Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 12 – Arco 4

Capítulo 66: Superação

— Mediante sua provação final sob o rito Katharsis, diga-me, filha da luz.

— Sim?

— Quais são suas impressões finais a respeito de tudo o que viu, ouviu e sentiu?

Houve uma pausa, e o Empíreo, que normalmente era quieto por natureza, parecia ter se tornado ainda mais silencioso.

Tal qual um suspiro de alívio que escapava de seus pulmões, quando pisou novamente dentro daquele espaço, havia sentido que gradualmente ele veio a se tornar mais e mais familiar. Era como se aquele ambiente, que recepcionou todas as fases na sobrecarga de emoções e memórias, fosse capaz de lembrá-la de cada um desses momentos, lhe permitindo refletir através da visão das estrelas sob as águas planas e translúcidas.

— … A cada provação, era como uma visita a um mundo diferente. 

Ryota começou a refletir em voz alta, andando a passos lentos sob a superfície. Sofia, que seguia logo atrás, manteve-se calada.

— A experiência de enxergar sua realidade através dos olhos de uma emoção em especial é assustadora.

Com o choque, vinha a negação e rejeição. Através da raiva, experienciou a destruição. Na barganha, a necessidade de manter aquilo que foi perdido a fez se arrastar. Pelos mares da depressão, ela nadou exaustivamente. Até, por fim, alcançar a aceitação.

Foram seis longos meses lutando contra um inimigo invisível, atrelado ao mundo que nomeou diversas vezes como pessoas envolvidas direta ou indiretamente. Mas a verdade era apenas uma só.

— No fundo, eu estava fugindo. Por longos dez anos, me apeguei a uma mentira, tinha medo de olhar para a verdade através dela.

Tal qual o reflexo que podia vislumbrar sob seus pés, frágil e insustentável, vivia aquela dor que ocultou por tanto tempo. Entretanto, nunca esteve realmente escondida. Afinal, estava olhando para ela agora mesmo.

— Agora, eu entendo que parte de todo o sofrimento que passei foi culpa minha.

Havia coisas impossíveis de mudar. Não importa o quão dolorosa seja uma experiência, ou o quão triste te deixe, a realidade era imutável. Foi a própria Ryota quem escolheu decidir e aceitar isso.

Foi difícil.

Se negasse o fator do mundo como uma criação gerada por causa e consequência, então, teria se tornado aquilo que vislumbrou através do livro de Sofia — uma possibilidade, um mundo, uma realidade onde teria se entregado às próprias dores e forjado uma mentira confortável para viver pela eternidade.

Entretanto, aceitar aquele agradável jardim era negar a destruição dos seus arredores, fechar-se ignorante a tudo o que isso demandaria do derradeiro universo. A vida não seria conveniente o suficiente para permitir que Ryota salve ambos — mentira ou verdade. Apenas podia escolher um dos lados, e arcaria com as consequências das próprias ações.

O fato de ter fechado os olhos e tapado os ouvidos foi apenas outro dos reflexos de defesa de sua mente quebrada. Mas apesar de achar que seria o suficiente para afastar as dores, apenas aumentou e a sufocou a longo prazo. Não escolher também era uma escolha, e a pior de todas.

A negligência trouxe Ryota ao presente, onde foi obrigada por Sofia a encarar os próprios defeitos, erros e falhas dezenas de centenas de vezes. Ainda que rasgasse seu peito como uma lâmina, aos poucos, parecia que tornou-se mais fácil suportar.

Não porque a dor era necessária para o aprendizado, mas os ferimentos causados pela passagem do tempo nunca se permitiram ser fechados e cicatrizados. Era um processo dolorosamente lento, que demandava paciência. O imediatismo a levaria à ansiedade, que por consequência a corromperia de novo e de novo para apressar-se, tomando as mesmas decisões e repetindo os mesmos erros.

Era um ciclo que Ryota aprendeu a quebrar — a chave estava em si mesma desde o começo, no local que mais quis negar a existência, mas também mais se apegou.

— Mas não significa que vou aceitar qualquer coisa que venha pela frente. Continuarei lutando, como sempre fiz.

Seus passos foram interrompidos, e Ryota olhou por cima do ombro — para a Entidade atrás dela, com a expressão inapagável em seu rosto.

— Não somos aliadas, nem amigas. Ainda não sei quais são suas motivações por trás de toda essa provação, ou o motivo de ter se tornado uma Entidade e se aliado à essas pessoas. Entretanto, Sofia, saiba que não pretendo mais cair nos seus joguinhos.

A declaração não trouxe qualquer emoção ao rosto da beldade, e Ryota se virou melhor para Sofia, dando um passo para mais perto.

— Tenho certeza que vai saber o quanto estou séria sobre isso. Não preciso de nada que me ofereça, muito menos aquilo que você chamou de In Reverie. Agora sei que era aquele pedaço dentro de mim procurando uma alternativa para o mundo catastrófico em que estou, mas não quero um poder que me lembre daquilo que rejeitei. 

Fechando o punho, ela deu um soco inofensivo no próprio peito, como que para reafirmar as próprias palavras,

— A única coisa que preciso é disso aqui, e nada mais.

Ryota sabia que o In Reverie, antes uma habilidade que achou advir de Dio, era na verdade o gatilho para o despertar de uma autoridade de controle ainda maior. Era o mundo, através de sua própria queda, lhe dando a chance de recomeçar, mas a provocando a mergulhar profundamente naquele mar sombrio que tanto se debateu para sair.

Agora que havia aprendido a nadar, não pretendia se afundar naquela correnteza uma segunda vez. Não importa o quão conveniente fosse a capacidade de refazer os acontecimentos do mundo à bel prazer, essa era uma decisão que apenas Aletheia, e não Ryota, tinha a capacidade de fazer. 

Elas nunca seriam as mesmas, assim como a pequena Ryota jamais seria aquela que estava de pé diante de Sofia — que viu a morte, a dor, a perda, os tropeços, o sangue e a mágoa, mas ainda se levantou e se levantaria quantas vezes fossem necessárias.

Após o que pareceu alguns segundos, o olhar de Sofia se suavizou um pouco.

— Eu entendo e aceito a sua decisão, filha da luz… É de grande alívio testemunhar que seu brilho não se apagou, nem ao fim.

Os olhos azuis se arregalaram. Ryota esperou uma reação negativa, mas parecia que tanto falhar quanto passar em cada uma das provações foi de deleite para a Sabedoria.

A reação de surpresa tirou um pequeno riso de Sofia, balançando os ombros de leve.

— O que houve?

— Quero dizer, eu tava esperando alguma coisa mais dramática. Mas você só aceitou tudo e eu fiquei um pouco sem graça.

— Devo lembrar que estou ciente de cada tomada de decisão que faria?

— Não, não precisa! Sem essa, não quero saber dessa bobagem. Toda vez que lembro disso, fico tendo arrepios.

O movimento exagerado de Ryota fazendo um “x” com os braços tirou outro riso de Sofia. Era o tipo de atitude engraçadinha que teria normalmente quando queria evitar uma conversa constrangedora, então era um alívio para ela mesma estar se sentindo confortável para fazer tais brincadeiras.

Até com uma Entidade.

Apesar de Ryota reafirmar que Sofia era uma daquelas pessoas que ela e tantas outras tinham como inimigas, era um fato que, de uma forma ou de outra, as provações foram de grande ajuda para ela. Descartando o sofrimento e desespero à parte causado pelo puro entretenimento, no fundo, Ryota tinha gratidão por Sofia.

As bochechas dela coraram um pouco com tal reconhecimento, e a Sabedoria arqueou uma sobrancelha, fingindo inocência.

— Gostaria de acrescentar algo?

— B-Bem… 

Tossindo as próprias palavras, Ryota percebeu que não poderia evitar deparar-se com o conhecimento exacerbado da reitora. Por bem ou por mal, era necessário se expressar corretamente.

Também fazia parte de seu novo exercício reconhecer os benefícios que as outras pessoas que lhe proporcionaram e não ter medo de relatar em voz alta.

— … Muito obrigada… Pelas informações que me repassou. E pela oportunidade que me ofereceu de repensar sobre tudo.

— Não precisa me agradecer. Como eu disse antes, apenas estava cumprindo com uma promessa para um velho conhecido. 

Retirando a faceta meticulosa e quase superficial, Sofia recebeu a gratidão de Ryota muito bem. Na verdade, considerando as circunstâncias, quase esperou uma reação risível, mas nos últimos tempos, seu comportamento mudou para quase gentil.

— Embora seja prematuro me dirigir a palavra quando ainda não lhe entreguei a recompensa final por passar na quinta provação.

— … Ah! É verdade, você ainda tá me devendo uma informação!

Depois de um segundo, recordou-se de Jaisen. A pessoa que considerava como um tio, que sacrificou-se duas vezes por ela, havia desaparecido há meio ano durante os eventos na capital real, e nunca mais ouviu falar dele.

Mesmo com as buscas lideradas por Edward, nenhum resultado favorável foi encontrado. Eliza, que estava no mesmo lugar onde havia o visto pela última vez, deveria se culpar profundamente conhecendo o quanto ele era importante para Ryota.

Não ajudou em nada lembrar que a própria havia culpado a curandeira de diversos ocorridos, mesmo que inconscientemente. A fazia querer bater a cabeça na parede e pedir perdão se prostrando para a menina de coração puro que era Eliza, porém precisaria adiantar esse momento para o futuro.

— Acalme-se, filha da luz. O homem a quem busca está vivo e ao seu alcance.

Um suspiro alto escapou de Ryota, que agarrou o peito por um momento, temendo as palavras que viriam. Apenas saber que Jaisen ainda estava com o coração batendo em algum lugar era o suficiente para que a fizesse ganhar forças de novo, pronta para ir a qualquer lugar e encontrá-lo.

— Entretanto, permita-me esclarecer que seu paradeiro não se encontra mais em Thaleia, não onde hoje conhecemos. Mas sim mais ao leste do mapa.

Ryota franziu a testa, reflexiva. Sua memória buscou os detalhes do mapa do continente que havia estudado, recordando-se que lugar ficava nesta direção.

— Polímia?

— Durante um certo conflito na capital real, o guerreiro espadachim travou e desencadeou uma grande onda de poder que se espalhou pelo espaço. A Autoridade do Destino, na tentativa de desencadear uma fuga, o transportou consigo para um local nas proximidades.

— Espera. Se ele estava ali este tempo todo, por que não procurou por ajuda? Uma equipe de resgate podia ter sido mandada, além disso… 

— As circunstâncias são incertas, cabe a você descobrir essas respostas agora.

— Aaah! Eu odeio quando você faz isso! Que saco!

Como de costume, Sofia apenas soltou um riso de quem sabia de tudo e deixou Ryota esperneando ao lado, irritada. Não parecia que ela pretendia esclarecer todas as suas dúvidas, mas era o suficiente.

Respirando fundo, ela se acalmou e sua expressão suavizou. Sua preocupação maior era saber se ele ao menos estava vivo, mas não importa o estado em que ele estivesse agora, a maior prioridade de Ryota era trazer Jaisen para casa com saúde e segurança.

— Mas, sendo assim, agora sei para onde ir agora. Apenas preciso começar a me planejar assim que sair de Celestia, então-

— Um momento.

Enquanto refletia em voz alta, caminhando em círculos pela superfície da água, Ryota se viu imaginando as possibilidades ao sair, entretanto, não demorou mais do que alguns segundos para que Sofia a interrompesse, encarando-a.

— O que foi? Quer dizer mais alguma coisa? Estou ocupada agora.

— Temo que precise acrescentar um ponto importante ao que deva estar considerando agora.

— Como assim “devo”? Você sabe exatamente no que estou pensando.

Ignorando a pequena piada, foi a Sabedoria quem se aproximou dessa vez. Pelos passos firmes e a ausência de um sorriso nas feições, Ryota entendeu que tratava-se de um assunto importante. 

— Exato. Portanto, não permitirei que se retire do Empíreo até que se comprometa ao voto de silêncio.

Por um momento, a mente dela parou de trabalhar e um arrepio percorreu a coluna de Ryota. Disfarçando o alerta que seu corpo disparou às palavras, apenas perguntou:

— Como assim um “voto de silêncio”?

— Assim como uma vez forjou com Edward Fiore, nosso voto será criado e mantido com cláusulas bastante especiais.

— Tô sentindo que tá vindo alguma coisa ruim agora. Qual é a pegadinha? Você vai me manter de refém aqui dentro caso eu me recuse?

— Em partes, sim. 

A resposta não foi muito clara para Ryota, que torceu o rosto em confusão.

Sofia suspirou.

— Se negar a fazer o voto comigo, permanecerá presa no Empíreo para sempre. Como a anfitriã, tenho a autoridade para manter a porta para o mundo exterior trancada por quanto tempo desejar.

— O quê? Mas… Mas e ao mundo do lado de fora?

Um pequeno sorriso malicioso se desenhou no rosto da Entidade.

— Suponho que todos ficariam muito desapontados ao descobrir que sua querida amiga entrou em um choque repentino, guiando ao coma sob o estado de uma Adormecida.

O termo familiar fez o corpo de Ryota ter arrepios uma segunda vez, e ela quase deu um passo para trás. 

Não se acovarde, não agora.

Prendendo a respiração, ela conteve o instinto de fuga e continuou encarando a beldade ameaçadora diante de si.

Estava claro como o dia o que Sofia estava propondo: Descarte todo o conhecimento e experiências adquirido e fique presa para sempre, assim como Zero e Coldy estavam, ou faça o voto de silêncio e não revele a verdade para ninguém.

Ryota engoliu em seco, hesitando antes de falar, mantendo a voz firme.

— … Por que apenas agora?

— Qual a graça de forçá-la a tomar uma escolha dessas antes? 

Ela quase quis socar o rosto de Sofia por aquela resposta óbvia, mas se conteve.

— Caso esteja se questionando, estive monitorando suas ações durante estes seis meses. Estou ciente das cartas que enviou para o rei de Thaleia e cada palavra que escreveu. Não iria permitir que repasse os conhecimentos que adquiriu sobre mim ou a Ritus Valorem com tanta facilidade.

Apesar da intromissão, Ryota havia se acostumado um pouco com isso considerando as habilidades da Sabedoria. Seria tolice supor que poderia enganar uma Entidade cujo conhecimento se estendia em níveis quase onipresentes.

Era um desperdício não poder revelar tantas informações importantes para o mundo. Quantas pessoas poderiam ser salvas? Apenas espalhar as verdadeiras identidades das Entidades permitiria que a corte se movesse para defender cada um de seus povos.

Estava também ciente de que causaria uma grande comoção, quiçá uma revolta que poderia reviver algumas guerras civis e protestos que pouco se viam desde a época das migrações de Urânia, Polímia e Clior para Thaleia.

Eram consequências e vidas demais colocadas em jogo para serem mantidas na linha. Mas Ryota não poderia tomar nenhuma atitude para salvá-las caso nunca saísse do Empíreo.

— Estou vendo que compreende.

— … Quais as suas condições?

Ignorando a gota de suor que escorreu por sua nuca, ela decidiu ouvir o que a Sabedoria iria propor. 

— Não deve, sob nenhuma hipótese, pronunciar, escrever, gesticular ou transferir as informações direta ou indiretamente para qualquer um.

Era o esperado. Mas ela não tinha acabado ainda.

— Com “informações”, me refiro aos verdadeiros nomes e habilidades das Entidades, ao Empíreo, à ligação com a Ritus Valorem, aos ritos e seus conteúdos. Nada que tenha descoberto sob as condições desses seis meses deve ser repassada. E, obviamente, não deve jamais revelar a existência, motivações e cláusulas de nosso voto a outrém.

As duas se encararam, e por um momento Ryota sentiu que Sofia sabia exatamente as coisas que estava pensando, mas ela não ousou se pronunciar a respeito. Na verdade, foi como se um pequeno rabisco de um sorriso tivesse surgido no canto de seus lábios.

— O período para o voto do silêncio seguirá deste dia até que a vida de uma das partes se extinga.

Novamente, outro pensamento se passou na mente de Ryota, mas Sofia não o pontuou. 

— … Parece complexo.

— Não, é bastante simples. Pelo bem de ambas as partes, seu silêncio é requisitado. Temos um trato?

O rosto de Ryota ficou tenso sob o olhar cortante de Sofia. Não havia o que pudesse fazer para negar a proposta, e as aberturas para tornar aquele voto o mais flexível possível foram gradualmente se fechando.

Ainda que as possibilidades passassem em sua mente, a Sabedoria não fez qualquer menção de interromper sua linha de raciocínio. Fosse porque não tinha interesse, ou porque não interferia no voto, permitiu que Ryota chegasse às próprias conclusões sozinha. 

E, com um suspiro estremecido, apenas pôde murmurar a resposta entalada na garganta, tensionando os lábios.

— Sim.



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