Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 4 – Arco 3

Capítulo 28: Resgate

Kanami fungou diante do cheiro ruim e da sujeira que envolvia não só aquele lugar podre, mas também a própria garota em seus braços.

Era leve como uma pena, mas também possuía uma aparência deprimente. Apesar dos esforços para limparem o sangue em seu rosto e corpo, mesmo com o pano que lhe envolvia os olhos, estava claro como o dia para a assassina que haviam judiado dela. Não fazia muito tempo desde a última vez que Kanami viu uma tortura — ou o resultado dela — para impedir que deduzisse o que ela havia passado em tão pouco tempo. E para fazerem tudo aquilo com uma menininha que mal tinha chegado à adolescência...

Não precisava pensar mais do que isso.

Piscando os olhos com convicção, envolveu os braços ao redor da garota e se colocou de pé. Não precisaria de muito esforço para carregá-la. 

— Estou decepcionado.

Foi só quando ela ergueu os olhos para a saída que estagnou no lugar, os pelos do corpo se arrepiando instantaneamente ao ouvir a voz masculina conhecida. A capacidade de se locomover sem chamar atenção ou fazer barulho era uma característica única, então não deveria ter se surpreendido com aquilo.

A pessoa que estava de pé diante da entrada tinha uma silhueta preta, como se a luz da esperança batesse de fora pra dentro e ele fosse o único obstáculo em sua direção — uma sensação que, apesar de parecer dramática, não deixava de ser verdade. Tinha cabelos negros como penas de um corvo e olhos vermelhos como sangue fresco, uma característica bastante conhecida, mas também temível.

Isso se você fosse alguém de fora da família Akai.

Entretanto, as coisas eram diferentes quando dois membros se encontravam cara-a-cara.

Até então, Kanami não havia se dado ao trabalho de sequer demonstrar interesse ou notar a presença de seus parentes — se é que poderia chamá-los assim — no palácio real, e se concentrou em apenas seguir com seu trabalho como guardiã. Entretanto, ela estava ciente do quão incomodado seu irmão estava com a situação. Apesar de terem discutido anteriormente sobre essa possibilidade e ainda estarem sob um clima um pouco complicado, a guardiã não se permitiu recuar. 

— Estive esperando por um reencontro um pouco mais emocionante do que este, mas... Considerando nossos postos e situação atual, acho que não podíamos estar em uma situação melhor — Um sorriso lento e maligno surgiu em seu rosto — Já faz algum tempo desde a última vez que nos vimos, mas você parece muito bem, Kanami.

Kanami não moveu um único músculo diante do anúncio de seu nome em voz alta por Miura Akai.

Os olhos vermelhos que acompanhavam cada ação e pensamento analisaram sua situação atual com um ar predatório e superior. Era uma pessoa ciente de que estava na vantagem e não deixaria de se aproveitar disso em hipótese alguma.

— ... Ora? Parece que temos uma figura um pouco inconveniente por aqui.

Kanami estreitou os olhos quando Miura apontou com o queixo para Marie em seus braços. Então, após uma análise visual, suas sobrancelhas se ergueram.

— Ah, compreendo. Então foi dessa forma que as coisas andaram. Então essa é a famosa Marie, não é? Por que será que andam tão desesperados por tê-la? Primeiro aquela tola garota, e agora-

Enquanto Miura refletia em voz alta sobre as razões que levaram a tantos buscarem a garotinha desacordada, uma situação inesperada o fez interromper sua fala. Primeiro ele viu pelo canto do olho um movimento discreto nas sombras, tão pequeno que poderia ser confundido com um inseto. E foi o que ele tinha pressuposto à primeira vista, mas percebendo que a guardiã estava silenciosa e estática demais... O homem se permitiu prestar mais atenção no que rolou até perto da pequena escada e então estourou.

As esferas cinzas explodiram numa cortina de fumaça que preencheu o todo o local, vazando até mesmo para o lado de fora. Miura tossiu um pouco e logo se virou ao sentir um vulto passar por ele rapidamente. Com reflexos rápidos e cientes de que tinha sido pego numa cilada, ele estendeu o braço naquela direção.

Foi nesse momento que um chute na vertical desviou a trajetória de seu braço para baixo, e, em seguida, um fio de luz escarlate passou diretamente na direção de seu ombro, mas, por pouco, não o atravessou, pois um choque de lâminas tinha ocorrido.

A longa katana de Kanami fazia faíscas saltarem como ondas de choque por seu braço ao entrar em contato com as haladies de Miura. Na escuridão em que apenas era possível ver o brilho afiado de suas lâminas e o tracejar escarlate de seus olhos ao despertarem o Instinto Assassino, a dupla iniciou um combate belo e mortal.

A troca de golpes se dava numa velocidade sobre-humana. Olhos comuns seriam incapazes de entender o que estava acontecendo até que ambos parassem de se locomover e o resultado se mostrasse. Entretanto, para aquela dupla que parecia se mover num piscar de olhos, aquilo não ocorreria tão cedo.

O som de duas lâminas afiadas se encontrando não era agradável. E, também, estava longe de parecer seguro se aproximar. Até mesmo os dois combatentes, que possuíam experiência, estavam hesitantes em manter próximo o passo para desferir um golpe preciso. As haladies de Miura, apesar de serem uma faca de dois gumes que permitiam ao usuário tanto atacar quanto defender rapidamente, quando utilizadas contra uma adversária que portava uma arma que permitia uma distância considerável, como uma katana, não parecia uma luta muito justa ou inteligente.

Afinal, com uma espada de lâmina comprida, a jovem possuía mais liberdade em seus movimentos, ainda que precisasse ser mais rápida que o outro assassino para tal. As haladies deslizavam pelo ar, rasgando-a como papel, buscando intensamente atingir seu alvo. Havia uma aura sanguinária em cada movimento, cada respiração, cada ataque. 

— Está um pouco tensa, Kanami. O que houve? — perguntou o assassino, reparando que ela fazia caretas enquanto se mantinha na defensiva e Miura continuava a pressioná-la com suas armas que atacavam sem parar. Porém, ela não se permitiu ser cortada — Seu rosto lindo não deveria se torcer dessa forma.

Houve uma pausa, e então Kanami velozmente ergueu a perna esquerda para chutar a lateral da face de seu adversário. Entretanto, com o cotovelo, ele rapidamente desviou o golpe e usou da mesma medida para avançar. Porém, ao invés de almejá-la no rosto, ele atacou sua única perna fixa no chão e a derrubou sentada, sua katana — Alhena — rolando para longe com o impacto. 

Miura não perdeu tempo para saltar e voltar as afiadas e brilhantes pontas de suas haladies na direção do corpo da guardiã, que, percebendo o perigo, rolou para o lado e se colocou de pé com uma manobra digna de aplausos. Entretanto, a assassina estava longe de Alhena. A katana havia rolado para a esquerda, mas ela precisou se esquivar para o outro lado para evitar que fosse atingida.

Percebendo que isso fazia parte do plano dele, estalou a língua. Ver essa reação irritada pareceu divertir Miura.

— Hmm. Entendo. Parece que, apesar de terem se passado somente dois anos, você mudou bastante. Devo dizer que se tornou mais expressiva do que antigamente.

Apesar de sua vontade de retrucar-lhe as palavras, Kanami não o fez. Ela sentiu que, se assim fizesse, estaria caindo no joguinho de palavras de Miura. Ele era o tipo de homem perspicaz que sabia manipular os outros com palavras chave, esperando que isso as fizesse falar o que queria ouvir. Ou o que queria que fizessem. Para pessoas mais fracas ao controle mental e suscetíveis a ceder sob forte uma pressão, talvez tivesse funcionado. Entretanto, este não era o caso.

O silêncio de Kanami sempre foi sua maior arma. Ainda que seu irmão também fosse consideravelmente quieto, por vezes o rapaz se deixava levar pelo humor e demonstrava seus sentimentos, principalmente os negativos, o que o levava a dizer coisas desnecessárias algumas vezes. Ela, entretanto, jamais se permitiu passar por isso. O que, para sua família, era realmente motivo de sucesso, já que assassinos não deveriam ser tão chamativos ou falantes perante os outros. Mas o caso era diferente quando se estava diante de um conhecido próximo ou da família. Alguns se soltavam. Até demais.

Esse, por vezes, era o caso do homem diante dela.

Miura dançou suas haladies nas mãos.

— Sempre soube que aquela jovem duquesa não era uma boa influência. Continua desprezível.

Miura cuspiu aquelas palavras não apenas porque eram verdadeiras por parte de seu coração, mas também porque sabia que acertariam profundamente no orgulho de Kanami como guardiã. Seu coração inflou com raiva por ter sua mestre insultada e sabia que isso poderia ser motivo para criar um conflito entre os Fiore e os Minami, entretanto…

— Oh, não me olhe dessa forma. Feri seu coraçãozinho? Sinto muito por isso — ele fez quase que uma reverência sarcástica para Kanami, que tinha fechado completamente a cara. — Uuh, que medo. Então essa é sua expressão de raiva? É a primeira vez que a vejo. Devo admitir que é realmente muito boa.

Apesar de estar sorrindo, Miura ergueu o rosto e uma sombra também surgiu sob seus olhos vermelhos brilhantes, dando-lhe uma aparência tão assustadora quanto. Porém, a guardiã não se intimidou e apenas avançou, curvando os joelhos e pés para ganhar impulso antes de desaparecer de onde estava com um estalo tão alto no vácuo que o som se desfez por um mero segundo. O chão rachou quando Kanami saltou de onde estava na direção de Miura com uma intenção assassina pulsante, a perna traçando um brilho avermelhado de calor enquanto girava no ar em um movimento perfeito que acertou o corpo dele, o mandando para o lado. Mas não com a força que ela desejava, e ele parou a poucos metros de onde estava.

Entretanto, era o suficiente.

O olho esquerdo vibrantemente vermelho de Kanami, que havia ativado o Instinto Assassino, avaliou o momento exato em que Miura voltou-se para ela com as duas haladies. Uma passou direto por ela, atrás de sua cabeça, cortando levemente os fios de seus negros cabelos quando escorregou na direção de Alhena. A outra, no entanto, conseguiu cortar não tão levemente sua cintura. A roupa rasgou e sangue escorreu, mas a guardiã conseguiu de volta sua katana e prontamente se protegeu do chute que veio de cima a baixo com sua arma.

Miura, ainda com seu sorriso divertido, do tipo que dizia claramente que sequer se esforçava naquele momento, pressionou sua perna contra a katana virada de Kanami. Mas aquela expressão rapidamente se desmanchou quando sentiu um calor pulsante crescer e queimar, fumaça exalando daquele ponto de encontro entre os dois. 

— Tsc.

O assassino deslizou o golpe de forma que não se cortasse e estalou a língua para a perna ligeiramente queimada pela espada que começava a ganhar um brilho escarlate, emanando calor e aumentando a temperatura ambiente.

— Então você realmente quer levar isso à sério? Até onde pretende ir com isso? O que ganhará resgatando essa garota? Está ciente de que isso pode ser visto como uma traição, não é? Não somente à família real, Kanami, mas também aos Aka-

— Silêncio. 

Pela primeira vez na luta, a assassina abriu os lábios e falou. Foi uma única palavra, baixa e afiada, mas que, para o homem que até então tagarelava sozinho, foi uma grande surpresa. Kanami se colocou de pé e se posicionou para o combate com Alhena, esquentando o ar exponencialmente de forma que distorcia até mesmo a visão de ambos.

Huo.

Miura, diante dessa visão gloriosa, pareceu respeitar seu ríspido pedido e não a respondeu. Pela primeira vez desde que sacaram suas armas brancas, ele finalmente pareceu levar a sério suas ações. Então, após o que pareceu alguns segundos de ambos se encarando, partiram para a luta novamente.

Desta vez, no entanto, Miura não se conteve e suas duas haladies também brilharam. Era um brilho quente idêntico ao da katana da adversária, que fazia com que suas lâminas fervessem de calor ao concentrar chi.

Huo.

Houve um choque direto entre essas três armas e uma explosão de calor aconteceu, preenchendo o cômodo de celas com uma fumaça branca.

Instantaneamente, os dois sentiram algo. A sensação era semelhante a de segurar algo quente, porém, maleável a ponto de se tornar insegurável. Foi como se suas armas estivessem em um estado de sobrecarga, impedindo que eles a portassem corretamente. Não era pra menos, afinal, ambos haviam se chocado com armas em seu potencial máximo de carga, utilizando o mesmo elemento como base. Não era para menos que este fosse o resultado: uma grande explosão de calor.

Na escuridão da noite e, agora, com a fumaça branca que preenchia o local, ouviram-se tosses roucas e baixas. E, também, o som de corpos se chocando. Ou melhor, de membros do corpo se chocando, de braços e pernas trocando golpes em uma velocidade sobre-humana. Eram apenas silhuetas escuras com dois pontos vermelhos em suas faces brilhando. Os corpos suavam, a concentração se esvaía, mas a vontade de lutar permanecia e crescia.

Foi com um ajoelhar e um chute que levou Miura a planar no ar que Kanami agarrou novamente sua katana. O outro assassino, percebendo que dali viria um ataque, estendeu as mãos para suas haladies. Mas, para sua surpresa, elas estavam longe demais, chutadas pelo mesmo movimento liso como uma cobra que o tinha levado ao chão. Kanami havia o derrubado e, ao mesmo tempo, mandado para longe suas duas armas brancas.

— Sua…!

Miura soltou uma resmungação e rapidamente conjurou-as para que voltassem a ser simples objetos. Ou melhor, que voltassem a ser um simples brinco que ficava em sua orelha esquerda, com não um aro, mas dois. Estes mesmos aros, logo que voltaram a ser acessórios, brilharam e novamente voltaram a ser haladies, prontas para o combate. Com um sentimento que misturava frustração com surpresa pelo combate ter chegado àquele ponto, o assassino cortou os ares e a fumaça, fazendo com que se desfizessem.

Porém, quando assim o fez, percebeu que estava sozinho. Kanami havia desaparecido.

Miura disparou para o lado de fora, percebendo que ela deveria ter fugido com a outra garota.

Mas, então, algo estranho aconteceu. Ele sentiu que seus passos estavam lisos demais, e a visão se inclinava para cima. Miura escorregou e bateu as costas em algo duro, fazendo um som de “crec” lhe chegar aos ouvidos.

— Aaaarrghh…! O que foi isso? O que é que… Hã?

Após gemer e olhar com raiva para o chão, sua mente ficou branca. Tão branca quanto o gelo ao qual havia deslizado e caído, mas que lentamente se desfazia em chi novamente, como se nunca tivesse estado ali antes. Ele, incrédulo, apenas piscou algumas vezes para o nada, ainda sentado no chão frio.

Eu sequer pude escutar o som do gelo se formando. Sequer senti a presença de outra pessoa do lado de fora… Será que Kanami tentou tirar minha concentração a esse ponto? Ou será que… Aquela reles duquesa… 

Os pensamentos de Miura jamais chegariam a lugar algum. Afinal, ele havia ficado completamente sozinho no corredor. Kanami Akai e Fuyuki Minami haviam conseguido resgatar a prisioneira com sucesso.

***

— Certo. Então, vou indo na frente. Preciso garantir que hajam testemunhas a meu favor quando voltar.

— Muito obrigado por sua ajuda, senhorita Minami.

Fuyuki se virou no espaço apertado, um pequeno corredor que mal cabiam duas pessoas uma ao lado da outra, e deu um sorriso genuíno ao rapaz de cabelos loiros.

— Apenas Fuyuki é o bastante — disse, e então disparou para longe.

O príncipe observou a jovem se deslocar para o outro lado, atravessando as sombras e desaparecendo de sua vista. Ela deveria conseguir atravessar a passagem em pouquíssimos minutos naquela velocidade e então alcançaria seu próprio quarto, onde poderia se apresentar diante de alguns empregados e nobres. Quando Miura finalmente conseguisse alcançá-la, provavelmente haveriam testemunhas o bastante para limpar seu nome.

— Está ocorrendo uma festa do chá entre alguns nobres e fui convidada — disse ela algum tempo antes — Acredito que consigo dar uma desculpa para pegar um ar ou ir ao banheiro e ganhar cinco minutos. É o bastante?

Edward confirmou com a cabeça.

Ele piscou algumas vezes. Estavam em uma passagem secreta com paredes e chão de pedra que não se ouviam passos a menos que se forçasse os pés. Era um lugar para que os criados pudessem se esconder durante guerras e salvar itens de valor. Lugares como aquele só eram conhecidos pela família real. Nem mesmo os guardiões possuíam autorização ou conhecimento para adentrarem aqueles locais. 

Por isso, o auxílio do príncipe neste quesito foi de grande ajuda para comprarem tempo para que o resgate fosse bem sucedido.

Quando Edward se virou para o outro lado, com tochas em chamas iluminando seus rostos, ele olhou para as duas figuras diante dele. A primeira era uma jovem curvada de cabelos longos e escuros que fazia uma careta e suava, parecendo sentir uma dor incômoda. A outra era uma pequena garota de cabelos dourados e olhos enfaixados, completamente suja, mas segurada nos braços por essa jovem — que o príncipe sabia ser uma das guardiãs de Fuyuki.

— Como ela está?

— Não se feriu no combate, mas parece bastante fraca, Alteza. Argh.

Após assim falar com receio, Kanami sentiu uma pontada no ferimento em sua cintura e quase deixou os joelhos fraquejarem. Vendo essa cena, Edward estendeu os braços, mas a guardiã sacudiu a cabeça em negação.

— Não… Não posso deixar Vossa Alteza fazer este trabalho que me foi confiado…

— Então a entregue para mim.

Kanami ergueu os olhos vermelhos para uma outra figura que repentinamente surgiu atrás de Edward. O príncipe, ciente de quem ele era, deu espaço para que passasse e então ele se ajoelhou diante da jovem, os olhos bicolores analisando a situação.

— Isso é mal. Ela está desidratada e fraca demais. E você, senhorita…?

— … Kanami.

— Kanami. Certo. Escute, deixe-a comigo que cuidarei disso. Precisamos tratar do seu ferimento, também.

A guardiã, ciente de que aquele diante dela fora mandado pela própria Fuyuki — afinal, viera pelo mesmo espaço de onde ela retornara, e a duquesa havia dito anteriormente que enviaria uma outra pessoa até aquele local —, não retrucou os pedidos dele. Entregou Marie para os braços do homem e se deixou sentar no chão com as pernas estendidas, dando um gemido baixo enquanto retirava o haori que usava, agora manchado de sangue na altura do corte. Ele tinha sido mais profundo e mais comprido do que parecia. Estava realmente feio, e provavelmente só havia piorado com a explosão de calor e as movimentações bruscas.

— Você… Foi mandado para cá pela senhorita Mi… Pela senhorita Fuyuki, certo? Como se chama?

— Sim, Alteza. Meu nome é Luccas. Uh, nossa, seu ferimento está realmente péssimo. Por gentileza, poderia apoiar a cabeça de Marie dessa forma? Obrigado. 

Luccas, sem olhar diretamente para o príncipe, o respondeu e então analisou o estado de Kanami, franzindo a testa. Então, prontamente pediu para Edward ajudá-lo a sentar Marie no chão, insinuando-o a fazer o que pedia. O homem de olhos bicolores a sentou com cuidado e, como pedido, Edward colocou sua mão atrás de seu pescoço para que mantivesse a postura e cabeça eretas.

— Tratarei dos ferimentos da senhorita Kanami. Alteza, peço perdão por isso, mas poderia fazê-la beber um pouco de água? Dê-lhe aos pouquinhos. Ela está acordada, apenas fraca demais para sentir seus arredores, então um pouco de hidratação a fará bem.

Edward ficou um pouco pasmo com as ordens dadas por Luccas que ainda não o olhava, mas mantinha um tom de voz e postura respeitáveis. Mais do que isso, ele estava surpreso que tinha conseguido entender a situação e rapidamente tomar atitudes para lidar com ela. Ele piscou algumas vezes e então concordou.

— Está bem. Pode deixar comigo.

Luccas não pensou duas vezes antes de se focar em Kanami, que parecia estar sofrendo um pouco.

— Se vire, por gentileza. Preciso analisar seu ferimento.

A assassina o obedeceu e se virou apenas um pouco de lado, mantendo a guarda alta. Era um pouco estranho ser tratada por alguém que não era Eliza, mas não podia reclamar. Para sua surpresa, Luccas era bastante delicado no que fazia. Ele não havia trazido um kit médico ou luvas consigo, mas tirou do bolso uma faixa muito bem enrolada. 

— Com sua licença. Vou estagnar o sangramento por hora, mas a senhorita precisa ir até um médico o mais rápido possível. Esse não parece um corte normal.

Kanami assentiu com a cabeça, mantendo os olhos na forma como ele trabalhava. Luccas não parecia um médico, mas claramente tinha certa experiência com primeiros socorros. Edward percebeu que ele já deveria saber que precisaria trazer uma faixa para Marie, mas não deveria esperar que alguém tivesse se ferido dessa forma. E, ainda assim, ele agiu calmamente diante dessa situação.

Enquanto ele tratava a garota, o príncipe se concentrou também em dar goles d’água para a menina desacordada. Seu estado era visivelmente péssimo. A pele já havia passado do estado conhecido como pálido para algo próximo do puro branco. Estava magra, os membros do corpo leves como uma pena. Edward não pôde evitar de torcer o rosto em empatia por ela. 

Ouvir falar sobre seu estado era uma coisa, mas presenciar era totalmente diferente.

Apesar dessa sensação incômoda, o príncipe deixou para lá os arrepios em seu corpo e fez sua tarefa. Como esperado, Marie demorou para reagir, porém, sentindo que algo líquido era colocado em seus lábios, ela lentamente foi sugando a bebida até que prontamente estivesse conseguindo bebê-la de forma apropriada, ainda deixando escorrer um pouco pelo queixo. 

— … ói…

— Hm? O que disse?

Edward apurou os ouvidos.

— … D… Dói… Dói…

A voz era chorosa e gemia em dor. Ouvir aquilo de uma criança pesou dolorosamente no coração de Edward, de uma forma que não esperava. 

Agora entendo… A razão do desespero dela.

Ele assim pensou lembrando do quanto Ryota estava determinada em tirá-la da prisão o quanto antes.

— Eu cuido disso agora, Alteza. Muito obrigado.

Luccas, ouvindo a voz de Marie, correu até ela e tomou-a nos braços. Edward se afastou. 

— Marie? Me diga, onde dói?

— … Dói… Dói… Luccas… 

— Sim, pode me dizer. Onde dói?

— … Tudo… Dói… Me ajuda… Tá doendo… 

Enquanto falava, Marie fazia sons de gemidos que diziam que ela provavelmente deveria estar chorando. Porém, devido às faixas e o ferimento grotesco em seus olhos, ela provavelmente não conseguia, sentindo uma dor e desespero agoniantes. Nem chorar lhe era permitido para espairecer suas dores. Lamentar não era o bastante para o corpo, mas ela também sequer conseguia derramar lágrimas para poder relaxar o coração ferido, então o agrupamento de tanto sofrimento colapsou por completo sua mente, entrando em um loop de tristeza e dor.

Luccas torceu a expressão com tanta angústia que Edward pensou que ele começaria a chorar. E talvez até tivesse caso Kanami não se pronunciasse:

— Vamos… Levá-la até Eliza. Ela poderá nos ajudar.

— A curandeira da senhorita Fuyuki?

A guardiã assentiu para o príncipe.

— Agora que alguns minutos se passaram, Miura deve estar nos procurando. Precisamos cuidar disso rapidamente antes que seja tarde.

— Concordo com você, Kanami. Porém, estou certo de que o guardião de meu pai não começaria uma comoção sozinho. Ele não pode criar escândalo publicamente e sequer provocá-los de tal forma. Seria uma desonra, e ele sabe disso. Estou certo de que eles deixarão a poeira baixar antes de agir novamente. Vocês têm a minha palavra. 

Luccas e Kanami assentiram com a cabeça. 

— Me sigam. Vamos atravessar a passagem e seguir para os andares superiores.

O trio começou a caminhar. Edward na frente, seguido pelos outros dois. Luccas carregava Marie nos braços. Os passos eram ligeiros, mas cuidadosos, agora que haviam duas pessoas em um estado delicado demais para simplesmente saírem correndo. 

— Mas me diga, Luccas… 

— Sim, Alteza?

— Você é médico?

— Hã? Ah, não, estou apenas acostumado a fazer primeiros socorros. 

Edward fez um som de compreensão, já ciente da resposta.

— Para alguém que não demonstrou qualquer sinal de surpresa com a situação atual, nem por estar diante do futuro rei ou de uma Akai, tratando de uma situação como essa com tanta tranquilidade… Seu trabalho deve ser realmente incrível para tê-lo preparado a tal ponto.

Luccas se calou. Ele mantinha os olhos baixos. A pressão do ambiente e dos apontamentos de Edward eram verdadeiras e não poderiam ser negadas. Após alguns segundos sentindo o clima pressioná-lo, o homem de olhos bicolores soltou um suspiro pesado.

— Sim, senhor. Trabalhei alguns anos no palácio de Hera e por isso possuo tais conhecimentos. Não era minha intenção esconder, Alteza.

Agora as coisas fazem mais sentido.

Edward se sentiu mais tranquilo com isso, embora algo ainda o incomodasse em relação àquele homem. Não apenas Luccas parecia continuamente desviar-se da atenção do príncipe, mas ele mesmo se sentia atraído e curioso sobre ele por alguma razão. Não sabia descrever a razão disso, então apenas se manteve calado, pensativo.

— Estamos chegando.

— … Luccas?

— Marie!

A garotinha, que de repente ergueu a voz, assustou Luccas, que prontamente lhe tomou a mão e parou de andar para olhá-la. Ela havia despertado e recuperado a consciência.

— E então?

— … Ainda dói…

— Vai ficar tudo bem agora. Vou cuidar de você, certo? Apenas espere mais um pouco.

— … A…

Luccas fez uma expressão de confusão.

— … O quê? O que foi?

— … Ryo… ta…

— Ela está bem. Logo vocês poderão se ver-

— … O… Botão…

Foi então que ele percebeu que ela segurava algo firmemente com uma das mãos. Era um botão dourado que parecia ter vindo de alguma roupa da realeza pelo modelo. 

— Ainda está com você.

Escutando isso, Marie relaxou. Luccas se preocupou que talvez seus sentidos estivessem confusos, mas lhe tranquilizava saber que sua audição e compreensão dos arredores ainda pudessem ser lidados de alguma forma.

Marie, no entanto, sentindo-se acolhida pelos braços da única — não, de uma das pessoas que lhe eram importantes, se deixou levar e relaxou. O botão que segurava firmemente ainda estava quente, quase como se pudesse sentir a presença da outra garota consigo. Ela não estava sozinha. Não havia mais o que temer.

Foi pensando nisso que a mente da garotinha mergulhou novamente na escuridão.

***

Em paralelo a isso, passos soavam por um corredor. Eram dados por somente uma pessoa, mas haviam mais ao seu redor. Um grupo de guardas estava parado, escoltando sua passagem até o cômodo adiante. Eles guardavam o quarto e mantinham os olhos atentos como nunca, pronto para sacarem suas armas a qualquer sinal de perigo ou ameaça.

A garota parou diante da porta e olhou para os dois guardas que estavam diante dela.

— Digam que a guardiã de Sua Alteza, Edward Fiore, deseja entrar.

— Imediatamente.

Agora que sua presença no palácio não era desconhecida, ela podia acessar áreas e conversar dessa forma. Um dos guardas abriu a porta, batendo, e entrou. Então retornou e assentiu para ela, fazendo com que ambos os guardas abrissem as duas portas, permitindo sua passagem. 

Ryota escutou as mesmas portas baterem atrás de si quando entrou no quarto. Era tão grande e extenso quanto o de Edward, porém, havia ali um toque diferente dos outros. Ele claramente fora feito para duas pessoas pela quantidade de portas que davam acesso a vestiários e a extensão dos móveis. A cama era de casal, mas parecia nova em folha. E, apesar de ser um cômodo feito para duas pessoas usarem, apenas uma estava presente.

Era um homem de cabelos cor claro que estava sentado numa poltrona diante de uma lareira, os pés estendidos em um pequeno poof estavam aquecidos. Ele não se virou quando ela entrou, mas pareceu sentir sua profunda reverência.

— Com sua licença, Majestade. 

— Que surpresa vê-la aqui tão tarde… Digo, tão cedo.

Fanes ergueu os olhos para o relógio e reparou que era madrugada. Mas ele ainda estava desperto.

— Essa não. Miura brigará comigo por não ter dormido mais cedo… Aaah.

O rei soltou um suspiro meloso que dizia que já estava acostumado com aquilo e se colocou de pé. Estava usando um roupão longo e quente quando caminhou até a jovem ainda em posição de reverência.

— Erga-se, Ryota. Sobre o que deseja conversar?

Ela ergueu a cabeça. E, então, começou a falar.



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