Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 4 – Arco 3

Capítulo 33: Preparado para o Passado e o Futuro

Naquela mesma tarde, com todos do palácio correndo contra o tempo e a própria ansiedade para o início do Baile de Máscaras, passos soando de lá pra cá, algumas pessoas conversavam. Na realidade, em especial, uma dupla de homens dialogavam confortavelmente sentados em suas respectivas poltronas de frente um para o outro.

Ao contrário do que se esperaria de um diálogo formal, um dos homens estava com suas pernas apoiadas em um pequeno banco forrado com algodão, relaxando-as. Estavam em um quarto comum de hóspedes, sem qualquer acessório que chamasse a atenção além do comum. Na realidade, todos os quartos dados aos nobres eram idênticos, mas nada lhes faltava. Haviam janelas com espaço para andarem e apreciarem as mesmas vistas, cortinas caso desejassem que não fossem incomodados pelo sol pela manhã, empregadas à disposição a qualquer chamado, toalete próprio com direito a luxos para o banho, lanches servidos em seus quartos quando requisitados e uma parcela de objetos de entretenimento para passarem o tempo, como jogos, livros e filmes para serem assistidos.

Entretanto, contrariando tudo aquilo que fora preparado, mas, ao mesmo tempo, fazendo bom uso de tudo o que podia, o homem dono daquele quarto soltou um suspiro alto e exagerado sem qualquer remorso de suas ações. Bem, ele estava em seu próprio cômodo e deveria de fato relaxar, mas quando se estava com visitas, geralmente não era esse o tipo de atitude a ser tomada. Principalmente quando eram dois nobres que se encontravam para uma conversa.

— Uaaaah, mas está frio hoje, né, não, rapaz? — Omar Al-Hadid esfregou os próprios braços e fungou o nariz — Nossa, o inverno de vocês é realmente atacado! Lá em Polímia o calor é bem forte, mas o frio daqui é de outro mundo!

— Na verdade, o clima está bem normal hoje…

— Ah, mesmo? Então sou eu que estou passando frio à toa! Há, há, há! Estou bastante desacostumado a esse tipo de temperatura, perdão aí. 

Al-Hadid, com seu grande sorriso no rosto que mostrava os dentes, ergueu uma das mãos para cima e acenou para Zero de forma brincalhona. O rapaz, vendo isso, apenas deu um sorriso amarelo em resposta. Ele sinceramente já estava acostumado a ter que lidar com pessoas extravagantes, mas Omar era o extremo disso. Aquele homem com uma personalidade quente e sempre ativa era realmente difícil de se lidar. Podia parecer estranho assim pensar quando haviam tipos como Shin Akai e Juan Over por perto, sendo os polares totalmente opostos ao nobre perante si, mas Zero sabia que para distraí-los ou tomar sua atenção de alguma forma bastava um pouco de esforço.

Omar era diferente. Ele era aquele tipo de pessoa incontrolável, que não aprendia com o que falavam a ele, seguia e fazia as coisas no próprio ritmo e estava sempre sorrindo de forma idiota para chamar a atenção. Era diferente do estilo de Fanes Fiore, que, apesar de seu lado desastrado, ainda era carismático e demonstrava se esforçar no que fazia. Apesar de sempre estar sorridente também, as pessoas sabiam diferenciar quando estava apenas tentando distrair as pessoas e ser realmente ele mesmo. Omar não era assim. Ele sempre agia como estava pensando e com o próprio humor, sem medir como aquilo afetaria o ambiente ou os seus arredores.

E era justamente esse tipo de pessoa que era a mais difícil de lidar.

— E então, rapaz? Não vai beber? Nesse frio, descer um álcool é tudo de bom! Logo começa a esquentar seu corpo todinho.

— Não, obrigado. Preciso me conter um pouco até o Baile de Máscaras.

Zero negou a oferta com um aceno e lembrou o nobre sobre o evento que aconteceria dali a algumas horas. Neste instante, Omar bateu palmas e quase derrubou a bebida no chão.

— Oh! Oh! É mesmo, é mesmo! Me diga, Jamal! Onde estão nossas máscaras? Eu adoraria vê-las! Nós pudemos escolhê-las especialmente para o baile, mas adoraria comparar os modelos!

Omar se virou rapidamente, fazendo seus cabelos claros amarrados voarem e quase baterem na face de seu guardião quando exclamou aquelas perguntas. Como de costume, Jamal, seu guardião, conteve a raiva dentro de si pelas atitudes imbecis do próprio mestre e respondeu educadamente:

— Sim, meu senhor. As máscaras foram escolhidas a dedo pelos nobres, porém os senhores não devem mostrá-las aos outros até que o baile comece.

— Aaaaaah, é sério? Que sem graça! Esse povo não sabe nada sobre estilo! 

O lorde fez bico, mas então logo se animou ao dar risada da própria piada. Zero realmente não sabia como reagir àquela situação, então apenas manteve as sobrancelhas tortas e o sorriso sem graça na face.

— Ah. E sobre o que estávamos falando mesmo?

— O senhor já se esqueceu?! — Zero exclamou.

— Ah, há, há, há! Desculpe! É que nada que passa por meus ouvidos permanece por muito tempo em minha mente, então não consigo falar de vários temas ao mesmo tempo. Você veio para tomar um café comigo?! 

Zero sentiu vontade de erguer a voz novamente e gritar um grande “não!”, mas respirou fundo e se conteve. Olhando para o nobre radiante à sua frente, ele percebeu que não conseguiria nada dele negando suas ofertas. Sim, Omar era um homem facilmente influenciável por assuntos, mas ele dificilmente levaria alguém à sério se fosse forçado a isso. 

O que veio à sua mente foi a figura de Sofia, que conseguia instigar as pessoas com suas palavras e levá-las a fazer aquilo que desejava. E a forma de fazer isso, era…

— Sim, aceito uma xícara de café — Zero sorriu para Omar, que bateu palmas feliz e indicou para Jamal que os servissem — Parece que o senhor realmente gosta de café, lorde Al-Hadid.

— Exatamente! Eu não vivo sem café, faz parte de mim. Obrigado, Jamal — Omar sorriu para seu guardião que estava de carranca e bebeu o líquido da xícara de uma só vez — E para aquecer o clima e o corpo, nada melhor que um cafézinho.

— É verdade, principalmente durante uma conversa assim. Isso me lembra — Zero pousou a xícara, apoiou os cotovelos nos joelhos e cruzou os dedos, apoiando sua cabeça neles — O senhor, por acaso, realmente gosta de longas conversas, não é? Reparei isso, e ouvi falar, através da minha mestre.

— Oh. A senhorita Minami comentou sobre mim?

— Ela geralmente gosta de contar o que aconteceu em seu dia para os seus guardiões. Devo dizer que é uma honra para mim, alguém que está iniciando essa jornada, ter um momento à sós com o senhor.

Eram palavras que poderiam ser facilmente interpretadas como uma grande bajulação, e realmente eram. Fuyuki era sim o tipo de pessoa que contava sobre seu dia para os guardiões, mas foi o próprio Zero quem descobriu sozinho um pouco mais a respeito de cada membro da corte. Ele pesquisou, conseguiu informações através de outros nobres, de conversas com seus companheiros guardiões e, principalmente, em seu diálogo com Sofia uns dias atrás.

Assim como a provocação era uma opção bastante fácil de chamar a atenção de alguém, a bajulação também era. Geralmente, se conseguia a atenção de uma pessoa usando de um desses dois métodos, instigando aquele a quem se falava a tagarelar. Seja para responder às provocações e conduzir a discussão, seja para que pudesse falar de si mesmo ou das próprias conquistas.

E foi justamente isso o que aconteceu. Omar arqueou as sobrancelhas ao ouvir isso e sorriu.

— Exatamente! Sim, meu rapaz, é realmente um caminho árduo a se trilhar. Não é fácil tomar o posto de patriarca de uma família, nem representante de um país ou nação. Na minha terra, costumamos admirar bastante aqueles que levam seu trabalho e objetivo à sério, fazendo de tudo ao seu alcance para alcançá-lo.

Al-Hadid abriu os braços e assim falou. Zero percebeu que ele realmente gostava de falar sobre sua terra natal, Polímia. Ele não se referia, necessariamente, ao local onde agora seu povo vivia, mas sim ao local onde nasceu e cresceu quando criança. Era uma terra que já não poderia mais ser povoada, estando completamente submersa no Mar Sombrio. 

Ao contrário do que muitas pessoas costumavam fazer, Omar parecia ter orgulho de relembrar o passado. Polímia era um lugar onde muitos haviam perdido suas vidas contendo as sombras ou para a doença do Mar Sombrio. Normalmente, dificilmente as pessoas relembravam do passado com tanto carinho sem terem um pingo de ódio ou raiva em seu coração pelo o que a Entidade havia causado a todos.

Havia um brilho radiante nos olhos de cor coral que não deixava passar qualquer remorso passado que fazia o coração de Zero saltar. Esse deveria ser o sentimento categorizado como encanto, a sensação de admirar o carisma e o jeito com que outra pessoa conseguia lidar com alguma situação em sua vida.

— E posso ver em você o brilho de uma alma jovem e inspiradora. Sim, sim. Alguém que ainda vai trilhar uma longa e dura jornada pela vida, mas certamente vai chutar as pedras em seu caminho! Gosto de você, garoto Furoto! Um brinde! Vamos! Tim-tim de café!

Omar mostrou os dentes e estendeu a xícara de café na direção de Zero que, sorrindo, hesitou um pouco em pegar a própria xícara e devolver o cumprimento, mas acabou cedendo à provocação após um pouco de insistência por parte do lorde. Eles brindaram.

— Então, o senhor-

— Me chame de “você”. Agora que brindamos, somos colegas, não somos?

— … Então, você apoiará minha retomada?

— É o quê?

Zero respirou profundamente, fechando e abrindo os punhos.

— Senhor Omar Al-Hadid, por favor, me escute. Meu desejo, agora, é retomar meu título de lorde e reerguer a família Furoto. 

— Uhum, uhum. Sei, sei.

Omar concordou, concentrado em beber seu café.

— E, para isso, preciso do apoio de toda a corte antes de encaminhar uma expedição à Sua Majestade. 

— Ah, Jamal, pode colocar um pouco mais de açúcar, por favor?

— Senhor Al-

— Estou te ouvindo, garoto. Não precisa erguer a voz.

O lorde parou o rapaz que estava prestes a se colocar de pé e jogar fora tudo o que tinha construído com a conversa até então. Mas ele quase não pôde suportar a frustração de estar sendo feito de idiota. Quando Omar o impediu de continuar com aquelas palavras, ele deslizou seus olhos corais na direção das íris prateadas.

— Sabe, meu rapaz? Consigo ver que você não é alguém de coração ruim. Posso ver em seus olhos que realmente deseja cumprir com o que diz. Entretanto, da forma como está, nunca vai conseguir.

Al-Hadid quebrou a tensão da sala e falou com dureza. Dissipou até mesmo seu tom de voz animado e desprovido de preocupações, se concentrando na conversa pela primeira vez. Isso surpreendeu Zero, que arrumou a postura e engoliu em seco.

— Entendo.

Ele fechou os punhos no colo. Então ele realmente era tão indigno?

— Estou certo de que a dona Sofia já deva tê-lo avisado, mas Juan Over e Shin Akai não o aceitarão tão facilmente quanto pensa. Eles são osso duro de roer, viu? — Omar fez um sinal com as mãos de cortar o pescoço com o dedo — Vão querer sua cabeça se tomar seu tempo. Sabe disso, não é?

— Sei, sim.

— Vai precisar de muito mais que uma boa educação e roupas bonitas para entrar novamente na realeza, garoto. Todos nós vimos sua ação durante a Cerimônia de Benesse, e devo admitir que foi realmente impressionante. Você não apenas tomou conta do pânico do lado de fora daquele salão, como eliminou as ameaças sem qualquer remorso. Gosto disso.

Omar terminou de beber sua xícara de café. Zero sabia que o lorde estava sendo bondoso ao avaliá-lo daquela forma. Na realidade, citar suas atitudes na Cerimônia de Benesse, algo que não havia sido planejado nem por Sasaki ou por Diz, atiçava o fogo da determinação dentro dele. De que, ainda que estivesse sendo ajudado por todos os lados, ainda era capaz de tomar decisões que fossem bem vistas, sozinho.

Por um momento, ele quase conseguiu entender como Ryota se sentia.

— É por isso…! 

Al-Hadid bateu palmas fortes, chamando a atenção do rapaz de novo.

— Sim?

— … Que antes de lhe dar uma resposta, preciso lhe fazer uma pergunta bem importante, rapazinho.

Zero assentiu com a cabeça.

Omar apoiou o cotovelo no braço da poltrona, cruzou as pernas e deitou a bochecha na própria mão.

— Você sabe a história da sua família, não é? A razão dos Furoto terem sido extinguidos?

Um arrepio percorreu as costas do rapaz.

— Sim, conheço.

— Perfeito. Com isso, agilizamos as coisas. Se você sabe o que os levou à ruína, deve saber também que corre o risco de tropeçar nas mesmas pedras, não é?

As íris prateadas baixaram por um instante para as mãos frias no colo.

— Sabe, eu realmente era bastante fã dos Furoto. Eles eram inteligentes e poderosos. Tudo bem que gostavam de levar muito a sério a etiqueta da nobreza, assim como os Minami, mas não chegavam a ser tão extremistas quanto os Akai. Eu realmente gostava de como vocês eram conectados com a natureza, no passado. Mas foi justamente por desejarem demais, por erguerem os olhos para um ponto mais alto que podiam ver, por estenderem a mão para algo que jamais poderiam alcançar, que tropeçaram e caíram. A ganância os destruiu de dentro pra fora.

As palavras do lorde não eram um apontamento somente dos erros do passado, mas um alerta para o futuro. Zero sabia mais do que ninguém de que ele estava certo. Apesar de desconhecer todos os detalhes a respeito da ruína de sua família, ele sabia que foi justamente a vontade de ir além do que realmente podiam que os fez cair. A necessidade de buscar algo que nunca alcançariam, de jamais se contentar com o presente, de remoer o passado e desprezar os erros… Tudo isso foi o que cercou Zero em sua infância e o fez detestar de todo o coração seus pais, seu irmão, seus tios… A todos. Foi o que o fez sair correndo, de olhos fechados e tapando os ouvidos, querendo que tudo desaparecesse.

E então, quando isso finalmente se tornou realidade, quando havia jogado tudo fora, quando havia se isolado no próprio mundo e desejado desaparecer, quando estenderam-lhe a mão e foi apenas levado pelo tempo… Uma nova luz alcançou seu coração e mudou sua vida. E essa mesma luz iluminava não somente seu campo de visão, mas a de várias pessoas. Aquela mão não o soltou, mas também precisava apoiar outras agora. E precisava da dele para se apoiar. Eles poderiam viver juntos para sempre, então soltar as mãos não significava um sinal de fraqueza. Trazer algo das cinzas não deveria ser uma vergonha, mas uma oportunidade de mudar com os erros do passado.

Foi isso, ao menos, que o coração de Zero dizia para ele mesmo. O tempo todo, quando duvidava das próprias capacidades, quando lembrava do quanto foi menosprezado e comparado a outros que jamais poderia se igualar. A nobres da própria família que eram melhores nas notas escolares, no controle de seus poderes e aptidão com tarefas gerais… E até mesmo com nobres de outras famílias, que mesmo passando pelas mesmas dificuldades, possuíam força e coragem para enfrentar seu destino, mudando-o por completo sozinhos. Ainda que passassem por dor, por sofrimento, por abandonos, por perdas e remorsos, ainda estavam de pé e lutavam com as próprias unhas e dentes.

Mas Zero não foi assim. Quando o mundo desabou sobre ele, o rapaz não usou os tijolos para reconstruir tudo, ele simplesmente saltou sobre eles e correu para longe, abandonando-os ao esquecimento e podridão, chorando. 

Isso era passado, agora. Ele decidiu que iria mudar. Seu coração ansiava por isso há anos, mas nunca houve força para encarar essa situação de frente até hoje. Até ver que o tempo não mais esperaria por ele, que as pessoas que agora amava também precisavam seguir em frente e mudar. Ele não poderia mais ficar preso no mesmo quadrado para sempre.

Então, com medo, mas determinado a tentar, o rapaz se ergueu.

E decidiu que jamais se sentaria solitário novamente.

— Mas, talvez, você possa mudar esse futuro. O destino dos Furoto de serem lembrados como uma história para dormir contada para crianças desobedientes, para aqueles que jamais deveriam estender a mão para algo que nunca alcançariam de verdade. Então me diga, Zero Furoto.

Omar Al-Hadid se colocou de pé e caminhou até o rapaz sentado. E estendeu a mão de pele escura.

— Acha que consegue mudar a história?

Zero desceu os olhos do rosto do homem de cabelos loiros presos, dos olhos corais, para a mão forte estendida. 

— Eu não posso mudar o passado. Ninguém pode.

Mas, ainda que você não possa voltar no tempo e alterar uma ação, o futuro ainda virá. O presente existe para ser visto e usado, almejando um mundo diferente do que se tem hoje.

Zero segurou a mão de Al-Hadid e se colocou de pé com firmeza, sorrindo. Seus olhos prateados, ainda debaixo da sombra do homem mais alto, brilhavam insanamente.

— Mas eu decidi que me esforçaria  para tornar o futuro daqueles que amo o melhor possível. 

— É isso o que eu queria ouvir, garoto.

Os dois trocaram sorrisos poderosos e firmaram o aperto de mãos. 

***

De frente para a grande janela que lhe permitia expiar um pouco do céu estrelado, Zero escutou batidas na porta. Era chegada a hora do Baile de Máscaras.

Seus olhos prateados baixaram para a máscara azul escura que estava deitada na mesa ao seu lado, e ele a colocou. Ao lado dela, uma caixinha de veludo se escondia. Era bastante semelhante a outra que certa vez entregou de presente à Ryota, tempos atrás. Mas aquela era diferente. Ela tinha uma cor roxa escura e era bem menor, cabendo exatamente na palma de sua mão.

Respirando profundamente, o garoto a colocou em um de seus bolsos e fechou os olhos. Não sabia se ainda era hora, mas quando ela chegasse, ele certamente saberia. Por enquanto, Zero se contentaria com o presente.

O rapaz com uma expressão confiante deu as costas para a noite estrelada e marchou na direção do salão de festas.



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