Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 12 – Arco 4

Capítulo 69: O Conforto da Ignorância

Atravessar o portal de sombras não foi uma experiência muito diferente de quando usavam os selos de teletransporte. O mundo era distorcido por uma fração de segundo antes de retornar à normalidade, dando a impressão de girar em 360º. Não era à toa que nas primeiras vezes em que tivera a experiência, ficou enjoada ao ponto de querer vomitar até as entranhas.

Mas agora, Ryota não sentiu nem uma fagulha de desconforto. Conferindo pelo canto do olho se Dio estava bem — que sorriu em uma confirmação silenciosa —, a dupla chegou ao local onde haviam sido guiados.

Pelas altas paredes e o teto de madeira manchado, parecia uma construção antiga. O cheiro de petricor invadiu suas narinas, e ela se virou a tempo de ver as gotículas escorrendo pelas grandes janelas quadriculadas. Uma chuva agradável caia do lado de fora, em um local cuja vista alcançava apenas algumas árvores de uma floresta fechada, como que abraçando todo o espaço.

Onde estamos?

Não era necessário muito para perceber que haviam sido mandados para longe da Baía de Dione. Atrás deles, o portal de sombras havia encolhido até desaparecer após a passagem de Kurogane, que chegou um pouco depois da dupla de convidados. Caminhando à frente, gesticulou com o queixo para frente, na direção da porta dentro do cômodo semelhante com uma sala de descanso.

— A Mãe está esperando.

Diferente de Gê, o garoto era menos caloroso para guiá-los. Aquilo tirou um sorriso discreto de Ryota, parecia que Kuro ainda era o mesmo depois de tanto tempo. A confortava em seu âmago que não havia indiferença em seu rosto, apenas a frieza característica de sua personalidade introvertida. Provavelmente, não tinha tanta experiência como anfitrião, mas estava aprendendo.

— Obrigada.

Com um murmúrio, a dupla de mãos dadas caminhou para fora do cômodo. Ao longo do caminho, foram recepcionados por diversos corredores rentes ou paralelos cheios de vozes alegres de um lado para o outro. Embora fosse uma construção de madeira rústica, com móveis de tons claros e discretos, a decoração era um tanto quanto colorida.

Diferente do que Ryota esperava, encontrou nas paredes e chão desenhos feitos com giz de cera, cartolinas com nomes escritos em caligrafias tortas, flores em vasos e um cheiro adocicado de chocolate vindo de algum lugar. Seus passos faziam a madeira ranger, mas era firme o suficiente para correr sem se preocupar em se machucar. Na distância, ecos de gritos e risadas alegres invadiram seus ouvidos, bem como de outros tons, mais maduros mas igualmente contentes, que falavam uns com os outros.

 — Sinto muito em não tê-los acolhido corretamente. Como podem ver, estamos todos ocupados.

Para sua surpresa, a voz da curandeira soou ao lado, e Ryota a viu andando ao seu lado a menos de um metro de distância. Em algum momento, ela havia dado a volta e os acompanhado, deixando que Kurogane fosse na frente.

— Onde estamos?

Após engolir em seco, Ryota conteve o misto de sentimentos estranhos que a percorreu e tomou a decisão lógica de permanecer com uma conversa casual e respeitosa. 

Aquilo pareceu agradar Gê, que suavizou as feições finas.

— Por diversas causas exteriores, minha presença nunca se mantém fixa em um único lugar. Entretanto, como uma curandeira, meu trabalho é requisitado de tempos em tempos, então Kurogane me auxilia emprestando-me seus poderes para viajar através do país.

A dificuldade para encontrar a Maga Veridian ganhou um sentido. Antes, procuraram-na diversas vezes, mas as tentativas foram falhas. Ela não estava escondida, ao menos não diretamente. 

Era impressionante que, em especial, as habilidades com sombras de Kuro fossem grandes o suficiente para transportar não apenas pessoas, mas também uma casa tão grande quanto aquela. Haviam andado por alguns minutos e ainda não chegaram à sala de reuniões. Além disso, as vozes paralelas vinham de todos os cantos, enchendo o espaço de vida e calor.

— A senhora mora com sua família?

Se arrependeu de imediato em fazer uma questão tão íntima, pois o rosto de Gê ficou levemente sombrio. Antes de poder se desculpar, entretanto, a curandeira disparou:

— Não… Se estiver se referindo aos meus parentes de sangue, todos se foram há muito tempo. 

Um arrepio percorreu a coluna de Ryota, e ela hesitou em dizer que sentia muito. Ainda não se sentia tão confortável para se importar com Gê, mesmo quando se mostrou tão compassiva.

Ao invés disso, mudou levemente de assunto.

— Então, são outros curandeiros que trabalham aqui? 

— … Estão chegando.

Ryota olhou para a curandeira sem entender a resposta murmurada, apenas para notar duas coisas. A primeira foi o sorriso leve que surgiu em seu rosto normalmente distante; a segunda foram uma chuva de passos apressados pelo corredor quando um mar de crianças apareceu. 

— A Mãe voltou!

— Bem-vinda de volta!

— Mãe! Mãe! Olha, eu desenhei você!

— Mãe! Ele rasgou meu desenho!

— Me dá um abraço! Lancha com a gente!

Estupefata, Ryota parou de andar e deu um passo para trás. As crianças, de todos os tamanhos e cores, apareceram desesperadas e jogaram-se na curandeira. Ao invés de incômodo com os toques, abraçados, vozes sobrecarregadas e risos altos, o olhar de Gê tornou-se caloroso como o primeiro sol depois de um longo inverno.

— Queridos, não desobedeçam as madames. Lembram do que eu disse antes?

— Siiim!

— Não pode roubar o que é do outro!

— Blé, mas ele tava me copiando.

— Acalmem-se, por favor. Vamos, peça perdão, e esqueçam isso. Tenho certeza que os dois desenhos estão maravilhosos. Minhas crianças são muito talentosas.

A interação não parou por aí. As outras crianças, cerca de dez delas, rodearam Gê e conversaram por o que pareceu alguns minutos. Os sorrisos em seus rostos eram tão genuínos que uma dor latente apertou o peito de Ryota, refletindo na mão que segurava.

— Moça…

— Eu estou bem.

Mesmo assim, seu sorriso não era tão sincero. Em nenhuma das suas possibilidades imaginadas havia vislumbrado aquela Gê, a mulher que tão cruelmente tomou a vida de seu avô, seria tão amada e bem recebida. O calor daquelas pequenas vidas, dos corpos pequenos alegres que pulavam uns sobre os outros, das peles que alguns demonstraram ter cicatrizes antigas, lembraram-na de memórias passadas tomadas pelo fogo.

— … São os pacientes da Mãe.

A voz de Kuro surgiu baixa e discreta ao pé do ouvido. O garoto caminhou para perto de Ryota, parando ao seu lado, e descreveu a cena que certamente a tinha deixado confusa.

— Todos eles?  

— A grande maioria foi resgatada ou abandonada. Todos aqueles que perderam suas famílias, encontraram o fatídico destino da perda ou estiveram à beira da morte, foram adotados pela Mãe. 

As íris violetas, normalmente desacostumadas com o contato visual, cruzaram com as azuis dela.

— Este é o orfanato que ela gerencia em seu tempo livre.

Foi como um soco no estômago. 

Um arrepio desconfortável percorreu seu corpo enquanto assistia as crianças se acalmarem, controladas pelas palavras de Gê e algumas outras mulheres que apareceram para socorrê-la. Eram as empregadas e os tutores, que da mesma maneira gentil, guiaram os pequenos para longe da curandeira, sem atrapalhar em seu trabalho.

As vozes ensurdecedoras continuaram ecoando pelos corredores e salas mesmo quando se afastaram, deixando Gê para trás, acenando com sua única mão. Ryota observou toda a cena em silêncio, seu olhar preso no rosto dócil daquela mulher, sem saber o que sentir ou pensar.

***

A Maga Veridian convidou Ryota e Dio a se sentar no sofá macio conforme se aprumou diante deles. Uma das funcionárias terminou de servir os aperitivos, o cheiro de chá e café mesclados apresentava à sala de reuniões uma agradável recepção. 

Desde que chegou ao orfanato, sentiu que algo estava errado. Ou melhor, era diferente. A construção espaçosa para acomodar todos os funcionários, médicos, curandeiros em treinamento e, claro, as mais de cinquenta crianças, era o suficiente e muito mais para sustentá-los.

Indubitável era o financeiro daquela mulher. Ainda que seus gostos fossem refinados, nada disso era refletido em sua aparência singela e simples. Seu comportamento era digno de nota, mantinha a postura e sabia ler o ambiente — nada menos digno de uma das maiores curandeiras da atualidade.

Ryota não tocou na comida. Apenas assistiu quando Dio beliscou os biscoitos de chocolate e ofereceu algumas gotas para Lion, que resmungava em seu colo, manhoso. Kurogane permaneceu impassível, mas sempre observadora, Gê ofereceu um dos pães de mel que chamavam a atenção do garoto. 

Ele nada disse quando aceitou o doce, desviando o olhar em constrangimento. Provavelmente, não gostava de ser visto em refeições por pessoas que não fossem próximas, mas resistiu à tentação de se virar para permanecer ao lado da Mãe. Em guarda, pronto para defendê-la caso necessário, embora sequer fosse necessário.

Gê era uma combatente impressionante. Havia visto pouco de suas habilidades, mas tudo o que ouviu falar através de fontes confiáveis relataram sua aptidão para o campo de batalha. Seja curando ou lutando, nada faltava ao seu tato e conhecimento.

É óbvio que seja tão requisitada… 

Os curandeiros eram, por natureza, pessoas respeitadas. Poucos conseguiam trabalhar ao ponto de despertar a capacidade da cura através do chi, sem o uso dos conhecimentos médicos padrões. Muito menos se via raridades como Gê, que era ainda mais impressionante do que Eliza e Sasaki juntos.

Talvez fosse por isso que nunca se submeteu a ninguém? Ryota podia dizer que diversas oportunidades foram feitas à ela, uma curandeira de alta patente. Seria uma guardiã e aliada formidável. Entretanto, ali estava ela, vivendo isolada do mundo, cuidando de seu orfanato e aparecendo quando bem queria.

Ela era outro completo mistério, mas um que instigava a mente de Ryota a descobrir. Embora, por enquanto, não fosse um que a agradasse em especial.

— Assim como mencionei, estou disposta a negociar. Busca uma maneira de reverter o poder de uma Entidade, certo?

— Sim… O quanto a Sofia te contou?

Outro ponto preocupante: A relação entre a reitora e a curandeira. Embora fosse parte do contrato de sigilo jamais revelar sua verdadeira identidade, havia uma chance em muitas de que Gê soubesse que ela era a Sabedoria desde o começo. Quem sabe, até mesmo estar relacionada com a Ritus Valorem.

— Ela entrou em contato comigo há meio ano, informando da necessidade de meus serviços. Mencionou parcialmente o caso dos Adormecidos como ponto principal, então concordei em me encontrar com você.

Ryota não detectou traços de mentira na curandeira, então relaxou os ombros. Se estava ocultando informações de propósito, insistir contra a muralha de confiança dela não traria frutos. Era necessário encontrar brechas para retirar o que queria saber.

— Entendo. Como duas dos indivíduos mais respeitados de Urânia, suponho que devam ser próximas.

— Nos relacionamos através de acordos oclusos, onde ambas as partes se beneficiam. 

Houve um estalo na mente de Ryota quando entendeu a deixa daquelas palavras.

Sofia e Gê também tem um voto de sigilo? 

Essa era uma possibilidade entre muitas, impossível de deduzir ao pé da letra.

Diferente do voto que fizera com Edward há muito tempo atrás, cuja marcação surgiu na pele como uma contagem regressiva e uma lembrança, o voto de sigilo não deixou rastros. Se fosse o caso, então tornaria-se muito óbvio. Não sabia se essa era uma especialidade de Sofia, que era uma Entidade, no entanto. 

Lembrava-se de que Sasaki possuía uma marca no peito, e supunha que todos os demais guardiões da reitora também. Por qualquer que fosse o motivo, não era por sigilo — jamais saberia, no fundo.

Mas se contar direta ou indiretamente não eram possíveis, incitar a descoberta e a curiosidade era um meio esperto de driblar o voto. O desejo de repassar a mensagem não era sentido pelo voto, desde que não fossem os dois envolvidos pelo sigilo a dizê-lo de qualquer modo.

Essa mulher é mesmo de outro mundo.

Precisava reconhecer a inteligência da curandeira, mas permanecer no mesmo ponto poderia fazê-las desbravar pontos profundos demais. E Ryota não queria descobrir por conta própria a limitação do voto de sigilo e suas penalidades.

— Então, a respeito dos Adormecidos — ela decidiu voltar ao assunto, seu polegar traçando uma carícia debaixo da orelha de Lion enquanto encarava a curandeira — Há dois deles em Hera. Além disso, uma das guardiãs da duquesa Minami está sob uma condição de fragilidade mental. Gostaria de dispor destes três para tratamento com início imediato.

Gê assentiu com a cabeça, tragando do cigarro que acendeu durante a explicação. Kurogane abriu a janela para permitir que a fumaça saísse, sem encher o cômodo com o cheiro não tão agradável.

— Certo.

— Estou disposta a arcar com as despesas e sua estadia na capital, não importa quanto tempo seja necessário.

Seus olhos diziam o suficiente da urgência da situação. Ryota não conseguia impedir de demonstrar aquela ansiedade quando a vida de Zero estava a um fio de se perder.

Batendo a bituca do cigarro no porta-cinzas, a curandeira expirou a fumaça uma vez.

— Muito bem. Dê-me três dias.

Chocada, Ryota arregalou os olhos. Mesmo Dio quase engasgou com a própria saliva ao ouvir o período estimado, o que tirou um riso leve de Gê, escondido sob a única mão.

— Apenas três dias? Isso é possível?

— O tratamento de um Adormecido demanda menos tempo, mas preciso de espaço para verificar as consequências e a constituição de cada paciente. O caso da guardiã é mais delicado, entretanto, verificarei o que posso fazer.

Queria ter suspirado de alívio, mas a preocupação com Kanami não permitiu fazer isso ainda. Ryota ficou tensa sob o olhar da curandeira quando prosseguiu com as perguntas, inclinando-se um pouco.

— Acha que pode fazê-la recuperar a sanidade?

— As feridas do coração são tão delicadas quanto as da mente, minha criança.

Um aperto doeu no peito de Ryota novamente, mas ignorou, permitindo-a continuar.

— Posso curar e recuperar qualquer ferida do corpo, visível ou não. Não me demandaria grande esforço para cuidar das sequelas da guardiã… Ao menos, sob circunstâncias normais.

— Como assim?

— Os Adormecidos estão sob uma condição cujo chi está sob o efeito de uma anomalia externa. Desde que eu possa interferir e retirá-lo, devem ficar bem.

A maneira como Gê explicou, direta e certeira, fez parecer tão fácil que Ryota quase afundou no sofá outra vez. Mas ela sabia pela análise dos médicos e de Eliza que era um processo tão cuidadoso que poderia colocar em risco a vida do paciente. 

Era por isso que Fuyuki contratou Eliza para manter-se de olho exclusivamente em sua mãe. Embora não fosse tão habilidosa quanto Gê, a mantinha em segurança o suficiente, mas o tratamento a longo prazo era complicado. Os experimentos para tentar fazê-la despertar poderiam tomar anos, às vezes nem mesmo poderia conseguir.

Sabia que Eliza jamais iria se recuperar caso deixasse escapar a vida de sua paciente por tamanha incompetência. Havia medo de ambas as partes em ousar cruzar uma linha tão arriscada.

O caso de Zero era ainda pior — seu tempo de vida se esvaia a cada segundo, o que agonizava Ryota até o âmago.

— Não importa o quão severo seja o ferimento, irei curá-lo. Entretanto, mesmo os curandeiros têm suas limitações. Se tempo demais se passar, é impossível recuperá-lo por completo. Às vezes, alguns tratamentos são apenas desperdício de tempo e chi.

Sabia que ela estava falando a verdade, pois algo semelhante ocorreu com Marie quando Eliza verificou os olhos dela. Era uma pena, mas não havia o que ser feito. 

— Curandeiros não fazem milagres.

Gê suspirou, soltando mais fumaça entre os dentes.

— Recuperamos membros e salvamos vidas, mas não recuperamos aquilo que o tempo não nos permite. Brincar com a vida e a mente de nossos pacientes está contra nossos princípios.

A expressão de Ryota ficou tensa.

— Então… O que acha que pode fazer com Kanami? Digo, sobre a guardiã?

— Verificarei seu caso quando vê-la. Agora, não posso apresentar qualquer diagnóstico ou conclusão precipitada. 

Não foi uma resposta satisfatória; entretanto, a aceitou. Gê era a especialista na área da medicina, apenas podia confiar em suas habilidades. Ao menos, teria Eliza e os funcionários contratados por Edward e Fuyuki para ficar de olho nela quando estiver trabalhando no tratamento de Zero e Coldy.

Apenas saber que suas vidas estavam em segurança foi o suficiente para um suspiro de alívio sair de seus lábios. Ryota relaxou as costas no sofá, ainda sentindo os pelos de Lion enroscando em seus dedos.

— Entendo. Obrigada.

— Recomendo não agradecer precipitadamente. Nem todos os tratamentos são iguais, então não posso lhe dar uma resposta conclusiva ou positiva por enquanto.

— Mas concordou em cuidar deles mesmo assim, o que me acalma um pouco. É o bastante para mim por enquanto.

O sorriso leve de Ryota foi genuíno. Ele durou uma fração de segundo antes de desaparecer, substituído pelo desconforto e tensão. Lembrar quem era aquela mulher sempre destruía seu bom humor, não podia evitar de parecer amarga mesmo sem querer.

Felizmente, a curandeira não parecia incomodada com sua mudança brusca de comportamento. Era provável que estava acostumada a lidar com todos os tipos de pessoas, das melhores às piores reações. 

— Aceitarei o pagamento pela estadia e serviços, destine-os para meu tesoureiro. Ele cuidará dos documentos e assinarei mais tarde.

— Certo… Quando a senhora pode começar com os serviços?

Ryota queria não parecer tão desesperada ao ponto de atropelar os valores, embora o dinheiro não fosse um incômodo neste ponto. Os recursos restantes da família Furoto eram o suficientes, mesmo que ela tivesse precisado de um tempo para aprender a gerenciar e contratar pessoas adequadas para manter os valores guardados em segurança. 

Amassando a bituca de cigarro com um último trago, Gê inclinou a cabeça com um meio sorriso.

— Imediatamente.

***

— Obrigada por me acompanhar, Dio. 

— Eu não fiz nada, moça.

— Apenas segurar minha mão foi o suficiente.

Ryota sorriu para o garoto e desviou seus olhos dos cabelos dourados iluminados pela luz da lua para o oceano. O reflexo daquele brilho era estonteante, uma visão possível apenas para pessoas que fossem até a Baía de Dione.

Uma hora depois das negociações com Gê chegarem ao fim, Kurogane os levou de volta de onde vieram. O som das vozes das crianças ainda ecoavam por seus ouvidos, bem como o cheiro dos doces preparados para elas comerem. 

Não conseguia esquecer o calor no olhar daquela mulher, muito menos no quão… Prático foi assegurar seu trabalho. Em concordância, foi decidido que partiria para a capital, em Hera, na manhã do dia seguinte. Ryota cuidaria de assinar os documentos e papeladas no dia seguinte, quando voltasse para Celestia para mandar notícias para Edward sobre suas conquistas ao longo dos últimos seis meses.

Suspirando, sentiu parte do peso sumir de seus ombros. Ao menos, agora podia descansar um pouco, sem se preocupar demais com o futuro daquelas pessoas deixado em suas mãos.

— Ainda pensando nela?

— … Acha que eu deveria ter perguntado? Sobre meu avô.

Antes, pretendia criar coragem e peitar Gê, exigindo respostas e uma explicação. Entretanto, aquela força de vontade foi morrendo quanto mais tempo passava, até finalmente não passar de um questionamento. A visão passou de uma assassina para uma curandeira dedicada, habilidosa e uma mãe amorosa. Era profissional, mas não descabida de sensibilidade. Madura e compreensiva. 

Como alguém assim poderia ter matado Albert?

Sua mente entrou em um redemoinho de perguntas sem resposta gerados pelo medo de saber a verdade. 

Albert amou cada um deles como seus filhos, e lhes deu a oportunidade de viver de novo. Ali, onde todos entendiam uns aos outros mesmo sem saberem sobre seus passados, pois nada disso importava.”

E, no fundo, não eram ele e Gê ainda mais parecidos do que deveriam?

Como as coisas chegaram nesse ponto? Por que ela o matou? Como podia parecer tão calma quando conversava com Ryota, que tentou tomar sua vida duas vezes seguidas? 

Era confuso demais, sua cabeça doía. Parecia que podia explodir com o estresse de considerar todas as possibilidades para o tipo de passado que aqueles dois compartilharam.

— … A verdade é assustadora.

— Mas libertadora, quando se está preparado para ouvir.

As palavras sábias de Dio a silenciaram. Os dois trocaram olhares, e o garoto sorriu da mesma maneira calorosa que sempre fazia quando queria acalmar seus nervos.

— Agora, não é o momento. Há verdades mais seguras na ignorância do que esfaqueando um coração em dúvida.

— Me assusta o quão esperto você pode ser.

Um riso envergonhado escapou de Dio, que corou.

— Eu apenas entendo o sentimento… Muito bem.

Houve um momento de silêncio, então Ryota se viu deitando com a cabeça no colo dele. Era grande demais para caber nos braços do pequeno garoto, mas o calor dele a fazia se sentir pequena e frágil de uma maneira confortável.

Observando as ondas da praia, sentiu os dedos dele arrumarem seus fios, os afastando do rosto. Estava exausta mentalmente, apenas precisava daquele afago por alguns segundos antes de recuperar as forças.

— Ei, moça.

— Sim?

— O que vai fazer agora?

Sim, o que farei?

Haviam tantos tópicos para se preocupar, pensar, responder, assinar. Era exaustivo apenas lembrar.

Mas o contrato com Sofia acabou, e o voto de silêncio tomou seu lugar. Estava livre para sair de Celestia e ir para onde quiser. A formatura fora há alguns dias, e com o certificado em mãos, o tratamento de seus entes queridos encaminhado, um novo mundo de possibilidades se abriu para Ryota.

O que fazer? Para onde ir? Por onde começar? 

— Eu tenho uma ideia… Pode me acompanhar?

— A qualquer hora e lugar.



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