Volume 4 – Arco 3
Capítulo 21: Nas Sombras, Uma Mão Quente Me Guia Até a Luz
O cômodo era um pouco escuro demais para enxergar pequenos detalhes, e para uma visão meio turva, acompanhada do franzir de testa constante que estava fazendo, Ryota não estava exatamente “enxergando”.
Era meio difícil não manter-se daquela forma depois do que tinha acontecido. Lidar com a dor ainda alucinante da queimadura em seus braços, que a fazia ver estrelinhas, e as constantes batucadas em sua cabeça era quase insuportável. Tinha a sensação de que a temperatura ambiente tinha caído consideravelmente, e linhas de suor escorriam por sua testa e costas. Terrível, era simplesmente terrível.
A respiração não estava exatamente ritmada, também. Ela lutava contra a vontade de simplesmente parar de inspirar ar para seus pulmões de uma vez. Engolir em seco, devagar, a garganta seca como se não bebesse água há dias, parecia tão desconfortável quanto.
E Ryota continuaria meio zonza, confusa com o que estava vendo e fazendo, alheia à tudo que lhe era dito, se uma mão macia não tivesse lhe segurado pelo antebraço e levado-a para longe de todas aquelas luzes e vozes.
Ela foi colocada para sentar de um jeito tão leviano que acabou encostando-se contra a parede e escorregando até o chão, as palmas das mãos suadas demais para enxugar o rosto, para tentar fazer tudo aquilo por conta própria.
Estava mais escuro, bem mais escuro. O que era ótimo.
Então silêncio.
Um silêncio agradável, permitindo que relaxasse. Uma meia escuridão, que lhe deixava fechar os olhos por um momento sem se preocupar com quem estava ao seu redor, nem com o que falavam a ela.
Podia pensar com calma. O calor que emanava de sua cabeça parecia corroer seus pensamentos, mas, aos poucos, ela conseguiu estabilizar a respiração e entender tudo o que tinha acontecido. O que havia feito, o que havia presenciado... O que tinha se deixado fazer, ouvindo uma voz tão cruel e fria que parecia vir do próprio diabo. Ordens ao qual seu corpo obedeceu, então sangue quente espirrou em suas mãos...
Quase teria esfregado freneticamente as palmas contra a roupa ao lembrar-se do ocorrido, de como sentiu o líquido quente escorrer por sua pele da mesma forma pegajosa que o suor. Mas se conteve, inspirando profundamente várias vezes.
— ... Quer um pouco de água?
Após o que pareceu uma eternidade de silêncio e solidão, uma voz bastante familiar fez a pergunta num murmúrio. Ryota quase se deixou cair em posição fetal ao ouvi-la. Foi um misto de alívio por saber que ele estava bem ali ao seu lado, assim como em todos os seus momentos difíceis, mas também de nervosismo, por não saber ao certo o que responder ou como lhe explicar a situação.
— Seria... Bom.
A voz, que mal parecia sua de tão baixa e rouca, assim respondeu. Passos se aproximaram, então a figura se ajoelhou diante dela, tão perto que podia sentir a respiração dele contra sua testa. Passou-se um momento antes que ela pudesse erguer o rosto, piscando várias vezes para focar a visão do rapaz à sua frente.
— Não tenho uma garrafa comigo dessa vez, então farei do jeito antigo. Vai ser um pouco estranho no começo, mas tenho certeza de que vai saciar sua sede.
Zero falava num sussurro tão gentil que ela quase chorou. E por um nó se formar em sua garganta, ainda sem entender direito, apenas assentiu ao que ele disse.
Um feixe de luz que atravessava a cortina clareou parte do rosto de Zero, fazendo parte de sua íris prateada cintilar como um lago quando uma aura azul lentamente pintou os arredores da pupila. Como fragmentos da cor, e logo Ryota percebeu que nada mais era que parte do reflexo das pequenas gotículas de água que flutuavam na palma aberta dele.
Uma expressão de surpresa foi o suficiente para que o rapaz desse um riso seco.
— Certo. Agora abra a boca. De preferência com a língua um pouco pra fora, por favor.
Ryota fez uma careta, mas percebendo que não havia qualquer traço de malícia ou brincadeira nas palavras, apenas fez como foi dito.
As gotículas de água que pairavam na mão dele, mais semelhantes a bolhas, flutuaram até dentro de sua boca, e com um pequeno estalo, se desfizeram na quantidade certa para um gole d’água. Assim que engoliu, molhou os lábios secos e expirou.
— Já tá bom. Muito obrigada.
Assim como simplesmente desfazia ventanias com um suave movimentar de dedos, Zero igualou o movimento para que as bolhas desintegrassem no ar, como se se unissem à atmosfera.
— Já posso te perguntar o que está fazendo aqui?
Ryota riu com o nariz, a garganta coçando.
— Demorou pra fazer essa pergunta...
Zero sentou-se, cruzando as pernas. Percebendo que não poderia mais ficar abraçando os joelhos daquele jeito, a garota dobrou as pernas para o lado e finalmente permitiu-se olhar diretamente para o rapaz. Não pôde evitar de se surpreender com o novo visual dele. Com o ar mais sério que emanava de suas roupas, embora o restante parecesse exatamente o mesmo.
Zero riu quando Ryota arqueou as sobrancelhas.
— Caraca... Você tá... Diferente.
Ele abriu os braços, balançando as mãos. Como se desse de ombros para esse detalhe pouco perceptível.
— O inverno aqui na capital me pegou desprevenido. Então imaginei que seria o momento ideal para... Você sabe. Me desapegar das minhas roupas antigas.
— Mas elas eram tão legais...
— Estão guardadas no meu quarto.
— Vai jogar elas fora?
Ele pareceu considerar a pergunta por um momento, então baixou o queixo.
— ... Não. Ainda não.
Esse pequeno momento de hesitação não foi compreendido pela garota, que estava alheia aos conflitos internos dele. Ao que Zero ainda pretendia lhe contar. Em partes, foi bom, pois não precisaram insistir em um assunto bastante atormentador para ele, e retornaram para a primeira pergunta:
— E então? Se estou bem lembrado, você nunca foi de usar coletes assim — Zero movimentou as mãos como se alisasse um colete invisível, então apontou o dedo indicador para o cabelo dela — Amarrado? Que raridade. Não sabia que ele já estava longo o bastante pra poder amarrar.
— Eu... Tentei mudar. Um pouco.
Um pouco sem graça pelo foco da conversa se voltar pra ela, e incomodada com a dor de cabeça que seria explicar tudo, Ryota enrolou a mecha que estava caída do lado direito de seu rosto. Os olhos do rapaz acompanharam o movimento.
— Acho que a ideia não era bem um disfarce, nem nada, até porque não foi uma mudança grotesca. Talvez, se eu pudesse mudar um pouco por fora, poderia tentar fazer o mesmo por dentro. Por mais besta que isso soe...
— ... Não. Eu entendo, de verdade.
Mudar o visual não era só uma questão de estética, para se enquadrar na situação em questão que precisariam enfrentar. Mas também para poder se auto incentivar a fazer o que deve ser feito. Isso se valia tanto para Ryota quanto para Zero, embora as circunstâncias fossem diferentes.
— Ao contrário de mim — Ryota coçou a bochecha — Você pelo menos ficou com um ar mais maneiro. Eu, por outro lado, pareço uma vaqueira perdida.
Zero riu tapando a boca.
— Nossa, é assim que você se vê?
— É a única coisa que consigo pensar quando me olho no espelho. Parece uma fantasia de mal gosto.
Se bem que estou usando uma fantasia para interpretar um papel de mal gosto.
— Bem, olhando de longe, realmente parece uma vaqueira. Que acabou de sair de um abate.
— … Não precisava desse complemento.
— Só faltou o cheiro pesado de leite e as botas ficarem sujas com lama.
Zero tapou o nariz e abanou o ar com a outra mão, fazendo Ryota inflar as bochechas. Percebendo que isso não interromperia suas risadas, ela o cutucou com o pé.
— Seu besta.
— E então?
— O quê?
— Não vai me contar como veio parar dentro do palácio de Hera, como próxima guardiã do príncipe herdeiro?
Um gosto amargo em sua boca a fez torcer os lábios, e Ryota recuou um pouco o corpo. O clima divertido se desfez.
— É uma longa história.
— Estou disposto a ouvir.
Ryota riu, balançando os ombros de um jeito carinhoso, mas sem conseguir olhá-lo de volta.
— ... Você sempre está.
Um instante de silêncio se passou. Passos e vozes, antes altas e em larga escala, foram diminuindo consideravelmente até que somente pudessem escutar um ao outro dentro do cômodo.
Zero estreitou os olhos para ela, inclinando um pouco o corpo.
— ... Não me olha desse jeito — resmungou Ryota, sentindo o peso das íris prateadas sob ela.
— Não posso evitar. Você é muito linda.
Considerando a conversa que tiveram apenas alguns segundos antes, a garota duvidou com veemência das palavras dele. Até que a firmeza delas se estabeleceu, então o constrangimento subiu ao rosto dela como um vermelhidão nas bochechas e nariz.
Ela o chutou de novo.
— Você veio atrás do Albert?
A pergunta direta a atingiu, e Ryota travou por um momento. Ela tinha se encostado de lado contra a parede, apreciando o toque gélido dela contra a sua têmpora quente.
— Sim, eu vim. Mas as coisas saíram um pouco do controle. Não... Quero dizer... Eu acabei deixando elas chegarem a esse ponto — Zero aguardou que ela continuasse — Conheci duas pessoas na capital. Bem, não dá pra dizer que fiz amizade com elas, nem nada assim, mas... Elas pediram por ajuda durante a coroação.
— E você concordou — adivinhou ele.
— É. E daí...
As memórias se deslocaram para a cena das celas, e a garota apertou os olhos.
— ... E daí prenderam uma dessas pessoas aqui, mas acabei me envolvendo e... Bom, depois de algumas coisas, me encontrei com o príncipe.
— Sinto que algumas partes importantes da história foram puladas.
— Elas não importam — disparou Ryota, no tom mais agressivo que já se ouviu falar com ele. Mas, então, ela baixou a voz de novo — No final das contas, eu... Acabei me envolvendo com Edward.
— Por quê?
— Porque sim. Porque eu decidi fazer isso, então vou fazer até o final. E isso não é da conta de nenhum de vocês.
Zero não pareceu ofendido, uma vez que a fala não era direcionada somente a ele, mas sim à todos da família Minami. E não era como se aquilo soasse como uma ameaça, de toda forma. Era perceptível que ela tinha seus próprios motivos para fazer aquilo. E, caso Fuyuki e Sora tenham percebido exatamente o mesmo, a decisão mais sábia, e que respeitaria seus desejos, seria a de apenas ignorar o fato de terem se conhecido anteriormente e seguirem como se nada anormal tivesse ocorrido.
Apesar disso, lá estava Fuyuki umas horas depois, ajudando a garota a lidar com um trauma que a paralisou no chão. E aqui estava ele, agora.
— Ryota, vo-
— Eu sei que fiz merda, tá? Por mais que doa um pouco meu orgulho, sei que fiz besteira não seguindo os conselhos da Fuyuki, ou as coisas que a Liz me falou no hotel. E que foi besteira ter entrado nisso tudo, ter me envolvido onde não devia... Eu sei. Não precisa puxar minha orelha por isso, porque me arrependi. E... Muito.
Ela esfregou o rosto com as mãos, ainda suadas, e que provavelmente continuariam a suar por um bom tempo até que finalmente se acalmasse de verdade. Expirou entredentes, ainda incapaz de olhá-lo nos olhos. Sua boca já estava seca de novo.
— Não precisa se preocupar comigo. Eu vou resolver isso sozinha, dessa vez.
Ryota colocou toda a força que conseguiu reunir naquela última frase, orando pra que saísse convincente. Que soasse como a garota de esperanças falsas que sempre foi, torcendo para que tudo o que falava fosse real. Que tudo desse certo no fim, e que estava tudo bem.
Mas estava na cara que Zero não tinha acreditado nem um pouco nela.
E isso a assustou muito.
Naquele momento, ela odiou que alguém a conhecesse tão bem ao ponto de poder lê-la com um simples olhar. Era desconfortável, e, naquela situação, agonizante. Ryota sabia perfeitamente que isso acabaria acontecendo quando se encontrassem, quando ela precisasse resumir sua situação à ele.
Fuyuki provavelmente não se aprofundaria muito em perguntas, ou talvez interpretasse à própria maneira as coisas. Com sorte, ela acabaria entendendo tudo no final, e não a forçaria a admitir nada. Sora e Kanami eram do tipo extremo, ou sabiam de tudo, ou não sabiam de nada. E, naquela situação, Ryota não achou que eles fossem se importar o suficiente com o quanto de tudo do que ela diria era mentira. Não importava para eles, de qualquer forma.
Eliza... Bem, ela provavelmente ficaria magoada. Por mais que no quesito “independência” elas pudessem se aconselhar, pudessem se entender, não era o momento.
Por mais que Zero não pudesse ler mentes, ela sabia que ele podia ler suas emoções. O que era tão ruim quanto.
— Mas acho que não sou a única que anda tomando umas decisões radicais...
Ela se permitiu olhar para ele, mas não encará-lo.
— Eu esperava ser o único, para ser honesto.
Ryota o indicou com o queixo para exigir que se explicasse.
Por um instante, a garota teve certeza de que o rapaz não iria falar nada.
— ... Decidi reivindicar o que é meu por direito.
Ela arregalou um pouco os olhos.
Então o fitou.
— Me tornar o lorde Furoto.
— V-Você...
— Sim. Eu vou.
— Mas... Por quê? D-Digo, isso é algo bom, é claro. Mas tão de repente...
Zero baixou os olhos de um jeito calmo, pensativo. Mas que provavelmente escondia pensamentos aos quais ele não planejava compartilhar.
— Não foi de repente. Muitas coisas aconteceram nas últimas semanas... E eu percebi que, caso não fizesse algo, eu acabaria me abandonando. É difícil de explicar, e não acho que seja pertinente colocar isso pra fora quando você está ocupada com seus próprios problemas. Já faz um tempo que venho tentando entender algumas coisas, e só pude fazer isso de verdade quando você partiu.
— Então eu realmente estive sendo um estorvo...
— Não é isso.
— Tá tudo bem, Zero. Eu sei o quão chata sou, o quão egoísta é minha própria visão de mundo. Meio que já esperava ser uma grande incompetente em tudo o que faço por conta própria, e que você também devia passar um pano forte pra mim...
Igual agora. Estou me lamentando sozinha, de novo. É tão automático que me dá nojo.
— ... Fico feliz que tenha conseguido mudar.
Ryota não queria, mas pensou facilmente em como ela sempre esteve sendo algo que provavelmente o puxava para baixo. Por mais que ele não pensasse assim, era como as coisas eram.
Ela tinha desejado que Zero buscasse a própria felicidade. Que não vivesse grudado nela para sempre. Não que fosse algo ruim — ela queria, mais do que tudo, ficar para sempre junto de sua família. Mas um pedaço dela sempre se corroía quando percebia o quanto ele se desprendia das possibilidades da própria vida, do quanto se dedicava mais aos outros do que a si.
Então, se a sua partida tinha sido o gatilho para ele buscar isso... Qual era o problema? Ryota deveria ficar mais do que feliz por ele. Deveria abraçá-lo, parabenizá-lo, e buscar apoiá-lo a todo custo, assim como sempre fizera por ela.
Entretanto, por alguma razão, ela só conseguia ficar olhando para as próprias mãos suadas de olhos arregalados. Com gordas lágrimas preparadas para escorrer a qualquer momento. Um sorriso largo estampava sua face. Ela estava feliz por ele. Muito. Então, precisava sorrir, não é?
Ryota se colocou de pé num pulo e avançou para fora do cômodo escuro. Precisava de ar fresco. De um motivo para se colocar em movimento. Podia fazer alguns aquecimentos e esquecer tudo. Ou pensar melhor. Assim, não precisaria chorar na frente dele pela milésima vez.
Mas uma mão forte a segurou pelo pulso antes que sequer desse um passo na direção da luz.
— Me solta.
— Você está errada.
— Me larga.
— Você não é um estorvo, Ryota.
— Mentira!
O grito cortante dela pareceu silenciar o castelo.
— Mentira, mentira, mentira! Eu sei que você tá mentindo! Eu sei quando você mente, Zero! E eu também tô mentindo agora! Nós mentimos um para o outro o tempo todo, sabia? Como dois idiotas que ficam correndo atrás um do rabo do outro, sem conseguir fazer nada sozinhos! E aí! E sabe o que acontece? Sabe o que acontece, Zero?!
Ela se virou pra ele, as lágrimas escorrendo por seu rosto como uma cachoeira.
— Pessoas morrem! É. Pessoas morrem, e eu nunca faço nada pra ajudar elas. Pessoas pedem a minha ajuda, mas são elas que se sacrificam por mim! Pessoas se machucam, e eu só consigo ficar assistindo. Toda. Santa. Vez. Nada dá certo. Nunca. Não importa o que eu faça, nunca funciona. Só piora tudo. E eu não consigo mais suportar essa situação, esse lugar, essas pessoas... Não suporto. Eu não te suporto! E, mais do que tudo, eu não me suporto mais!
O punho dela tinha se fechado com tanta força que os nervos saltavam de suas veias. Os olhos vermelhos, as lágrimas de remorso escorriam vez após vez, sem parar. Ela trincava os dentes, a respiração entrecortada raivosa. Revoltada.
... Então ela sorriu. Um sorriso dolorido, forçado. Uma amostra de dentes.
— ... Mas tá tudo bem. Sempre precisa estar tudo bem. Porque, se não estiver, alguém vai ter que fazer alguma coisa pra mudar isso. E eu não quero. Não quero dever um favor ou retribuir a ajuda de ninguém. Não quero que ninguém faça nada, nada, por mim. Não mais. Nunca mais. Por isso, vou resolver tudo sozinha. Se der tudo errado, se eu desandar, se eu enlouquecer, se eu morrer... Pelo menos estarei sozinha. Não vou levar ninguém comigo. E então vai estar tudo bem.
A voz, aos poucos, se tornou um murmúrio fervoroso. Palavras de convicção voltadas para si mesma, para convencer nada além de si mesma, jogadas como lâminas na cara do rapaz, que ouviu aqueles sentimentos podres em silêncio. Um pedaço corroído dela.
Ryota puxou de novo o pulso.
— Me solta.
Ela parecia um animal agora. Rosnando para ele, para seu amigo, seu companheiro, sua família... Para seu...
— Não.
— Eu falei pra-
— Já disse que não! Quantas vezes vou precisar repetir pra você entender, cabeça oca?!
Era a primeira vez que ele erguia a voz de verdade na conversa. E, também, a primeira vez que brigavam daquela forma.
— Eu vou te queimar se não me soltar agora.
— Então tenta.
O aperto não doía, e ele estava segurando a uma distância considerável da queimadura horrível que cobria seus braços. Mas, ainda assim...
Um movimento rápido foi o suficiente para afastá-los. Ela sabia que ele desviaria do chute no ar, e, por consequência, largaria sua mão. Zero até poderia tê-la segurado pela canela, se esta não estivesse queimando quando passou por um triz de sua cabeça. Deu dois passos para trás, sem qualquer arranhão.
Uma troca de olhares. As lágrimas tinham secado completamente quando a temperatura se elevou em seu corpo, afetando, também, o clima ao redor. Ryota deu meia volta ainda com a testa franzida quando ele avançou.
Foi fácil defender-se da mão que veio segurá-la, mas então eles estavam lutando. De mãos limpas, sem armas, por mais que a garota não conseguisse suportar a constante queimação que lhe subia pela garganta e atravessava sua pele, a fazendo suar ainda mais, queimar cada vez mais rápido... Mas, então, seus chutes e socos eram recebidos pelas palmas eretas dele, que desviavam os ataques e relaxavam um pouco seu corpo.
Zero tinha concentrado uma quantidade de ar considerável dentro do cômodo e trabalhava para abaixar a temperatura ambiente. Sua pele também estava fria propositalmente, para que, quando a tocasse, pudesse resfriá-la. Chiados eram ouvidos quando palma tocava punho — chiados de algo quente tocando uma solidez fria.
— Faz tempo desde a última vez... Que lutamos assim — comentou Zero, num sorriso contido, mas sem receber retribuição — Você melhorou muito.
O rapaz deu um grunhido quando defendeu um chute no alto, desta vez, tendo doído. Um sinal de arrependimento manchou a expressão de raiva da garota por um momento, mas logo sumiu.
— Senti falta disso.
A mão dela agarrou facilmente o braço esticado dele, então virou-lhe o corpo contra a parede, puxando para trás o outro braço também. Zero bateu a bochecha contra a solidez, então fez uma careta quando um pé chutou-lhe as costas, e ali permaneceu.
— ... Acabou.
Ele riu.
— Ainda não.
— O qu-
Ryota teve seu campo de visão virado, então caiu de costas, tossindo. Ela nem viu o movimento. Antes que pudesse se erguer de novo, os dois pulsos foram presos acima da cabeça, e um par de joelhos a impediu de se debater para sair.
Não teve outra opção a não ser olhá-lo. Ela se forçou a manter o contato visual, não baixar a guarda ou demonstrar rendição. Havia um fogo frio nas íris azuis, que queimavam de forma cruel. E, então, tinha o sereno par de olhos prateados que recebiam aquele calor e o acalmava, devagar. Estavam arfando, perto demais um do outro.
— Aquele chute doeu.
— Bem feito.
Zero fez uma careta, sentindo uma ardência leve na maçã do rosto. Um vermelhidão marcava seu rosto do lado esquerdo.
— Vai me escutar agora, sua chata?
— Demorou demais pra começar a falar, insuportável.
Ele franziu a testa, e baixou a voz.
— ... Você estava certa. Sobre estarmos mentindo o tempo todo. Foi uma das coisas que acabei percebendo quando partiu para a capital.
Ela se remexeu debaixo dele.
— Por dez anos, estive mentindo pra você. Para o que acontecia ao meu redor. Mas, principalmente, para mim mesmo. Então tomei uma decisão. Decidi que ia te deixar.
Ryota congelou. Pareceu até parar de respirar.
— Achei que seria a melhor alternativa. E, por um tempo, foi mesmo.
A garota, não suportando aquela expressão calma, soltou à força o braço direito e lançou-lhe uma cotovelada no rosto. Zero rolou para o lado, e, agora, Ryota o prendia contra a parede, sentando em seu colo para mantê-lo parado.
Uma gota de sangue emergiu de uma das narinas, escorrendo até o lábio superior.
— E aí? Continua, vai — desafiou ela, com um sorriso, ainda meio arfante. Percebendo que ele ficaria em silêncio, o agarrou pela gola — Tava tudo ótimo, né? E daí? O que aconteceu depois?
— Eu percebi que estava errado.
— Então veio correndo pra cá, vestiu uma roupinha bonitinha e posou na frente da corte? — riu ela. — Uma desculpa bastante conveniente pra justificar essas mentiras.
Igual à mim.
— Na verdade, foi o contrário — Zero tocou as mãos que lhe puxavam a gola — Eu vim porque cansei de mentir — Ele lentamente soltou os dedos flexionados, sem tirar os olhos dos dela. À uma distância que tocavam na testa um do outro, levou as mãos até os cabelos dela, desprendendo o amarrado quando os próprios dedos se enrolaram nos fios, segurando-a com carinho — E porque te amo. Te amo porque, mais do que qualquer outra coisa que eu pudesse desejar no mundo, percebi que você é a minha felicidade. Estar ao seu lado é tudo o que mais quero, e estou pouco me fodendo pro que os outros falam. Te amo porque você mostrou a luz pra mim quando nada mais fazia sentido. Eu te amo desde o dia em que me procurou só pra me levar pra comer na sua casa. Eu amo todas as coisas que fala, cada sorriso seu, cada toque... Amo tanto que às vezes quero gritar.
Como se um grande peso fosse tirado do seu peito, Zero suspirou então permitiu que as lágrimas escorressem pelo rosto, unindo-se às da garota, que seguiam lentamente.
Ryota soluçou, perdendo completamente o fôlego quando seus lábios tocaram os dele.