Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 4 – Arco 3

Capítulo 27: "Marie"

Tudo estava escuro.

Uma imensidão do mais tenso preto, da mais absoluta escuridão a preenchia. Não somente através dos olhos que jamais voltariam a ver a luz do dia ou as cores do arco-íris, mas da alma que jamais esqueceria daqueles frios arrepios e os gritos ensurdecedores que tinha dado e sequer percebido que eram seus.

Marie nunca tinha sentido uma dor tão profunda na vida antes.

A lacerante e inesquecível experiência de ter duas partes vitais de seu corpo sendo retiradas de si pelo resto da vida não era algo que poderia se acostumar facilmente. Muito menos uma criança que recém havia chegado à sua adolescência.

O rosto sujo e arranhado dela, marcado pela ausência de ar fresco e luz do sol, mas também pela poeira e a aura depressiva no ar a definhavam.

Nas primeiras horas após acordar, ela tinha chorado. Ou tentado. O horror, o pranto, o completo desespero a fez perder qualquer noção de tempo e espaço quando as memórias do ocorrido a assolaram, e ela se viu gritando o nome da única pessoa que sempre a tirava dos problemas, aquela que era sua luz no fim do túnel, o rapaz que deliberadamente agia de forma super protetora e sempre estava ao seu lado.

Mas Luccas não estava ali para ampará-la. E gritar por seu nome não o traria até lá, muito menos cicatrizaria a grossa e feia ferida em seu rosto e coração jovens.

Mas, mesmo assim, a garotinha Marie berrou e gritou, esperneou e sacudiu inutilmente as barras da jaula onde estava presa, tateando e se debatendo. Ela podia não ver, mas sentia perfeitamente a dor no corpo a assolando. Certamente sua pele branca tinha sido manchada em roxo e tonalidades feias de vermelho, algumas partes até inchando.

Tinha o sangue também. Ele demorou para secar e endurecer, o que só tornava ainda mais insuportável aquele novo mundo de sombras e silêncio para ela.

Era assustador.

Tinha tentado se controlar depois que algum guarda entrou na sala das celas e gritou alto, chutando sua cela antes de marchar pra fora. Ela choramingou baixinho, atormentada, triste, desesperada, soluçando.

Haviam outros como ela. Apesar de não tê-los visto sequer antes, por estarem tão escondidos nas sombras que pareciam ter se misturado ao local de tão silenciosos, Marie conseguia sentir o vazio e a falta de esperança que exalavam. A falta de vontade de lutar, de pedir por socorro... Será que ela também acabaria daquela forma? Abandonada, esquecida, presa para sempre naquele lugar horrível?

O sentimento de impotência e desespero internos era algo com que ela jamais iria se acostumar.

O aperto no peito que não cessava, a visão que se turvava quando pensava nas possibilidades que estavam todas contra ela, a falta dos requisitos básicos para buscar aquilo que precisava e a falta de força para buscar aquilo que lhe era importante... Tudo isso, todos esses sentimentos fizeram parte da vida de Marie desde que ela se conhecia como gente.

A sensação de fragilidade a atingiu como um raio. Em seguida, percebendo que não poderia contar com ninguém além de si mesma, a garotinha entrou em desespero. Ela não podia fazer nada sozinha. Afinal, ela sempre falhava toda vez que tentava.

A dor a ajudava a se manter consciente. A sanidade dependia unicamente da sua força de vontade em não ceder às sombras e às vozes da própria cabeça. Então, naquelas poucas horas que pareciam ser dias, Marie se viu mordendo a própria língua ao ponto de sangrar. Às vezes, quando era noite e o silêncio chegava a ser tão intenso que quase se esquecia de como era respirar, sua cabeça voluntariamente se inclinava pra trás, então voltava com tudo e a testa estalava ao bater contra a dura parede.

Sua mente acordava, os sons voltavam aos ouvidos. Se sequer pudesse falar algo para se distrair... Mas sua voz era incapaz de formular qualquer palavra ou frase para tal. Para alguém extremamente acostumada a se mover e desgastar suas energias, ficar parada por tanto tempo era uma tortura.

Se via choramingando sozinha de tempos em tempos, a voz baixinha demais para chegar aos ouvidos dos outros nas celas, mas o suficiente para mantê-la acordada. Perder o tato e a audição, os únicos sentidos ao seu favor, era aterrorizante.

De tempos em tempos, alguém entrava pela porta barulhenta para deixar uma bandeja através da cela. Marie escutou o som dos passos, atentou-se à distância da pessoa. Provavelmente era um guarda devido à passada forte e determinada. O som do copo de plástico e prato sendo colocados era baixo.

Mas Marie não se moveu até que ele tivesse se retirado dali.

Quando o silêncio novamente tomou conta, ela se arrastou. Tateou duramente, o corpo gritando de fraqueza e dor. Foram minutos até conseguir encontrar a direção correta. Minutos aos quais ela, deitada, se arrastou até as barras de ferro e voltou a tatear timidamente o outro lado. As mãos pequenas e pálidas tocavam o solo, primeiro com as pontas dos dedos, então com a palma. Lentamente, sentindo e entendendo.

O cérebro demorava a compreender a diferença entre o interior e o exterior. Era uma luta constante.

Por fim, o braço esbarrou em algo sólido, e Marie grunhiu em surpresa, fazendo um movimento brusco. Então, outro som de surpresa lhe escapou aos lábios quando sua mão e joelhos umideceram. O copo tinha caído.

Marie engoliu o choro que ameaçou irromper e logo alcançou o prato. Desta vez, bem devagar, tateou pelo alimento duro que ela demorou a reconhecer ser um pão velho.

Seus lábios secos prontamente se curvaram em uma expressão de desgosto, mas não havia muito a ser feito. Ela não devia ter esperado um tratamento melhor, de toda forma.

Marie não sabia quando seria sua próxima refeição, então ela mordicou o pão que fazia “croc” ao mastigar, e armazenou uma alta quantidade de saliva para fazê-lo descer lentamente pela garganta seca, sedenta por água.

Não demorou muito para que o pão acabasse e as necessidades lhe apertassem o ventre. Uma contração que ela conseguiu suportar ao longo da noite, mas após ingerir algo, a necessidade de limpar seu corpo logo veio.

Sem muita escolha, a jovem tateou até a parede novamente e, orando para qualquer coisa que pudesse ouvi-la naquele momento, lentamente baixou suas roupas e urinou da forma mais silenciosa que conseguiu.

Fazer aquilo em público já era problema o suficiente, mas a falta de higiene era demais. O cheiro agregado às paredes, ao chão e no ar já denunciavam o quão podre era. Entretanto, sujá-lo com as “próprias mãos” era demais.

O calor que lhe subia ao rosto não era devido, somente, à vergonha, mas também às lágrimas que começaram a escorrer sem dó.

— Aaaah... Aaaah... AaAahAahh...

As mãos fracas e sujas logo foram ao rosto para limpar as lágrimas, estas que permitiram que Marie sujasse ainda mais o rosto com o próprio sangue.

— E-Eu...

... Nunca mais poderei ver... Nada.

Os soluços se intensificaram.

— ... Luccas... Ah... Lu... Luccas... AaAhhAh...

Aos prantos da garotinha que chorava solitária na própria cela, os lamentos ecoando pelos arredores, mas que jamais chegariam ao seu protetor... Algo dentro de Marie se rompeu brutalmente ao ponto de sangrar.

Eu nunca mais verei nada.

Assim ela aceitou a própria situação enquanto voltava não somente a visão, mas também o coração, para as sombras.

***

A vida de Marie sempre foi envolta de sujeira e escuridão.

A podridão das ruas e das pessoas fazia parte de seu cotidiano.

Afinal, quando ela nasceu, seus pais nem mesmo a quiseram. Tanto que a desmamaram rápido demais e a deram para qualquer um com rosto bonito. Ou talvez a tivessem largado na porta da casa de alguém, ela não sabia.

Luccas jamais especificou o começo de tudo. Mas, para Marie, ele era seu início.

A menina tinha saído dos braços da mãe pouco depois de nascer e entregue à Luccas, de alguma forma. Não sabia se foi pela falta de condições às quais havia nascido e poderia viver que foi entregue à alguém — pessoa essa que poderia trata-la muito melhor. Ou se foi o contrário, e os pais apenas se livraram dela por descaso.

— De qualquer forma, não faz diferença. Eles me deixaram de qualquer jeito.

Foi o que ela disse à Luccas após ele lhe contar sobre seu passado, ou parte dele. Tinha perguntado por pura curiosidade, e ele, após uma pausa, assim lhe disse.

Luccas uniu as sobrancelhas ao ouvir o comentário dela que, na época, mal tinha feito dez anos de idade.

— Não me olha desse jeito — Marie abraçou as próprias pernas e se encolheu, fechando os olhos rosados — Me irrita essa pena no seu olhar. No de todos eles.

O brilho afiado que cintilava em suas íris era forte como uma chama de raiva pura, sempre direcionado à qualquer um que demonstrasse ser inimigo dela. Até mesmo Luccas, a pessoa que lhe era mais... Próxima.

Marie não era uma pessoa gentil. Costumava agir e falar sem pensar duas vezes, o que acabava criando situações complicadas. Ela pouco se recordava de sua infância, mas, dos relatos de Luccas, sabia que sempre fora do tipo difícil. Aquele tipo de criança que insistia em fazer as coisas primeiro, na frente de todos. Que batia o pé no chão e brigava com os outros quando seus desejos não eram atendidos.

Não porque era mimada, mas porque era orgulhosa.

Possuía um orgulho forte como o de um leão, podia berrar como um rugido de uma fera e encarar de um jeito tão assustador que faria até mesmo adultos recuarem perante sua presença. Mas, ao mesmo tempo, isolar-se do mundo daquela forma exigia que sempre mantivesse o queixo erguido sobre qualquer circunstância. Até mesmo nos seus momentos de fraqueza, até mesmo diante de Luccas.

Eles não viviam em uma casa. Jamais ficavam parados em uma única cidade. Estavam sempre se mudando de tempos em tempos, viajando ao longo de toda Thaleia. Luccas não era alguém com um financeiro digno, mas podia-se dizer que era o suficiente para sustentar um adulto simplório e uma garotinha cabeça quente.

Não gastavam muito. Para a surpresa da maioria que os conhecia, apesar de sua personalidade exigente e forte, Marie nunca foi enjoada ou mimada. Ela estava ciente da situação ao seu redor, e jamais brigou com Luccas a respeito de coisas triviais como brinquedos que não ganharia em aniversários ou épocas festivas. Ela jamais exigiu algo dele, também.

Entretanto, Marie sempre se viu, ao menos, em todo aniversário, com um pequeno pedaço de bolo sobre a mesa toda vez que acordava. Uma vela simples queimava, marcando exatamente sua idade. Acompanhado havia sempre uma cartinha escrita à mão em letra de forma com vários desenhos bobos, como corações, leões, cachorros e balões. Frases genéricas como “Feliz Aniversário!” ou coisas do tipo eram escritas.

Por alguma razão, Marie jamais amassou aqueles papéis. Ela os mantinha guardados em sua maletinha “íntima para garotas”, dizia ela para Luccas toda vez que ele tentava espiar ou perguntar a respeito. No começo, ele zombava de gostar tanto de uma maletinha desgastada e velha, mas depois, ele apenas passou a aceitar aquilo.

— Por que nunca ficamos em uma única casa?

— Ué? Por que a pergunta?

Certa vez, enquanto estavam sentados jantando à mesa numa casinha pequena de madeira ao qual mal haviam conseguido desempacotar suas coisas, ela assim perguntou. De repente.

Marie nunca tinha questionado aquilo até então.

— Não posso saber? — Retrucou ela, afiada.

Luccas imediatamente riu, balançando uma das mãos. Então, apoiou a colher da sopa no prato, os olhos bicolores se estreitando por um instante. Hesitando.

Então, ele piscou e respondeu:

— É uma pergunta difícil de responder...

Marie se permitiu arquear as sobrancelhas em surpresa. Ele raramente demorava tanto para responder seus questionamentos. Por mais que, por vezes, soassem superficiais demais — porque, naturalmente, ela era uma criança e era incapaz de entender tudo sobre o mundo dos adultos, e respostas como aquelas eram necessárias —, Marie sempre as aceitou, por mais que ela soubesse que fossem mentiras.

Mentiras bobas não a incomodavam. Eventualmente ela seria capaz de descobrir o que queria por conta própria.

— Você não gosta de viajar, Marie?

Luccas perguntou após um instante de silêncio, baixando os ombros em rendição.

— Não foi isso que perguntei — Após a resposta brusca, ela baixou o olhar, brincando com a própria sopa de letrinhas — ... Mas... Não é como se eu não gostasse...

— ... Você... Se sente triste por... Não ser como as outras crianças?

— Não.

Apesar da tonalidade melancólica dele, Marie respondeu rapidamente de novo. Ainda que Luccas estivesse tão hesitante em responder diretamente às perguntas, a garotinha não tinha esse mesmo problema.

Por mais que, às vezes, ela costumasse omitir.

— Eu não me importo com elas.

Assim ela respondeu, mas apertava o talher com força.

— Me desculpe, Marie.

— Para com isso! Não... Não fala mais nada!

Incapaz de lidar com a expressão de sofrimento dele, Marie apenas saltou da cadeira, derrubando-a para trás com a força com que se colocou de pé e fitou Luccas diretamente. Para os olhos bicolores e tristes dele, ela devolveu um olhar de frustração.

— Nunca mais... Nunca mais fala isso pra mim.

Uma voz arranhada e que vinha do fundo do seu ser assim rosnou para o jovem incapaz de dizer qualquer outra coisa. Luccas apenas franziu a testa quando a menina lhe deu as costas e correu para o quarto, escondendo as lágrimas que ameaçavam escorrer por seus grandes olhos rosados.

Marie bateu a porta com força, sem se incomodar se poderia causar estragos a ela. Luccas não iria atrás dela.

E ela não precisava dele. Não se ele fosse continuar dando desculpas. Pedir perdão... Mesmo sabendo que odiava isso, às vezes, o rapaz deixava escapá-las.

— Desculpas, desculpas, desculpas, desculpas, desculpas!

Socando a cama e os travesseiros velhos, ela se permitiu rosnar.

“— Me desculpe, não posso.”

“— Desculpe mocinha, não há nada aqui. Procure em outro local.”

“— Sinto muito, precisa de alguns trocados? Aqui.”

“— Me desculpe por não poder te ajudar.”

— Aaaah. Aaaaah. Aaaah! Me desculpe isso, me desculpe aquilo! Me olhando com essas caras idiotas... Aaaah, sumam da minha frente!

O que vinha à mente de Marie eram as pessoas com quem às vezes se via precisando falar quando saia nas ruas. Para perguntar sobre coisas triviais ou pedir favores, e, por vezes, as pessoas franziam a testa pra ela e apertavam os olhos, e repetiam a palavra que lhe fazia ferver de raiva.

Faziam a mesma expressão que Luccas fizera.

Era menos pior quando elas deixavam de ser falsas, dando desculpas esfarrapadas para seus pedidos ou perguntas e lhe respondiam diretamente. Que falassem mal de sua aparência, de seu olhar feroz ou lhe xingassem pela língua afiada.

Dessa forma, ela podia retrucar. Podia até dar razão às respostas duras dos comerciantes aonde passava para comprar comida e roupas. Não se sentia mal quando socava o nariz de outra criança que apontasse para seus cabelos loiros desgrenhados e ria. E não se importava nem um pouco quando a mãe ou o pai, desesperados, vinham tentar separá-los. E, então, como era de costume, Luccas praticamente se ajoelhava para se desculpar às famílias.

E, em casa, conversavam a respeito. Geralmente, era assim:

— O que aconteceu?

— Ele puxou meu cabelo e riu da cor dele. Então eu soquei seu nariz.

Luccas suspirava.

— Não pode reagir de forma agressiva a qualquer provocação que te façam.

— Mas foi ele quem começou.

— E você respondeu de forma pior, o que torna suas ações tão ruins quanto as dele.

Era natural que Luccas repreendesse Marie por seus atos. Entretanto, para uma criança como ela, moralidades como aquela não significavam nada diante da ferocidade de seu olhar chamuscado.

— Então se alguém falasse mal dos seus olhos você deixaria passar?

Por um momento, Luccas enrijeceu o corpo em surpresa, o que foi resposta o suficiente para ela.

— Sim, eu deixaria.

— Por quê?!

— Porque eu aprendi a amar isso em mim o suficiente pra não me incomodar com o que os outros dizem. A coisa mais importante, Marie — E ignorando a expressão de repulsa dela, Luccas se aproximou e segurou suas duas mãos, apoiando um dos joelhos no chão para aproximar sua altura da dela. Ele queria evitar, ao máximo, intimidá-la — Não são as coisas que nos afetam, mas como lidamos com elas. Se alguém acusa outra pessoa de algo, isso não diz sobre o acusado, mas sobre o coração do acusador. E, por isso, você sempre deve preservar o que está aqui dentro.

As palavras pareceram acalmar momentaneamente a garotinha, que acompanhou com o olhar a mão direita de Luccas parar logo acima do coração dela. Foi um toque suave, mas como eles se fitavam com intensidade, não a incomodou, como normalmente acontecia.

Marie piscou, o que fez desaparecer a energia que de repente tinha se instalado ao redor dos dois, e ela lentamente se afastou do toque do jovem. Mas ela não o contrariou ou reclamou de nada, apenas desviou o olhar dele, o que foi o suficiente para Luccas dar um sorriso de satisfação e bagunçar seus cabelos.

Depois dessa cena, Marie passou, aos poucos, a deixar seu lado violento de lado, substituindo por uma língua ainda mais afiada e melhorando sua capacidade de se livrar de grandes encrencas.

Não é como se ela gostasse de fazer isso. Depois das conversas com Luccas, Marie de fato buscou mudar. Ao menos, de um jeito que não envolvesse mais o rapaz em seus problemas. Ela não queria lhe dar mais trabalho do que ele já tinha. Mais dores de cabeça.

Enquanto ia ficando mais velha e o mundo adulto começava a fazer cada vez mais sentido para ela, os problemas que o envolviam também passaram a incomodá-la. Embora Luccas sempre dissesse pra ela que estava tudo bem, que as coisas iam se ajeitar com o tempo, Marie conseguia ver por trás do sorriso gentil dele que não era bem assim.

As crises financeiras começaram, e Luccas se viu precisando trabalhar mais. Os bicos que fazia, normalmente, eram o suficiente para sustenta-los nas casas simples que ficavam por pouco menos que dois ou três meses, até viajarem para uma outra cidade ou um vilarejo próximo. Eles não carregavam nada além de alguns conjuntos de roupa e objetos particulares, então estava tudo bem.

Entretanto, com o valor dos consumos diários aumentando e os salários não se igualando, Luccas passou a ficar fora por mais tempo. Ele não permitia que Marie trabalhasse, não até que completasse pelo menos treze anos. Era perigoso demais deixar que a jovem se aventurasse sozinha pelas cidades grandes e fosse levada na ladainha de charlatões. Portanto, para diminuir sua frustração, Luccas permitiu que ela explorasse qual área ela gostaria de se envolver no futuro.

Comprava revistas de profissões e apresentava os trabalhos domésticos ou caseiros, como costura, tricô, chef, dentre outros. Mas, surpreendentemente, Marie se mostrou terrível em tudo que fazia.

Ela era bruta demais para coisas delicadas como a costura, e desastrada demais na cozinha. Também não conseguia ser gentil com as pessoas como atendente ou especialista na limpeza — mesmo em casa, ela sempre dava um jeito de esquecer alguma coisa, ou derrubar algum balde d’água que reduzia seu trabalho pela metade, ou o dobrava.

Marie era totalmente incompetente. E foi por essa falta de habilidades e a descrença em si mesma que fez com que ela sequer fosse capaz de encontrar um hobby. Bem, para uma garota cheia de energia, talvez distrair a mente em algo que não movimentasse o corpo fosse de fato uma complicação.

— Não precisa se preocupar tanto com isso.

— É claro que preciso!

Diante de um Luccas pacífico e otimista, Marie bateu o pé como uma criança emburrada.

— É um absurdo. Digo, como é que eu não consigo fazer coisas tão simples?! É o mínimo a se esperar de uma garota, não?! Ao menos, no fim... No fim, se eu realmente for uma imprestável em tudo, podia apelar pra faxina ou algo do tipo, mas nem isso eu...

Pareciam palavras bastante machistas, mas do ponto de vista da jovem, que tinha acompanhado desde cedo vários que estavam na mesma situação que eles, era esperado que as mulheres pudessem auxiliar ao menos em casa. Se a pessoa não possuísse habilidades em serviços em geral, manter a higiene e cozinhar era o mínimo.

Entretanto, apesar de suas fracassadas tentativas, ela jamais foi boa em nenhuma das duas coisas. A verdade era que, todas as vezes, Luccas era o responsável pela alimentação dos dois, e a limpeza eles faziam juntos — geralmente uma vez na semana. Fora isso, em seu tempo livre, Marie gostava de passar seu tempo, em geral, andando pelos arredores da cidade ou do vilarejo em que estavam, conversando e divertindo-se com crianças de sua idade — e até arrumando certas confusões que geravam ferimentos que ela sempre escondia dos olhos sábios de Luccas.

E, agora, quando ela mais precisava de qualquer habilidade... De qualquer mínimo talento que tivesse a oferecer em troca de dinheiro ou sustento... Marie não possuía.

Um suspiro pesado que escapou dos lábios de Luccas a fez se sobressaltar, baixando os ombros. É óbvio que ele ficaria decepcionado. Nada mais do que natural. Até ela ficaria de cabeça cheia pensando pelo ponto de vista dele, precisando sustentar uma adolescente como ela...

— Quantas vezes eu terei que dizer isso a você?  — Se ajoelhando diante dela, agora ficando na mesma altura que ela, Luccas assim falou ao segurar os dois punhos que Marie cerrava — Pare de se preocupar tanto com essas coisas. Você ainda é jovem demais. Olhe, eu-

— Que conversa fiada! Pára de tentar me consolar, tendeu? Eu não quero ficar ouvindo a mesma coisa! Eu só quero...! Só quero...

... Poder te ajudar! Quero poder te retribuir, em dobro, em triplo, o tanto que me ajudou durante todo esse tempo! Eu só quero... Poder te agradecer de algum jeito!

Sufocando as palavras que não conseguia dizer em voz alta, Marie começou a soluçar, incapaz de secar as lágrimas gordas ou o ranho que lhe escorriam pelo rosto.

— Mas eu não consigo... Fazer nada... Sozinha...!

Luccas fez uma expressão de dor vendo-a falar aquelas coisas, mas pareceu incapaz de dizer algo que a convencesse do contrário naquele momento. Talvez ele tivesse compreendido do jeito errado as ações daquela jovem que só tentava se encaixar no mundo.

Então, ao invés de corresponder seus sentimentos de frustração e tristeza com mais palavras, ele apenas a puxou para um abraço apertado, permitindo que a garotinha se agarrasse nele com força... Como se, caso não o fizesse, ela desabaria no chão ali mesmo.

***

Com as recordações passando uma após a outra em sua mente e as lágrimas que já haviam secado a tempos marcando seu rosto, Marie encostou a testa na barra gelada da cela. Uma febre ardente ameaçava lhe fazer despencar, mas o calor que era transmitido através do botão que segurava com tanta força nas mãos não a deixou perder a consciência. As palavras de força e convicção da garota de cabelos negros, que três vezes não a perdeu de vista, eram sua única base de amparo.

Foi quando ouviu um barulho semelhante a uma tranca se abrindo.

E, por um triz, Marie não desabou no chão devido a porta ter se aberto para o lado de fora. Entretanto, um par de braços finos a recepcionou antes que ela se machucasse, a segurando de forma que garantisse sua segurança, mas não forte o suficiente para demonstrar intimidade.

— ... Vamos sair daqui — Anunciou aos sussurros a jovem de olhos escarlate com longos cabelos negros.



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