prato adiante.

Percebendo que ela pretendia tirar uma foto de ambas, o rosto de Eliza congelou em constrangimento, vermelho como um pimentão, e se abaixou.

— Ora, vamos, Liz! Não vou conseguir tirar uma selfie com você virando o rosto, assim. Aqui, sorria pra mamãe. Xiiiis!

Um pequeno flash de luz. E então Rosa se afastou da filha. Eliza soltou um suspiro pesado, ainda com o rosto formando uma careta de recusa.

— Vamos ver, vamos veeer… Ooh, ficou uma gracinha! Mas, Liz, você ainda ficou bem escondida. 

— Aaaaah, j-já chega, mãe. Eu vou comer agora. 

— E lá foi ela, debulhando a torta.

Para evitar que sua mãe tentasse tirar mais fotos, Eliza rapidamente cortou a torta e enfiou-a em sua boca, mastigando tanta coisa ao mesmo tempo que suas bochechas viraram dois pequenos balões trêmulos. 

— Ai, pelos Deuses. Vocês duas são realmente desastradas, não são? 

Eliza se encolheu quando Ravi se esticou para limpar o queixo sujo da filha com o caldo de morango. Rosa sacudiu a cabeça.

— É claro que não. 

Eliza não respondeu ao comentário do pai e apenas se permitiu ser limpa, vendo-o continuar a sorrir com carinho e diversão para a esposa, que franzia a testa. Enquanto bebia café amargo para limpar a boca do gosto forte de morango, a expressão envergonhada da garota se desfez em uma de genuína felicidade. Rosa podia ser dura e meio direta às vezes, mas era realmente fácil de se entender seu lado. Em comparação, Ravi sempre continuaria a ser o apaziguador da família, aquele que tranquilizava o clima com sua calmaria infinita, impedindo que Rosa, ainda que irritada, fosse além do necessário. 

Não que Eliza perdesse a paciência com a família, nem nada assim. Entretanto, quando se tratava daquele trio, as coisas às vezes podiam escalar para uma grande bagunça. Mas esses momentos, ainda que curtos, eram memoráveis na mente da curandeira. Eram lembranças calorosas que a faziam ter vontade de voltar para casa a todo momento, mas não podia. Portanto, quando os reviu repentinamente depois de tanto tempo e sentiu seu coração aflorar de saudade e carinho… Algumas lágrimas brotaram em seus olhos, mas esconderam-se por trás de suas pálpebras rapidamente.

***

— Tem certeza de que vai ficar bem, Eliza?

— Sim, mãe. Vou ficar bem.

As vozes que vinham de Rosa e Eliza, que haviam recém saído da cafeteria, ecoavam pela rua movimentada. A garota se encolheu quando a mãe, sendo retrucada pela segunda vez, descruzou os braços, ainda de feição séria, e começou a apalpar a menina que se encolheu de vergonha, passando mãos por seus braços, pernas e parando no rosto rechonchudo dela.

— Tem certeza, mesmo? Tem roupa o bastante? Consegue voltar para o hotel sozinha? Tem dinheiro com você? Ah, não esquece de comer nos horários certinhos, entendeu? Não importa quanto trabalho você tenha, saco vazio não para em pé! Então seu trabalho não vai ser bem feito sem estar bem estocada aqui. Enche esse bucho de passarinho que come pouco!

— A-A-Ahhh! M-Mãe! Tem gente v-vendo! Pára!

— Ai, ai. Já está bom, Rosa. Não vê que ela vai ficar bem, como sempre ficou?

Ravi afastou a esposa da filha, que se contorcia, segurando-a pelos ombros. Eliza soltou um suspiro de alívio e voltou suas íris âmbar para os pais, que a olhavam com expectativa. Inspirando fundo e abrindo um sorriso, falou:

— Eu vou ficar bem, podem ficar tranquilos. Sei o caminho para o hotel e juro que farei minhas refeições certinho de agora em diante.

— Mesmo?

— Mesmo, mesmo, mãe. 

Eliza esticou os braços e segurou as mãos da mãe, sem apertá-las demais. Rosa arqueou as sobrancelhas e arregalou um pouco os olhos para esse gesto, então ergueu a vista para o rosto seguro da filha. Seus lábios tremeram.

— Pare com isso! Pare de parecer mais adulta a cada ano! Isso me irrita!

— Rosa, isso deveria ser algo bom, não é?

— Sim, mas não é! — ela batia com o pé no chão, ainda segurando as mãos de Eliza. Quando abriu os olhos de novo, lágrimas estavam em seus olhos — Olha pra ela, Ravi! Parece uma adultinha! Mas ainda é pitoquinha, desse tamaninho aqui! Ela vai fazer quinze ainda!

— Quis dizer que já vai fazer quinze.

Aos chiliques repentinos de sua mãe, Eliza riu e ouviu os comentários de Ravi. Seu pai, vendo a cena, apenas tentou auxiliá-la com palavras, mas não impediu Rosa quando ela se jogou na filha com os braços abertos e a enlaçou num abraço apertado.

— Aaaai, que droga. Não sabia que ser mãe podia doer tanto assim. 

— … M-Mãe… T-Tá doendo… Apertando… !

Eliza agonizou debaixo dos braços da mãe, batendo levemente com tapinhas em seu corpo.

— Mas, ao mesmo tempo que dói te ver indo pra mais longe, eu fico tão orgulhosa… Eliza. — Rosa a chamou pelo nome com a voz trêmula e olhos fechados, e a filha parou — Muito obrigada por ser nossa querida filha. Você não precisa se esforçar tanto pra ser como sua irmã. Sei que já te dissemos isso várias vezes antes, mas nós te amamos tanto amamos Iara. 

Rosa relaxou os braços que sufocavam Eliza e se afastou, mantendo as mãos em seu rosto. 

— Ainda que sua irmã mais velha não venha nos visitar há muito tempo, sabemos que ela ainda está conosco em nossos corações. Ela sempre nos ajudou financeiramente mandando aqueles mimos dela, todo mês, e ainda segue fazendo isso depois de tantos anos. E você saiu de casa pra fazer a mesma coisa… Mas eu gostaria que você pelo menos viesse nos visitar mais vezes, tudo bem? — Rosa sorriu, ainda chorando um pouco, e inclinou a cabeça para o lado — Mas me avise antes para que seu pai faça uma torta bem gostosa pra você. Bem doce do jeito que você gosta.

— Pronto, pronto, Rosa. Você tá sujando a Liz, desse jeito.

Ravi afastou a esposa da filha, que já fungava com o nariz entupido, e sorriu. 

— Apenas se cuide, Liz. E faça o que sua mãe chorona pediu, está bem? Vamos andar mais um pouco pela cidade e voltaremos para nosso hotel, também. 

— Sim, está bem.

Eliza assentiu com a cabeça para o pai que estendeu um lenço para o rosto de Rosa e ajudava-a a se limpar, ouvindo resmungos como “não precisa!”, e depois “mas, obrigada”.

Eventualmente, com as despedidas dadas, Rosa e Ravi se afastaram, andando e conversando. O sorriso de Eliza continuou em seu rosto até que retornasse ao hotel, uma paz em sua mente a fazia ignorar o som alto demais da música ao vivo na rua e das pessoas que esbarravam nela. 

Não havia nada que pudesse lhe tirar seu ânimo.

***

— Cheguei, Ryota.

Eliza abriu a porta do quarto de hotel e ergueu a voz. A luz da tarde começava a bater nas janelas. Porém, quando percebeu que a única resposta que veio foi o puro silêncio, a curandeira fez uma expressão confusa.

— Ryota? Você está aí?

Ela caminhou pelos poucos cômodos. Vazios. Apenas a mochila amarela e velha com suas roupas restava. As janelas estavam fechadas, como se sequer tivessem sido abertas. O que indicava que Ryota saiu e não voltou mais desde o início da Coroação. O que será que havia acontecido?

— Ai, ai… 

Eliza soltou um suspiro, pegou a mochila dela e a passou pelos braços.

Pelo menos devo levar isso para a mestre Fuyuki… Não acho que Ryota voltaria tão tarde da noite, e o hotel possui um horário limite para retornar aos nossos quartos. Talvez ela tenha se envolvido com alguma coisa…?  Bem, acho que vou desfazer o aluguel, por enquanto.

Pensando assim, Eliza desceu até a recepção e pagou aquilo que devia. Em seguida, saiu pela porta do hotel. A luz da tarde, amarela com laranja, lentamente se transformava no crepúsculo. A noite viria muito em breve, e Eliza não tinha tempo para ficar indo atrás da garota desaparecida. Ela sabia que Ryota se viraria, independentemente  do que acontecesse. Portanto, se concentraria em somente garantir a segurança de seus pertences, deixando-os com Fuyuki, e retornaria até sua mestre para que pudesse finalmente recepcioná-la para o jantar com a corte.

E assim ela fez. Antes do seu diálogo com Fuyuki, que saiu para se encontrar com os outros nobres na sala de jantar, a curandeira deixou a mochila em seu próprio quarto e retornou para dialogar com sua mestra. Ou melhor, para ouvi-la dizer algumas palavras antes de se direcionar para a sala de jantar. Naquela noite, ocorreria o Debute e, posteriormente, a Cerimônia de Benesse, dois eventos que apenas Sora estaria disponível para ficar ao seu lado. Os demais não podia ir até lá, e permaneceriam pelo palácio ou em seus respectivos quartos até que ela saísse de lá.

Portanto, não foi estranho quando, logo após Fuyuki Minami sair de seu quarto na direção de seu compromisso, que Zero Furoto se voltou para seus colegas, dizendo que sairia, e passou pela porta. Agora que sobrariam apenas Kanami e Eliza, elas se olharam.

Antigamente, Eliza tinha medo dos irmãos Akai. Eles eram distantes, assustadores, fortes demais e haviam todos os rumores sobre seus passatempos estranhos. Porém, depois da chegada de Ryota, quando uma pessoa que era completamente ignorante a essas informações se aproximou e fez amizade com todos em pouco mais de alguns dias, aquele medo inconsciente se transformou em uma espécie de respeito. 

De todos que sofreram com a chegada da garota, provavelmente Sora foi o que mais mudou drasticamente. Kanami ainda era bastante afastada e respeitosa, mas o irmão mais velho começou a se soltar mais, fazendo piadinhas bobas perante qualquer um, mas ainda mantendo o respeito necessário para o grupo. Ele deixou de ser tão arrogante. Parecia que ver alguém completamente diferente dele, alguém que subestimou e falou tão mal, se mostrar digno de estar ali, mudou sua forma de ver o mundo.

E isso Eliza também sentiu afetar a ela mesma. De certa forma, todos na mansão Minami mudaram graças à Ryota. Quando justamente assim pensou, uma preocupação a assolou. Onde ela estaria, agora?

— Sairei para minha sala de pesquisas então, Kanami — Eliza se aproximou e falou seriamente, com um sorriso educado — Se precisar de mim, sabe onde me encontrar.

— … Sim. 

— Aonde você pretende ir?

Kanami ergueu os olhos sem vida para a curandeira, que não mais tremia perante ela. E então baixou os ombros.

— Não sei. Talvez… Eu apenas leia alguma coisa. Para passar o tempo.

Eliza abriu ainda mais o sorriso.

— Entendo.

E saiu do quarto. Os passos de Eliza soaram pelo corredor vazio na direção de sua sala de trabalho. Não ficava muito longe, mas precisaria atravessar para o outro lado do palácio. Ela assim o fez, os olhos âmbar passando para as grandes janelas de vidro, analisando o céu estrelado de inverno. 

Espero conseguir algum resultado, hoje…

Enquanto assim pensava, parou diante da porta que dava para seu escritório e abriu. Assim como sua sala de trabalho na mansão Minami que ficava na floresta, era um local relativamente grande com camas e itens médicos. As paredes e chão eram brancos, constantemente sendo limpos. Havia uma única janelas em um dos lados da sala, que entrava uma brisa fria.

— Hm? 

Eliza soltou um som de surpresa quando ergueu os olhos para a pessoa que estava de costas para ela, olhando para o céu noturno. Era uma mulher mais velha e mais alta que ela, com cabelos negros curtos e olhos também profundamente escuros. De braços cruzados e com um cachecol roxo ao redor de seu pescoço, a moça retirou o cigarro dos lábios e soltou a fumaça pela janela.

— A senhorita chegou cedo.

Uma voz rouca, séria e madura a recepcionou. Eliza fechou a porta e sorriu para a mulher.

— Achei que poderia adiantar um pouco meu trabalho hoje, Gê.

A mulher chamada Gê apenas ergueu levemente uma das sobrancelhas para a resposta da garotinha e novamente colocou o cigarro na boca, voltando a fumar.



Comentários