Volume 4 – Arco 3
Capítulo 26: Aquele que Ouve e Aquela que Vê
A noite estava bonita. Com as cortinas puxadas, era possível ver o resplendor da luz da lua adentrando pelos corredores do palácio conforme ele caminhava devagar. Poucas estrelas cintilavam no céu escuro, mas era o suficiente para chamar o céu atual de belo. Afinal, não havia sequer uma nuvem espreitando os arredores.
Zero, ainda com as roupas elegantes que recém havia começado a usar, caminhava a passos lentos pelos corredores. Mesmo agora, ainda não tinha se acostumado a elas. No começo, quando se olhou no espelho com aquele conjunto novo, quase deu risada da ideia dada por Sasaki. E quase morreu de vergonha quando, ao sair do provador, o homem caiu na risada, enquanto Diz apenas assentiu seriamente com a cabeça, mas não de um jeito que o tivesse deixado mais calmo.
Maior ainda foi a vergonha quando teve que desfilar até o salão do trono e criar toda uma situação para poder chamar a atenção. É claro que tinha percebido os olhares de descrença e surpresa, e parte dele morreu por dentro quando Sora o encarou com uma expressão neutra, mas ele quase sentiu que o guardião estava morrendo de rir por dentro também.
Zero, relembrando daquilo tudo, esfregou a cara enrubescida e quente rapidamente, tentando recompor-se antes que cruzasse com alguém e acabasse numa situação inconveniente. Ele inspirou fundo então voltou a trilhar seu caminho, focado na lista de coisas que tinha decidido fazer naquela noite.
A parte mais complicada e vergonhosa já tinha ido. Agora, tudo dependia da sua lábia e força de vontade. Foi com isso em mente, tentando reunir a confiança que precisava, que parou no meio do corredor de repente ao escutar um som abafado.
O corredor estava iluminado em tons alaranjados pelas luzes fosforescentes, uma claridade bastante agradável, mas que ainda assim permitiu que ele visse a garota que estava recostada contra a parede com as duas mãos no rosto, encolhida.
Ele a reconheceu na hora.
Concentrada demais em manter a respiração regular, ela nem tinha percebido que tinha alguém por perto. Parecia, pela forma como tinha se ajoelhado e encostado a cabeça contra a parede fria, que tinha simplesmente escorregado até o canto, meio se escondendo nas sombras. O que a denunciava eram os fôlegos que faltavam, a respiração desregular e a clara falta de sentidos.
Suas mãos tremiam. Os ombros acompanhavam a inspiração, então a expiração, sem darem sinal de que se acalmariam. Os cabelos negros recaiam sobre o rosto úmido de suor pelo esforço, assim como as mãos pegajosas que tentavam controlar os espasmos de ansiedade. Não era possível ver sua expressão, mas era bem perceptível que Ryota não estava nada bem.
A visão era turva. Os sentidos, neutros. Mal conseguia ouvir algo que não fosse o próprio coração batendo em descompasso e os próprios pensamentos desconexos.
Era algo que há tempos ela não sentia.
Uma sensação horrível que a assolava somente em um determinado mês, quando os dias contados começavam a dar sinal de vida a partir da maldição que a impedia de controlar direito os próprios sentimentos e memórias. O que a impedia de manter a máscara sorridente de sempre, que a fazia ficar noites em claro sem conseguir dormir por conta do suor e do medo de fechar os olhos. Da profunda agonia do suor e da água, impedindo-a, por vezes, até mesmo de tomar banho de tão aterrorizada.
Já faz um tempo que isso não acontece... Fora de época...
Quando foi rir de si mesma, resfolegou.
Que merda, que merda, que merda, que merda... Justo agora...? Por que essa coisa tem que me atacar justo... Justo quando eu mais preciso...?
Ela provavelmente teria fechado os olhos e apagado de exaustão ali mesmo se um calor não a tivesse tocado timidamente nas costas, a fazendo acordar novamente. Então, esse mesmo toque reconfortante, diferente do frio insensível que a assolava, começou a se espalhar conforme fazia movimentos circulares tranquilizantes.
Ryota não precisou se virar para saber quem era o responsável por tentar acalmar seu corpo através do chi que lhe tocava diretamente e só se deixou levar. Sentiu, aos poucos, o calor assolante de seu corpo diminuir, o que permitiu que ela pensasse com mais facilidade. Ela evitou se concentrar demais no suor que preenchia suas mãos, testa, rosto ou corpo, e mais em respirar.
O frio da parede era confortável. Se não tivesse encontrado equilíbrio, provavelmente teria se esparramado no chão, o que teria chamado muito a atenção pelo barulho. Seria terrível caso um guarda surgisse correndo ou uma empregada, então ela tentou se manter o mais silenciosa possível.
— Como está se sentindo?
Era uma voz com um tom sério, longe de ser calorosa, que por vezes escutava. Quando Zero presenciava — por pouquíssimas vezes — suas crises de ansiedade, ele prontamente sabia o que fazer. Nem mesmo Jaisen sabia que ela passava por aquelas situações. E não pretendia contar, pois provavelmente só o preocuparia com coisas desnecessárias.
Em resposta à pergunta, a garota apenas concordou com a cabeça bem devagar.
— Precisa de água?
Uma sacudida de cabeça na horizontal. Zero nem piscava conforme prestava atenção em seus movimentos estranhamente esforçados.
O rapaz pegou suavemente um dos pulsos dela e o virou pra cima, revelando dedos pálidos e trêmulos. Então, fechou os olhos.
Uma lenta e vagarosa corrente de vento começou a correr através do corpo dela. Não de forma violenta ou exagerada, mas pequena como uma brisa e suave como uma pluma. Ela corria por sua pele e lentamente diminuía a temperatura corporal, ao mesmo tempo em que secava o suor.
Após o que poderia ter sido segundos ou minutos, Ryota o ouviu perguntando em voz baixa:
— Melhor assim?
— … Sim — Sua voz saiu rouca, estranha — Obrigada.
Zero piscou, sem erguer os olhos para o rosto virado para o outro lado dela.
— O que aconteceu?
— O mesmo de sempre, eu acho.
Zero arqueou uma sobrancelha para o tom desgostoso dela sem tirar os olhos do pulso que segurava.
— É melhor voltar para seu quarto logo. Se continuar nesse estado, pode realmente acabar desmaiando.
— Eu estou bem. Já fez o suficiente por mim.
Ryota finalmente voltou seu rosto para Zero e deu um sorriso que mais era um puxão de lábios.
— Olha só… Tô até… Conseguindo ficar de pé…!
— Ei, ei, ei, não faz isso. Aqui — Quando ela se apoiou na parede enquanto tentava se erguer e quase foi ao chão de novo, o rapaz rapidamente a segurou pelos braços e a puxou para mantê-la equilibrada — Se segura em mim.
Ele deu um passo devagar, esperando que a garota descobrisse o próprio ritmo, mas Ryota não se moveu.
— Eu não posso voltar pro quarto ainda. Tem coisas que preciso resolver.
— Ah, é?
Eles finalmente trocaram olhares.
Nenhum sinal de constrangimento surgiu. Apenas uma dura expressão séria, os olhos dos dois refletiam um ao outro.
— Independente do que seja, não vai conseguir fazer as coisas nesse estado.
— Não importa. Eu vou.
— Pra onde?
Ryota enrijeceu o rosto.
Zero fechou os olhos e suavizou a expressão.
— Certo. É algo que precisa ser feito ainda hoje, pelo jeito.
— Desculpa, mas eu não posso te envolver nisso. Não… Agora.
Um sorriso fraco, mas sincero, surgiu em seus lábios.
Haviam muitas coisas entre os dois no momento. E Zero estava ciente que precisava respeitar os pedidos e decisões dela. Apesar disso…
— Falando desse jeito, só vai me deixar mais preocupado.
— Desculpa mesmo — Aos poucos, Ryota tentou se desvencilhar dos braços dele, mas não tinha forças pra isso — Depois, quando as minhas coisas, e as suas, se acertarem… A gente conversa direitinho.
O Furoto assentiu, perfeitamente ciente daquilo.
— Por enquanto, eu preciso… Ugh…
Com certo esforço, a garota finalmente conseguiu colocar força o suficiente nos membros do corpo para que pudesse se mover. Seus pés se fixaram no chão, as pernas, ainda trêmulas, lutaram para sustentar o corpo mole. Entretanto, pouco a pouco, ela se recuperava.
Ryota levou a mão à testa quando finalmente conseguiu se manter em pé sozinha e segurou um arroto com a outra palma livre. Ela estava levemente enjoada, para melhorar sua situação.
— É melhor você ficar sentada por enquanto.
Ryota não resistiu quando ele gentilmente a fez se sentar contra a parede gélida de novo. Estava quente demais de novo, a vista começava a se distorcer.
— Há quanto tempo está assim?
— Uns poucos minutos… Eu acho…
Era difícil se recordar com certeza. Ryota tinha a impressão de que, após sair do quarto de Edward e descer as escadas para o outro andar, seu corpo inteiro amoleceu de repente e ela foi ao chão. Nada em especial doía para dizer se ela de fato havia se esparramado ou machucado em algum lugar, mas provavelmente havia uma contusão surgindo em seu corpo que só perceberia no dia seguinte.
— Por que você está neste corredor, afinal? Somente os líderes são permitidos por aqui.
— Eu poderia… te perguntar a mesma coisa…
— Bem, Furoto ou não, eu ainda sou, tecnicamente, um dos guardiões da duquesa Fuyuki.
Zero respondeu prontamente à pergunta dela balançando os ombros, o que provocou uma risada seca dela. Uma brisa suave começou a circular ao redor dos dois, como um círculo de proteção que permitiu que a respiração da garota fluísse melhor.
— Até onde sei, os guardiões só são permitidos a estarem nos cômodos de seus mestres até um determinado horário. Salvo um ou outro, talvez. Mas, como é você, não acho que esteja indo visitar alguém por algum interesse esquisito.
O rapaz demorou alguns segundos para entender ao que exatamente ela se referia.
— É-É claro que não…! Eu jamais faria algo assim.
As maçãs do rosto dele rapidamente se avermelharam. Ryota riu daquilo.
— Até porque não é como se você tivesse qualquer habilidade nessas coisas.
— Ah, é? Eu sei flertar tão bem quanto você, com certeza até melhor.
É claro que era uma completa mentira. E a expressão de Ryota dizia que ela sabia perfeitamente disso, mas Zero não recuou ou demonstrou incerteza em seu tom.
— Isso eu duvido.
— Não é como se você fosse muito melhor nisso.
— … Será?
O sorriso convencido dele se desmanchou rapidamente quando a garota tocou sua testa com a própria, aproximando os dois rostos sem qualquer sinal de constrangimento, e baixando a voz num tom que instantaneamente baixou a guarda de Zero.
O Furoto se viu engolindo em seco e gaguejando para dizer algo, mas não conseguiu.
Ryota soltou uma risada e se afastou, apoiando as costas na parede para inspirar lenta e profundamente.
— Que horas são?
— Eu suponho que sejam quase onze.
— Merda.
Eu não posso mais ficar aqui. Perdi tempo demais.
Convicta desse pensamento, Ryota ignorou a tontura e as dores e se colocou de pé, ainda bamba e se apoiando na parede. Mas, pelo menos, estava com as pernas minimamente firmes. O suficiente para encarar o próximo desafio daquela noite, e então os próximos. Ela precisava se manter estável, precisava ser a porta voz de todo o plano para que todos pudessem segui-la. Precisava estar forte e confiante para que os outros pudessem confiar nela também.
Ryota piscou uma vez, lutando para manter a vista focada, então começou a andar lentamente. Passo a passo, ela se distanciava de Zero, que permaneceu parado onde estava — após também se colocar de pé.
Então, ela parou.
O rapaz apertou os lábios para aquela ação, dividido entre ir até lá e esperar por algum sinal.
Até que uma voz fraca, um sussurro melancólico, soou dela:
— A verdade é que eu tô com medo. Com muito, muito medo.
Ryota ergueu os ombros, abraçando o próprio corpo.
— Acho que não importa o quanto eu me esforce, quando a maldição se ativa, é impossível lutar contra ela. Me esqueci do quão… Terrível podia ser sentir isso fora de época.
Um sorriso seco surgiu em seus lábios, mas Zero não era capaz de vê-lo.
As palavras de lamento continuavam a timidamente sair de seus lábios:
— Vou te dar um pequeno spoiler. Um único pensamento meu. E vai ser o único, tá legal?
Zero apertou o olhar. Ryota estava disposta a lhe contar um pouco daquilo que estava trabalhando, do objetivo ao qual ela, por alguma razão, parecia se dedicar tanto. Apesar de estar parcialmente ciente do que era, um pouco de nervosismo transpareceu nele a partir dos seus punhos que prontamente se cerraram.
— Agora mesmo, vou fazer uma coisa muito, muuuito perigosa. E, apesar de eu estar rindo desse jeito agora, tô com um medo horrível dentro de mim. Não… Não é só o medo que tá me fazendo tremer desse jeito… — Ryota engoliu em seco, finalmente aceitando aquilo que tanto buscava desviar o olhar — Esse enjôo que me consome, essa frieza que atravessa meu corpo, esses sentimentos que não me deixam fazer nada do jeito que quero, é tudo fruto da minha fraqueza. Da minha falta de capacidade em tentar fazer algo sozinha pela primeira vez, com medo de despencar com todo o peso que preciso carregar. As pessoas que preciso proteger, as promessas que fiz e preciso cumprir, as atitudes e palavras que falei e preciso falar… Acho que tudo isso… Mesmo sendo minha razão pra lutar, vem me sufocando.
Quando ela finalmente deixou aquelas palavras saírem, os sentimentos incompreensíveis finalmente tomaram forma e sentido. O branco que preenchia sua mente era só uma censura que ela mesma impôs a fim de esquecer da própria fraqueza, apenas desejando somar mais e mais pesos sobre si, ignorando aqueles que já carregava.
Mas Ryota esqueceu que até ela tinha um limite. Por mais baixo que fosse.
Ela se lembrou da conversa que tinha tido com Fuyuki e como foi tranquilizador ter alguém ao seu lado, mas, ao mesmo tempo, como ser confrontada pelas suas duras críticas a atingiram. Apesar de ter dado a volta por elas, a duquesa foi certeira em tudo o que disse.
E Edward foi um grande golpe de sorte, também. Quando o príncipe abriu a porta do quarto e a encarou, Ryota quase se dobrou e vomitou ali mesmo. O sorriso e a tonalidade da voz que lutou para demonstrar, as palavras que milagrosamente saíram sem qualquer sinal de nervosismo ou tremor, o corpo que agiu de forma confiante sem sinal do tenebroso frio que invadia suas entranhas… Tudo isso foi um golpe de sorte.
E talvez parte da mentira que ela estava, pouco a pouco, se tornando.
— Quer dizer, mentir sempre foi fácil pra mim. Simular um sorriso e dizer qualquer coisa pra driblar uma situação… Eu costumava fazer isso todos os dias, antes.
Em Aurora, até antes mesmo de Stella falecer, Ryota tinha aprendido que, para manter a sanidade de sua mãe, para ajudá-la a suportar as dificuldades, apesar de querer se encolher para chorar ao seu lado, ela precisava se manter forte e ser seu pilar. Jamais se deixar levar pelas emoções negativas. Ser a pessoa que todos podiam contar a todo e qualquer momento. Um ser sorridente que levanta o astral.
Mas, depois que Stella faleceu, foi difícil. Muito, muito difícil.
Tanto que ela se isolou por quase meio ano em seu próprio casulo antes de ver a luz do sol de novo.
E, desde então, Ryota nunca mais entrou nele novamente.
Só em pequenos e singelos minutos, em dias especiais, em horários e locais onde ninguém podia ver ou ouvir, ela se permitia encolher o próprio corpo debaixo das cobertas ou debaixo do chuveiro e se abrir.
Para evitar que aquelas coisas acontecessem, Ryota lutava contra aqueles sentimentos turbilhantes mantendo um sorriso no rosto e distraindo a mente com alguma coisa diferente: Fosse o trabalho que constantemente se dispunha a fazer, fosse brincar com as crianças do vilarejo, fosse se exercitar…
— … Mas agora é diferente. Agora, não estou somente evitando deixar os outros preocupados comigo, mas carregando a vida, o futuro e a dignidade de outras pessoas em minhas mãos. E isso me assusta.
Haviam vários outros elementos que também a assustavam, como o terror sanguinário do guardião da família real — que, ainda agora, quase podia sentir os olhos escarlate dele a seguindo pelos corredores, a voz fria e cruelmente sedutora sussurrando em seus ouvidos palavras horríveis; os líderes, patriarcas e matriarcas nobres, que observavam cada passo e respiração seu, prontos para usar toda e qualquer informação ao seu favor, o que poderia comprometer não só a ela, mas a Fuyuki, a Zero, aos gêmeos Akai, e tantos outros.
Ryota não teria percebido que estava nervosamente coçando a própria cabeça, os dedos praticamente fincados no couro cabeludo, as unhas fazendo linhas vermelhas na pele, caso duas mãos não tivessem segurado seus cotovelos e os puxado lentamente para baixo, mantendo os braços ao lado do corpo.
— Uh.
Um resmungo de surpresa escapou de seus lábios secos quando os braços do rapaz a envolveram por trás num abraço. O queixo dele se recostou em seu ombro direito, permitindo que Ryota sentisse uma respiração quente e regular em sua orelha.
— Obrigado por ter me contado.
— … Hm.
— O que foi?
— … Sua respiração faz cócegas…
Zero deu um sorriso, ignorando uma pontada de vontade de assoprar a orelha dela apenas para provocá-la, mantendo a expressão calma.
O silêncio do corredor era tranquilizante. A luz da lua iluminava parcialmente os dois. Estavam em um local isolado o suficiente para que ninguém os percebesse à primeira vista.
— É estranho. Só ter falado isso já me deixou um pouco mais aliviada.
— Mesmo?
— Uhum.
Ryota, então, tocou as mãos que a envolviam com as próprias.
— Obrigada por ter me ouvido.
— Sei perfeitamente que vai se sentir endividada em relação a isso. Nem me venha com desculpas depois.
O silêncio dela foi resposta o suficiente.
— Então que tal um pensamento por outro? Pra ficarmos quites.
— Parece bom pra mim, considerando que foi você quem sugeriu.
— Sendo sincero, eu também estou com medo.
Após um suspiro, Zero assim revelou em voz baixa.
— Nesta noite, estou prestes a fazer algumas… Apostas. Negociações difíceis, e que podem custar muito. Não sei se vou conseguir lidar com tudo isso sozinho. Atualmente, enquanto eu não possuir um título ou um mínimo de apoio digno de reconhecimento, minhas ações vão ser inúteis. Se as negociações falharem, se eu falhar… Tudo o que fiz antes, no salão, terá sido em vão.
— Você me assustou um pouquinho naquela hora, sabia?
— … Eu sei.
Ele tinha visto perfeitamente o olhar não muito são, porém assustado, que ela tinha dado a ele quando Zero matou todos os invasores com um único movimento.
— Mas, no fundo, eu sabia que ainda era você. Consegui sentir.
Zero grunhiu um som que foi interpretado por ela como uma concordância ao seu comentário. Ryota não sabia se havia uma razão por trás disso.
— Vai ficar tudo bem. É o que espero, pra dizer a verdade. Espero que fique tudo bem, para todos nós.
Ryota expôs seu maior desejo naquele momento unida daquelas palavras que, por vezes, a ajudavam a manter a calma e pensar.
— O que for pra acontecer, acontecerá. E a gente não pode ficar pensando nesse futuro incerto por muito tempo ou vamos desperdiçar todas as outras probabilidades que nos esperam. Por isso, nessas horas, quando eu tento lidar com minhas inseguranças, eu sempre tento fazer as coisas de uma vez e não pensar muito. Porque pensar só vai me trazer mais problemas, e, caso alguma coisa fora de meus planos aconteça, sempre posso improvisar.
— Isso só funciona porque você está sempre improvisando.
— Que cruel! E eu aqui tentando te consolar! Me arrependi, tchau!
A garota teve seu estilo de lidar com os problemas repelidos e humilhados pelo rapaz sem mais nem menos, o que a fez inchar as bochechas com ar e puxar o corpo pra frente em protesto, mas Zero a segurou no lugar sem fazer força.
— Mas você está certa. Não posso ficar pensando o dia inteiro no que posso ou não fazer.
— Só vai lá, faz e pronto. Pelo menos, depois, não fica se arrependendo de não ter tentado.
— Isso explica o motivo de você estar sempre toda machucada ou envolta de problemas. Sua impulsividade, às vezes, é uma graça, mas pode acabar te levando à ruína um dia.
— Vou gentilmente deixar passar o que você acabou de falar, mas só agora porque meu humor não está no seu melhor momento.
Apesar das palavras suaves de Ryota, que não indicavam nenhuma irritação, ela prontamente pisou no pé de Zero e não escondeu o sorriso de satisfação ao vê-lo xingar baixinho pela dor.
Então, após um instante, ela inspirou fundo.
— Beleza. Acho que tá na hora de ir.
— Precisa de ajuda pra chegar até lá?
— Eu não vou me perder igual na capital não, juro!
— Espera, você se perdeu na capital?
— ... Aaahh, não. Foi só uma brincadeira. Há, há... Há.
Ryota tinha deduzido que não haveria problemas em zombar da sua própria falta de senso e sentido naquele momento para descontrair a nova onda de ansiedade que tentava assolá-la, mas perceber que a situação envolvendo ela e Eliza não tinha sido exposta aos demais foi um erro.
Agora, o rapaz a olhava de forma reprovadora, como se pudesse ver claramente a mentira por trás de suas palavras e sorriso torto.
Com um impulso, a garota se endireitou e saiu dos braços dele. Então, alongou o corpo com simples puxões nos braços e torções de pulsos, pescoço e ombros, sentindo alguns lugares estalarem no processo.
A alguns passos do rapaz, prestes a finalmente ir em direção ao seu destino, ela se viu falando:
— Não precisa se preocupar. Pode ir com tudo. E dá o seu melhor naquilo que for fazer, Zero. Se você ainda estiver hesitando no meio do caminho — Ryota virou um pouco do corpo, o suficiente para que pudesse olhar Zero nos olhos, e bateu no peito com o punho, socando diretamente acima do coração — Se lembra de onde você veio e porque chegou até aqui. Se essas duas coisas ainda são importantes pra você, e um calor queimar no seu coração, então ainda dá pra lutar. É só pisar no acelerador e ir com tudo.
Um sorriso triunfante de determinação estampava em seu rosto assim que aquelas palavras cheias de convicção saíram. Ela não tinha pensado em nada demais ao fala-las, era simplesmente parte de seu pensamento diário. Algo que sempre buscava manter em mente quando hesitava em realizar algum ato.
Como ela mesma havia dito — e Zero havia apontado — Ryota não era uma pessoa que pensava muito. Mas era justamente esse seu lado que a possibilitou fazer tudo que estava ao seu alcance para seu bem e, principalmente, daqueles que estavam ao seu redor.
Apesar de todas as inseguranças, apesar de toda a dor, de todas as palavras cruéis que já tinha dito e escutado, no fim do dia, ela ainda precisaria se colocar de pé e continuar. Se ela assim podia fazer, era porque...
Minha razão pra estar aqui ainda não desapareceu. E, até que esse possível futuro eventualmente chegue, vou continuar seguindo em frente até o fim.
Arrependimentos e dúvidas jamais cessariam. Entretanto, do ponto de vista de Ryota, coisas assim não podiam deixar seu ego se abaixar facilmente. Se você pudesse continuar andando, se pudesse continuar seguindo em frente, era o suficiente.
Talvez fosse aquela mentalidade que atuava como alguém que deveria ser de aço, capaz de suportar tudo e ajudar a todos, era o que a fazia sofrer tanto. Mas, se fosse, e daí?
— Você talvez possa não acreditar muito em si mesmo, agora. Lembro vagamente de você me dizer, certa vez, que queria ser reconhecido. E, pra que isso acontecesse, você continuou se esforçando todos os dias, apesar de ninguém ter visto seus esforços. Ainda que você não fale muito sobre, Zero, eu... Meio que consigo imaginar como deveria ser.
Ryota tocou delicadamente num tópico do qual o rapaz evitava conversar, assim como ela também tinha os seus. A reação de Zero foi apenas um completo choque momentâneo, como se realmente não esperasse que ela falasse daquilo. Talvez ele sequer se lembrasse que tinham conversado a respeito de seus pais há tantos e tantos anos atrás. Sobre como, mais do que todos, Zero tinha se esforçado para ser reconhecido pela família, mas eles jamais o olharam. Ela lembrava vagamente das lágrimas que escorriam pelo rosto pálido do garotinho amargurado naquele dia.
Mas, tal qual em seu aniversário, quando ele foi capaz de fazê-la mudar, ao menos um pouco...
— Mas eu quero que saiba de uma coisa.
Ryota tinha se encolhido um pouco ao perceber o desconforto do rapaz em relação ao tópico, então suavizou o tom e se aproximou.
— Eu acredito em você.
Os olhos prateados que refletiam a figura da garota sorrindo gentilmente pareciam brilhar quando ela segurou suas mãos em frente ao corpo.
— Da mesma forma que você acreditou e me escutou durante todos esses anos, quero que saiba... Que eu também acredito e vejo você. Por isso, não precisa se preocupar, porque vai ficar tudo bem. Eu tô aqui por você, também.
Zero não demonstrou nenhuma outra reação além da pura surpresa, e se manteve assim ouvindo-a falar. Mesmo quando as lágrimas escorreram por seu rosto e Ryota as enxugou com uma das mãos, ele não se moveu.
A garota, então, apertou suas mãos novamente sobre as dele e depositou um beijo cheio de carinho e consideração nelas. Em seguida, fez questão de olhá-lo novamente nos olhos e sorrir.
— Eu vou lá.
Finalmente acordando dos próprios pensamentos, o rapaz piscou uma vez para conter as lágrimas e assentiu.
Então Ryota, ainda com um sorriso, deu meia volta e desapareceu virando no corredor a passos naturais, porém confiantes, deixando para trás um rapaz que desistiu de lutar contra as lágrimas e o sorriso de genuína felicidade em seu rosto.