Volume 12 – Arco 4
Capítulo 68: Uma Segunda Chance
Era o primeiro outono desde que havia partido de Aurora — um longo ano após o fatídico dia que engatilhou diversos outros acontecimentos em uma cascata sem fim em sua vida.
Caminhando devagar, seus passos lentos faziam os pés afundarem na areia. A sensação era confortável, como se a praia pudesse abraçar sua pele e confortá-la do longo trabalho sustentando seu corpo até ali.
Ao lado, o cheiro de sal e maresia fazia seus pulmões respirarem fundo. O ar inalado atravessava as vias com facilidade, dando a impressão de que estava em profundo relaxamento. O choque das ondas gentis contra sua canela fazia cócegas, apenas a levando para mais perto do oceano.
A brisa balançou seus fios, e Ryota, que carregava os sapatos nas mãos, andando descalça pelos grãos da areia molhada, apreciou o silêncio da praia. Uma trilha de conchas beirava a costa, solitária e bela. Seus olhos deslizaram para o horizonte, através dos mares azuis reluzentes sob a luz do entardecer, para a linha preta que mal se podia ver daquele ponto.
O Mar Sombrio permanecia intacto, como se sequer existisse. Embora todos sigam suas vidas dia após dia, era impossível se esquecer da ameaça que espreitava as terras de Thaleia. Talvez fosse por isso que as pessoas, temendo uma falha no trabalho dos seladores, ou apenas evitando encarar a ameaça todos os dias, se mudaram para o mais próximo possível do centro do país, afastando-se e evitando o toque da água.
Não à toa que a capital real era populosa. A multidão de humanos quase explodiam dos meios de transportes e de dentro das lojas. Ao contrário de Celestia, cuja cidade continha mais visitantes do que moradores locais, criando um ciclo agradável para o comércio e entretenimento.
A Baía de Dione, por outro lado, estava abandonada. Se esta foi a razão para que a Maga Veridian a tivesse escolhido como o recanto ideal para formar um esconderijo, não sabia. Entretanto, conforme atravessava o caminho na direção da muralha de rochas, as memórias do último encontro com a mulher de cabelos negros como a noite eram revividas.
Ainda era como se lembrava — o local onde encontrou-se com Kuro e, posteriormente, com Gê. Parecia que fora há muito mais tempo, mas o bolo que prendia na garganta permaneceu tão apertado quanto antes. Estava tensa, era visível a qualquer um. Ela hesitou em se aproximar, permitir que fosse vista e sentida. Na verdade, temia que Gê tivesse se conscientizado de que sua moradia não era mais tão segura ou discreta, e ido embora após a interação anterior.
Percebendo a hesitação nos dedos duros, uma pequena mão segurou a sua. De imediato, o calor fez Ryota lembrar de que não estava à sós.
— Estou aqui, não precisa ter medo.
A presença de Dio era reconfortante. Da vez anterior, rejeitou e o afastou, mas a decisão de Ryota em trazê-lo consigo foi motivada por três pontos muito importantes.
O primeiro era, obviamente, em respeito à viagem anterior. Trazê-lo consigo era uma das maneiras que encontrou para demonstrar sua confiança no garoto. Caso contrário, não apenas cometeria o mesmo erro de afastar alguém cuja vontade de ajudar era explícita no par de olhos brilhantes, mas também o magoaria.
E isso era algo que jamais desejava repetir.
O segundo motivo foi simplesmente porque Ryota se viu na obrigação de explicar sua situação para ele. Não que Bellatrix ou Alexandre estivessem alheios das informações, pois havia contado sobre como chegou até Celestia, quais eram seus interesses por trás e como passou seu tempo dentro do Instituto Gnosis.
As explicações foram rasas e quase sem embasamento, mas aceitáveis. Ao menos, seus dois amigos não fizeram questionamentos. Dio, por outro lado, era um pouco diferente deles. Embora demonstrasse a mesma crença nas palavras de Ryota, havia algo a mais que o impulsionou a segui-la.
Suas memórias sobre uma das provações ao qual esteve presente permitiu à Ryota concluir que ele era um aliado formidável. Sua inteligência o permitiria não apenas compreender os pensamentos dela sem a necessidade de expô-los de maneira crua e nua, como também auxiliaria durante a discussão.
Parecia tolo confiar em uma criança quando estava para negociar sobre um assunto tão importante, envolvendo a vida de tantas pessoas. Entretanto, Ryota não estava plenamente confiante de si para achar que seria capaz de fazê-lo sozinha.
Ao mesmo tempo, não era apenas sobre sua inaptidão e falta de experiência na área.
— Obrigada.
Apertando a mão, Ryota sorriu um pouco e respirou fundo.
O terceiro motivo era o que poderia acarretar no segundo — a mágoa e fúria que Ryota retinha por Gê.
Este foi o gatilho que causou a falha não apenas do acordo, como da própria conversa entre as duas mulheres. O primeiro reencontro foi longe de agradável, e sua fúria despertou, cegando-na de seu objetivo principal.
Agora, não podia evitar de sentir medo. A ansiedade por desconhecer o tipo de reação que teria vendo a curandeira era assustadora, mas, ao mesmo tempo, havia uma grande chance de seu segundo encontro com ela ter estragado qualquer chance que tivesse para iniciar uma nova conversa de maneira adequada e educada.
Com as palmas suadas, inalou ar uma segunda vez. Seus dedos estavam tensos e trêmulos, difícil de serem escondidos. Por alguma bênção, tirou a sorte grande de ter Dio ao seu lado. Às vezes se perguntava o que faria sem ele, ou qualquer uma daquelas pessoas que a apoiaram nos momentos que importavam.
Quero fazer o mesmo por eles. Não posso falhar.
Motivada pelo arrependimento, constrangimento e calor das mãos unidas, a dupla acompanhada de um pequeno filhote entre os fios dourados se aproximou da muralha.
Antes que pudesse enunciar a sua chegada, seus lábios congelaram ao abrir quando um movimento surgiu. O mundo se distorceu, as sombras derreteram como que feitas de um material gelatinoso e macio. Quando piscou, Ryota percebeu que uma figura atravessava as rochas, usando as sombras como porta de passagem.
Podia reconhecer aquele rosto pálido e sombrio em qualquer canto. Um sorriso tenso e constrangido surgiu em seu rosto quando gaguejou um cumprimento.
— O-Oi… Há quanto tempo, Kuro.
Os olhos de cores violeta deslizaram na sua direção, tão frios quanto se lembrava. Roupas e cabelos pretos cobriam o corpo jovem, abraçando a silhueta magra e frágil. Desta vez, entretanto, não houve surpresa em seu olhar, apenas uma ligeira cautela. As pálpebras se apertaram para a voz que ecoou vazia no espaço entre eles.
Kurogane — ou Kuro — sabia que estavam a caminho. Era por isso que não expressava nada além de desconfiança, uma recepção longe de ser calorosa. Entretanto, o que Ryota esperava, exatamente? Ameaçou e tentou atacar uma pessoa que provavelmente era importante para o garoto. Embora não tivesse pessoalmente nada contra ele, suas conexões com a Maga Veridian eram claras.
Antes, a havia chamado de uma maneira… Como era mesmo?
— Eu vim para conversar com a sua mãe.
Caso lembrasse corretamente, certa vez ele a chamara assim. Precisava admitir que Gê e Kuro eram semelhantes, mas a relação compartilhada não era de grande importância para ela na época. Agora, quando parava para refletir com mais calma, tinha de reconhecer a insensibilidade de suas palavras.
Quando não houve menção de resposta por parte de Kuro, que permaneceu encarando-na com frieza, como se sequer a conhecesse, a dor da culpa apertou seu coração, como se pudesse esmagá-lo.
A pequena mão ao lado lhe direcionou um aperto. Silencioso, Dio apenas a lembrou de que não estava sozinha. Respirar e olhar para Kuro pareceu apenas um pouco menos doloroso quando suavizou as feições em uma expressão cabisbaixa.
— … Sinto muito pela maneira como me comportei antes. Fui imatura, agressiva e fria. Estou arrependida.
Ryota esperava que ele pudesse reconhecer a honestidade de suas palavras, fosse através da voz frágil e trêmula, do corpo trêmulo ou do olhar suplicante.
Novamente, silêncio. Apenas as ondas acalentaram o clima pronto para se partir, banhando a praia com a água.
— Reconheço que guardo ressentimento por ela. Não posso evitar.
Balançando a cabeça gentilmente para os lados, Ryota expôs mais das próprias emoções. A sinceridade era o ponto-chave aqui. Precisava reconquistar a confiança perdida.
Soltando cuidadosamente os dedos pequenos, deu um passo adiante. Então outro, e mais um. Devagar, se aproximou de Kurogane, cuja figura apenas diminuía com a proximidade, mas sem mudar a postura defensiva e distante.
— Por favor, Kuro… Eu imploro para que me permita conversar com sua mãe. Por favor, por favor…
Parando a uma distância de quase dois metros, Ryota murmurou para o garoto. Ela caiu de joelhos na areia, afundando o corpo encolhido em uma prostração. Neste ponto, não era sobre engolir orgulho, mas reconhecer as próprias falhas e consertá-las. Ryota não tinha vergonha de demonstrá-la, mas pavor da rejeição que podia receber daquelas pessoas que tanto precisava.
Era o esperado, não poderia culpá-los caso não quisessem mais qualquer contato com ela. Fora a única culpada por destruir a oportunidade de gerar uma negociação justa. Mesmo que fosse com alguém que tirou a vida de seu avô, que era igualmente importante para ela…
— Eu imploro… Me ajude a salvar as pessoas que amo. Eu… Não quero perdê-los novamente. Estou disposta a negociar por qualquer coisa.
Uma jogada arriscada. Nas vezes anteriores em que colocou em cheque toda e qualquer oportunidade para comprar o favor de outrem, os resultados não foram tão favoráveis. Mas aquela Ryota não existia mais, hesitar não era uma alternativa.
Outro minuto de silêncio se passou, mas ela não ergueu a cabeça. A prostração começou a fazer suas costas e pernas doerem, mas não era nada perto de tudo o que as pessoas que queria salvar poderiam estar sofrendo agora. A dor não era um empecilho que iria impedir Ryota de alcançar seus objetivos, não mais.
O som de passos na areia surgiu e ficou mais alto conforme se aproximava. Pela distância, localização e profundidade do som, sabia que não era Dio, muito menos Kuro, que tornou a quebrar aquela cena dramática na praia.
— Vejo que retornou, filha da luz.
Outrora, não parou para pensar a respeito, mas a voz familiar da mulher que parou diante de sua cabeça também a apelidou desta maneira. De uma maneira ou de outra, Gê e Sofia estavam mesmo conectadas. A fazia se questionar se a curandeira estava ciente da verdadeira identidade por trás da reitora de Gnosis.
— Erga a cabeça, por favor.
Instigada pelo pedido, Ryota lentamente sentou-se de joelhos na areia. Então, arriscou um olhar para cima, não direção da mulher inexpressiva que conversava com ela.
Gê, uma das maiores curandeiras de Thaleia, também conhecida como Maga Veridian, estava parada ali. Depois de quase cinco meses de diferença, quase nada em sua aparência havia mudado. Os mesmos cabelos curtos e olhos pretos com ar de exaustão, o mesmo braço esquerdo faltando na altura do cotovelo, as mesmas vestes pretas com o cachecol pendendo do pescoço — aquele que Kuro havia comprado na capital, há tanto tempo atrás.
As duas se encararam por o que pareceu uma eternidade. Ryota sentiu a respiração prender, o coração errando as batidas com o nervosismo. Seu peito doeu com as memórias do que as ações daquela mulher causaram em sua vida, o quanto perdera e como foi afetada desde então com a morte do avô, Albert.
No passado, nas duas vezes em que se encontraram, apenas a rejeitou e explodiu em fúria. A mágoa e o luto não a permitiram parar um segundo para se acalmar, ou refletir sobre o quanto suas emoções eram um empecilho para a negociação.
Agora, não apenas elas eram controláveis, como Ryota foi capaz de não demonstrá-las. Embora ainda sentisse irritação e desprezo por Gê, o que era inevitável, era capaz de pensar com mais clareza e, portanto, expressar-se também.
Calada, permitiu que a curandeira a observasse. Os olhos negros como a noite mais profunda sem estrelas recaíram em seus cabelos com mechas brancas, nas roupas, no olhar. Era uma análise cuidadosa de uma mulher cuja profissão era cuidar de pessoas, de prezar a vida — embora tenha tirado uma com as próprias mãos.
Era um padrão diferente de Eliza, cujos poderes eram usados unicamente para proteger e salvar. Por algum motivo desconhecido, entretanto, a Maga Veridian não hesitou em tomar a vida de Albert.
Reconhecendo o ressentimento silencioso nas íris azuis, Gê não se pronunciou. Ao invés disso, como uma pena, ela abaixou-se no nível de Ryota, apoiando um dos joelhos na areia da praia. Aquilo pegou Ryota desprevenida, e ainda mais choque passou por seu rosto quando sentiu o toque na mandíbula. Os dedos da curandeira eram dóceis, como se ousasse se aproximar de um animal ferido e com medo, para conseguir sua confiança.
A aproximação deixou os dois garotos tensos. Assistindo, Dio tentou permanecer tão calmo quanto possível, embora parte dele temesse o tipo de reação que a intimidade da curandeira poderia gerar. Desviando o olhar, reparou que Kuro provavelmente pensou o mesmo, mas a preocupação estava direcionada à mulher perto de Ryota. Era um olhar de afeto que conhecia muito bem.
— Estou aliviada.
De repente, a voz de Gê irrompeu no silêncio. Era baixa e gentil, como as ondas do mar que abraçavam a praia, mas compreensiva ao ponto de manter Ryota de olhos bem abertos.
— Eu temia que as trevas pudessem recair sobre seu coração, e partir-se para sempre. Entretanto, vejo que não foi o caso.
Afastando os dedos, a curandeira colocou-se de pé com um movimento fluído. Então, uma fagulha de sorriso apareceu em seu rosto.
— Ouvi seu apelo, e aceito a proposta. Acompanhe-me, discutiremos em um lugar mais privado sobre os termos da contratação.
E nisso, tão simplesmente quanto apareceu, Gê virou-se e caminhou para longe de Ryota. Esta, que ainda estava um pouco espantada com a reação de boas-vindas, lentamente se ergueu também. Em menos de um segundo, a mão dela foi alcançada pela de Dio, que correu para parar ao seu lado.
— … É só isso?
Os passos da curandeira cessaram quando a voz rígida de Ryota questionou, voando através da brisa do mar até seus ouvidos.
— Você-... A senhora não está com raiva de mim?
Por um momento, Ryota corrigiu a falta de educação nas próprias palavras. Sua formalidade e paciência eram necessárias para que aquela conversa fosse possível. Se Gê a recepcionou com tamanha calma, o mínimo que poderia fazer era se permitir o mesmo.
— Estou ciente de que fui irresponsável, rude e violenta. Quero redimir meus atos e palavras de antes.
Não que a tivesse perdoado por ser a fonte desses sentimentos, mas Ryota queria garantir que nada se colocaria como uma parede entre ela e seu objetivo. A negociação precisava ser limpa, longe de sentimentalismos, ou ficariam presas no passado para sempre.
— Eu-
— Isso é desnecessário.
Antes que pudesse prosseguir com o lamento, Gê a interrompeu. Ainda de costas, com um Kuro que parou próximo à Mãe, ela prosseguiu:
— Nunca se repreenda pelas próprias emoções, ou negará a si mesma. Estive preparada para receber seu ódio desde o começo, e nunca me senti mal por tal.
Ryota se calou. Assim como no primeiro reencontro, a curandeira agiu com tamanha gentileza que quase partiu seu coração. Em partes, houve a desconfiança, mas também o alívio. Era estranho que a pessoa que tomou a vida de alguém tão importante demonstrasse tamanha consideração.
Por que você não me odeia também?
Se Gê, por qualquer razão, detestava Albert e o matou, deveria fazer o mesmo com seus entes queridos ou parentes, certo?
— Destilar rancor contra os próximos de seu desafeiçoado seria imaturidade de minha parte. A sua existência nada está relacionada aos pecados daquele homem.
Como se tivesse lido sua mente, a curandeira continuou a falar ainda de costas. Ela era firme como uma rocha, tão certa de si que Ryota quase a admirou por tamanha ousadia. Afirmar tais coisas sobre seu avô, por um instante, a fez queimar de irritação, mas rapidamente se acalmou com um suspiro discreto.
O passado de Albert era um completo mistério. Embora Sofia tivesse lhe contado alguns poucos detalhes a mais, não foi o suficiente para deduzir o tipo de papel que ele tivera na vida de outras pessoas. Enquanto razão e emoção travavam uma batalha dentro de si, Ryota baixou a cabeça.
— … Venha comigo, minha criança.
Ao silêncio dela, a curandeira tomou a dianteira para continuar seu trajeto, atravessando o portal de sombras e desaparecendo. Após respirar fundo uma vez, trocou olhares com Dio, que acenou em concordância, e foram atrás da Maga Veridian.