Volume 4 – Arco 3
Capítulo 19: Desenlace do Confronto Cruel
Em algum ponto do longo combate, Fuyuki, ciente de que não deveria estar envolvida, se afastou para perto das paredes, dando espaço para Sora brilhar. Às vezes, por questão de suporte, ou apenas por pura vontade, ela criava camadas supérfluas de gelo no chão para fazer os inimigos escorregarem, ou criava finas paredes para que eles batessem contra elas, ficando atordoados, apenas para serem encurralados por algum guardião de passagem.
Sangue manchava o chão e as paredes. Um sangue vermelho quente, de pessoas vivas, sejam lá quem fossem. Não era possível ver seus rostos. O que deveria ser bom, pois tornava a matança um tanto imparcial, vendo pelo lado positivo. Se é que havia um lado assim em assistir um enorme genocídio, pois claramente os invasores não estavam no patamar de nenhum deles ali. Pareciam mais pessoas comuns, que tinham certa experiência com espadas ou lutas, mas nada capaz de salvá-las de um corte na garganta, de um estripamento...
Fuyuki voltou os olhos para os Akai, aqueles que matavam sem pensar duas vezes.
Então, para o outro lado, para Al-Hadid e seu guardião Jamal, que lutavam de costas um para o outro. O lorde, com um sorriso de animação na face, parecendo em êxtase conforme seus golpes, praticamente feitos somente com as pernas, acertavam as cabeças e troncos, algumas vezes, dependendo da intensidade, matando instantaneamente, fosse pelo golpe, ou simplesmente pela decapitação feita com o próprio corpo. O que era, no mínimo, assustador, considerando sua expressão de animação.
Já seu braço direito usava todo o corpo em combate, mas, ao contrário do mestre risonho — e que não parava de falar —, Jamal era silencioso e demonstrava clara irritação no rosto, talvez costumeira, por ter que lidar com aquelas situações complicadas e cansativas. Uma veia saltou em sua testa quando o lorde gritou em seu ouvido alguma coisa sobre o combate, e ele finalmente resolveu dar um mata leão nele, não que tivesse resolvido, e Al-Hadid não pareceu brabo com isso, apenas divertido.
Foi só após passar os olhos para o guardião de Juan Over, Isaac Basalto, que com seu corpo forte e aura pesada derrubava os adversários várias e várias vezes, envolvido por uma luz avermelhada que a duquesa associou ao elemento Huo, que apenas Shin não havia levado um guardião. Desde o começo, ele estivera sozinho, e nem se dava ao trabalho de demonstrar algum incômodo.
Talvez isso não o incomodasse, de toda forma. Pelo seu porte, arrependimento era a última coisa que passava por sua cabeça. O velho parecia completamente ignorante quanto ao combate, mas, por alguma razão, uma parte dele parecia... Um tanto vangloriosa? Não quanto à ele, em especial, pois estava parado ao lado dos demais nobres, sem dizer uma só palavra, seus olhos fechados, como se não se importasse com nada daquilo. Entretanto, havia algo estranho...
Foi só então que Fuyuki percebeu.
Shin Akai não estava se vangloriando, mas ostentando o próprio poder. Ou melhor, o de sua família. Um clã de assassinos que dava um show no salão do trono, imparáveis, sem qualquer dificuldade ou remorso enquanto sangue banhava suas roupas e lâminas, máquinas de matar, ignorando os sons de corpos caindo. Sequer precisavam se esforçar, nem ativaram suas habilidades especiais para a chacina que faziam perante os olhos do monarca e seu filho.
Não que eles parecessem incomodados, muito bem pelo contrário. Assistiam a cena de seus tronos, os braços apoiados ao lado, tranquilos. Seus guardiões também lutavam, e agora, uma sexta pessoa havia se juntado ao combate, pois quando o corpo de alguém se cravou contra a parede do outro lado do salão, um arrepio percorreu as costas de Fuyuki. Os olhos de todos passaram para a garota que, até então, estava parada, talvez meio em choque, ao lado da realeza. Ela desceu os degraus lentamente, estalando os dedos e as demais articulações, girando pescoço e ombros. Então flexionou os joelhos, como se estivesse prestes a fazer um alongamento, e sumiu.
Não, ela não sumiu.
Fuyuki conhecia aquela técnica. Embora não fosse idêntica, pois um som de explosão partiu de onde ela estava, então como um foguete, desaparecendo da linha de visão, deixando um rastro de luz e calor por onde passava, a guardiã surgiu no meio de toda a confusão.
Ryota abriu os olhos azuis, que brilhavam forte, e pousou no chão, os pés fazendo o piso afundar na aterrissagem nada gentil. O terreno todo tremeu, desequilibrando o campo de batalha por apenas um momento, as atenções todas voltadas para o novo elemento, que, conforme acertava com os punhos a orelha de um, chutava no estômago para quebrar as costelas de outro, queimava com a pressão exercida, mandando os indivíduos para longe.
Não era só uma questão de força bruta, ou de uma pequena parcela de experiência em lutas. O controle de chi dela tinha melhorado muito desde a última vez. Havia, também, um equilíbrio maior na forma com que investia nos golpes imbuídos de calor e pressão, que aqueciam e derretiam roupas e peles. Nos murros manchados, nas rasteiras e chutes velozes, nas esquivas mais sábias, no cuidado de escutar e antecipar os passos.
Ela tinha tido algum treinamento. Outro, além do que recebera em Puccón.
Em tão pouco tempo... Ela...?
Os invasores caiam rapidamente, e, em pouco tempo, estavam quase todos no chão. Em alguns momentos, Ryota passou ao lado e acabou lutando de costas contra Sora. Com uma quantidade muito menor de inimigos, eles se moveram bem demais para derrotá-los, sincronizando os golpes de um jeito muito melhor que da última vez em que lutaram juntos. Se o assassino estava impressionado, não demonstrou, e eles apenas trocaram acenos com a cabeça, seguindo caminho.
De volta para perto dos tronos, Ryota deu um olhar para cima, de costas. O príncipe baixou seu olhar para ela. Então sorriu. Devagar.
Ela não soube interpretar aquilo.
Fanes evitou seus olhos. Era possível perceber claramente sua insatisfação. Provavelmente, por saber que a garota escolhida pelo filho não era uma completa incompetente, como devia esperar. Ou torcer.
A guardiã falsante desviou, ainda olhando para eles, quando uma mulher baixa avançou contra seu corpo, caindo aos seus pés, apenas para voar de costas contra uma parede quando recebeu um chute na face, derrubando a espada que empunhava. Ryota deu um chute para o lado na arma, a fazendo deslizar pelo chão sujo.
— Chega — falou ela, a voz mais rouca e seca do que devia estar. — Se renda agora e não precisarei te machucar.
Franzindo as sobrancelhas de um jeito que esperava ser ameaçador, Ryota implorou para que a mulher obedecesse. Quase todos os invasores ou estavam mortos, ou eram presos, amarras prendendo seus pulsos após serem devidamente revistados.
A mulher se manteve em silêncio. Então riu com a garganta. As mãos, ao lado do corpo, ficaram inquietas, os dedos alisando o chão.
— Terminou?
— Quase.
Ryota não se virou para Miura, que se aproximou e parou ao seu lado, mas o cheiro podre que emanava dele dizia tudo. Não queria nem pensar em quantas vidas haviam sido perdidas por suas mãos. Aquela faca de mão dupla... Só de olhar para ela, tinha calafrios.
— Não temos mais tempo.
— Eu sei, não precisa me dizer. Preciso de uma corda.
Miura franziu as sobrancelhas para ela.
— O que foi? Se formos levá-los para as celas, então-
— Mate-a.
Um zumbido ensurdeceu seu ouvido.
Ela tinha escutado aquilo direito?
Ryota empalideceu, e sua voz saiu meio chocada quando gesticulou:
— ... Por quê?
— Ela é inútil para nós. Livre-se dela.
— Como assim inútil?! — Miura se virou para a espada no chão — Vocês não vão tentar... Ah... Tirar informações deles, ou algo assim?
Ryota não queria falar a palavra “torturar”, pois isso fazia seu estômago se revirar. As memórias logo puxavam sua visão do ocorrido com Marie, então uma raiva quente inundava seu coração só de lembrar quem era a pessoa que estava ao seu lado.
E ela não podia se dar ao trabalho de fazer as coisas darem certo apenas na base da emoção. Mas, também, matar alguém por um motivo daqueles era...
— Era o plano.
— E então?
— E então — Com um chute, ele fez a espada voar no ar e a pegou com a mão — Descobrimos do jeito mais difícil que eles não podem ser interrogados.
— ... Como é?
Ele desceu seus olhos afiados para a mulher no chão, que continuava parada, os dedos alisando o solo devagar, então ergueu a espada, refletindo a si mesmo na lâmina lisa. Limpa. E nova.
Miura semicerrou os olhos e abriu a boca para falar. Mas foi interrompido com um grito perto dali. Vindo de um grupo reunido. Dentre eles, Fuyuki, que se sobressaltou ao ver algo.
O assassino não a impediu de correr até lá para descobrir o que havia acontecido. Ryota passou pelas pessoas, ignorando sua falta de modos ao empurrar outros guardiões, e ficou de pé diante dos dois invasores presos. Estavam com os pulsos e pés amarrados, sentados no chão e recostados contra a parede, cercados.
Dos lábios de um, uma linha de sangue escorreu, ou parecia ser, pois ela atravessava a máscara e descia por seu queixo, então pelo pescoço. Então outro rastro, mais grosso, mais quente, uma última vitalidade, provavelmente vindo das narinas. Os ouvidos também se manchavam em vermelho, o líquido escorrendo pela pele e pingando na roupa preta.
A duquesa, ajoelhada diante de um deles, provavelmente após falar algo, ou tentar fazer algo, engoliu em seco, ainda assustada com o que via, embora lutasse contra os calafrios, antes de aproximar timidamente a mão do peito dele. Talvez tocar no pescoço não fosse exatamente higiênico, no momento.
— ... Está morto.
— Morto?
— O coração dele parou — respondeu ela à Ryota, que cerrou os punhos ao lado do corpo.
— Como isso aconteceu? Como...?
— Tínhamos os amarrado há pouco tempo.
A voz baixa, mas sempre direta e fria, de Sora soou ao seu lado. Ela não se incomodou em se virar, pois ainda observava a cena à sua frente. O companheiro mascarado do que havia morrido estava completamente parado, em silêncio. Não parecia nada triste, sequer incomodado ou preocupado, com o que tinha acontecido com o outro, ou com o que aconteceria com ele dali pra frente.
— Assim que os cercamos e prendemos, decidimos interrogá-los. A mestre tentou dialogar com ele, entretanto, o cretino se recusou a responder qualquer uma de suas perguntas. Permaneceu em silêncio. E não pareceu nada assustado com as ameaças que fizemos. Nem ele, ou... Esse outro — O assassino indicou com a cabeça o outro homem sentado, com uma expressão de nojo tão explícita que ele parecia capaz de chutar a cara dele a qualquer instante — E então, de súbito, ele... Começou a rir.
Um arrepio percorreu as costas suadas de Ryota. Teve um ímpeto repentino de querer correr de volta até Miura, mas se deteve. Suas pernas formigaram com a decisão.
Sora baixou o tom de voz, até que se tornasse um murmúrio em seus ouvidos.
— As risadas dele foram ficando mais e mais altas. Quando perguntamos o motivo dele estar rindo, ele engasgou. Seu corpo começou a se agitar, como se estivesse tendo um ataque de pânico, ou algo assim.
— Um ataque...? — Ryota tinha sussurrado de volta.
Ele assentiu, olhando-a de esguelha. Um olhar que quase pareceu um toque frio.
— Através do Instinto Assassino, consigo enxergar suas alterações físicas e emocionais mais fortes. O sangue dele tinha começado a ferver, seu coração disparou, então ele começou a passar os dedos pelo chão, como se tentasse arranhá-los — Ryota não tinha se lembrado apenas da outra mulher, mas também de uma outra reação terrível que presenciara certa vez. Quando um homem que se importava muito foi fisicamente ferido, mas sofreu mentalmente de tal forma que era como se estivesse sob uma tortura agoniante. Ainda se lembrava dos gritos de Jaisen, e de Nessa, daquele dia. — Avisei-a a respeito, e a duquesa tentou dizer algo, mas... Já era tarde demais.
Sora, de braços cruzados, fincou as unhas na pele. De frustração, percebeu ela.
— Ele se matou?
— Não sabemos — Fuyuki se deu ao trabalho de erguer o tom de voz, chamando a atenção dos outros guardiões próximos. De Isaac e Jamal, que estavam de guarda, para apoiá-los, mas em silêncio perante o julgamento e discussão entre eles. A duquesa se virou para Ryota, franzindo a testa, então baixou os olhos verdes — Acho quase impossível que alguém possa cometer suicídio dessa forma. Não sem um gatilho forte o bastante.
— Não foi só uma parada cardíaca — Apontou Jamal, seriamente — Essa quantidade enorme de sangue... Parece que algo interno foi danificado. Talvez seja um veneno?
— Seu coração foi esmagado.
As palavras de Sora fizeram todos soltarem um grunhido de surpresa. As íris vermelhas dele, que normalmente não possuíam vida alguma, agora brilhavam com uma insanidade familiar. E que arrepiava os pêlos do braço da garota ao lado.
— Tem certeza?
— Se o Sora diz, então é verdade — disparou Fuyuki — O que mais foi destruído? Algum sinal de que seja um kiai? Ou alguma habilidade desconhecida? Algum rastro de chi?
Seja lá o que Sora via através de seus olhos, ele apenas franziu a testa e balançou a cabeça, ao que a duquesa suspirou.
— Então parece que teremos que lidar com você — Fuyuki se voltou para o outro homem mascarado, até então, ignorado e em silêncio.
— Por favor, senhorita Minami, espere — Ao menos Jamal, ao contrário do mestre, parecia ter bons modos. — É perigoso demais arriscar um interrogatório. Não sabemos o que causou o suicídio, pode até ser que seja voluntário.
— ... Para evitar que informações sejam vazadas — completou ela, baixinho.
Uma risada seca veio do homem. Ryota prendeu a respiração, e enrijeceu o corpo quando sentiu o homem sorrir.
— Perceberam tarde demais... — Ele tossiu. Merda. — ... Nosso trabalho está feito, e não há nada a ser compartilhado com vocês. Hah... — Outra tosse, mas mais... Molhada, como se engasgasse com algo. Merda, merda, merda. As palavras ecoavam pela mente de Ryota.
E o que ela tinha feito em seguida surpreendeu até a si mesma.
Talvez foi o medo de presenciar um suicídio lento, porém brutal. Alguém tirar a própria vida sem demonstrar qualquer remorso ou dor. Ainda mais por trás de uma máscara... Uma maldita máscara, que lhe trazia lembranças terríveis. Principalmente à Fuyuki, que, para seu crédito, fazia uma careta de dor, mas que ninguém reparava.
Ou talvez tenha sido por pura curiosidade que a garota deu um passo à frente e estendeu a mão. Para arrancar a máscara do homem.
E revelar... Um rosto. Normal. De um homem de meia idade, os olhos sem vida, os lábios secos, rachados, mas ganhando cor. O tempo tinha parado naquele momento. Em parte, porque Ryota ignorou as vozes em protesto ao seu ato impensado. Mas também porque ela viu lentamente uma mistura de tons claros ganhar vida no rosto dele. Mais, e mais, como se emergisse de dentro pra fora... Um sorriso. Largo. E tão conhecido, tão bizarro, tão recheado de memórias horríveis do inferno que Ryota congelou no lugar.
E não pôde desviar da explosão que emergiu dele.