Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 12 – Arco 4

Capítulo 65: Ryota

Às vezes, ela se via sonhando desta maneira.

Um mundo onde cada pequena ação era cronometrada e seguida à risca. Com o conhecimento de um futuro tardio e dolorido, poderia recriar quantas vezes quisesse aquela realidade cheia de calor e segurança.

O espaço fechado, alheio às regras do mundo exterior, protegendo o que mais havia de importante. Como uma caixa de gato, simples e aconchegante, sem a necessidade de bens materiais ou grandes feitos que lhe presenteiem com reconhecimento.

Apenas aquela única felicidade era importante — seu passado, imutável, inapagável, memórias que não poderiam ser manchadas. Como um altar sagrado que deveria sempre ser reverenciado, não importa os sacrifícios necessários.

A casca vazia do lado de fora não iria sentir, e a alma interior jamais saberia da verdade. Do lado de fora, do lado do mundo, havia dor, a verdade, a tristeza, a perda, a mudança. Em contrapartida, ali dentro, em seu próprio jardim repleto das flores amarelas como o sol do alvorecer, com as vozes das pessoas amadas, as risadas das crianças e a perspectiva de um futuro estável, sentiria-se segura e contente.

É verdade.

Não se trata apenas daquela encarnação que surgiu de seu mais profundo desejo de estabilidade. Do lar que tanto buscou, da dor da perda que fingiu converter em vingança, nada disso. No fundo, ainda que não quisesse reconhecer, sempre houve aquela pequena criança que chorava na escuridão do quarto, sozinha e solitária, porque nada poderia fazer.

Desde sempre, apenas assistiu. 

Ela viu a mãe morrer.

Ela viu o avô dar-lhe as costas e ir embora.

Ela viu o vilarejo ser destruído.

Ela viu o amigo de infância se sacrificar.

Ela cortou os laços com as pessoas que se importaram.

Ela permitiu que o tio fosse perdido no mundo e o culpou.

Mas nunca moveu um dedo para impedir nada disso. Apenas assistiu, sentindo-se impotente, fraca e incapaz. 

Tenho medo.

Uma criança não pode salvar sua mãe, não importa quantas vezes sonhe com este futuro impossível. Suas palavras não seriam ouvidas, seus braços e pernas eram pequenos demais para alcançá-la, era imatura e frágil como uma flor.

Talvez fosse por isso que cresceu assim — acreditando que nunca podia fazer nada. Se sua voz nunca chegaria aos ouvidos, se suas mãos não poderiam tocar, se tudo o que devia fazer era assistir

Não chore, por favor… Eu faço qualquer coisa, apenas… Fique aqui comigo. Não me abandone.

Estava lamentando por dez anos. Aquela era uma alma solitária que nunca se aceitou, se cobriu nas memórias de uma vida que nunca mais iria voltar e negou a própria realidade para se convencer do oposto.

Não esqueça.

Se esquecesse, eles iriam desaparecer?

Não esqueça. Não esqueça.

Se esquecer, aqueles sorrisos seriam perdidos para sempre.

Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça.

Se esquecer, quem mais iria lembrar?

Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça.

Se Ryota se esquecer… Se ela virar o rosto para o outro lado… Se abandoná-los pelo presente triste e um futuro incerto… 

O que vai sobrar, então?

***

Stella era como o sol.

Seus cabelos eram de um dourado queimado que tinha cheiro de verão, e seus olhos da mesma cor se enchiam de brilho sempre que olhavam para a filha. Os abraços não eram largos demais, mas apertados o suficiente para fazê-la se sentir segura.

Mesmo inconsciente, enquanto ainda era uma criança, Ryota sabia que ela era seu lar — o lugar onde sempre podia recorrer quando precisasse de ajuda. Era onde podia chorar, ser confortada, quando se feria ou magoava. Onde receberia doces e bolos coloridos. Ganharia beijos na testa e sentiria sua respiração perto do rosto. Ouviria sussurros de carinho e sorrisos de afeto e apoio.

Eu quero ser como a mamãe.

Ainda como uma mãe solteira, Stella não perdia para qualquer outra no vilarejo. Ela era esforçada e trabalhadora. Além de cuidar da pequena garota que mal tinha aprendido a falar, fazia favores aos seus vizinhos sempre com aquela expressão calorosa de quem gostava de ajudar. 

Ryota não tinha ciúmes da mãe, na verdade era o oposto.

Ela é tão incrível.

A admiração nos olhos azuis como o céu era radiante. Os pequenos dedos nunca hesitaram em demonstrar o apego que tinha à ela. Qualquer momento que fosse possível, Ryota a abraçaria e encheria de palavras de afeto. Podiam ficar longos minutos assim, apenas agarradas uma à outra.

— Te amo, mamãe!

— Eu também, querida.

Aaah… Eu sou tão feliz. Sou tão abençoada.

Não havia como Ryota conhecer outro sentimento além deste. Muito menos reconhecer a gravidade da situação por trás do esforço de Stella.

Talvez porque, naquela época, ainda era pequena demais para notar a diferença entre um sorriso genuíno e um falso. Ou porque as memórias daqueles dias foram propositalmente ocultas pela mente de uma garota traumatizada.

Seja como for, sempre que Ryota pensava na mãe, o que vinha à mente era a feição amorosa dela.

Mas agora, em seus sonhos — não, nas suas memórias raízes, que cavaram cada detalhe até o talo, era impossível não perceber.

Ao longo dos anos, ela passou a mudar.

O que antes era um corpo saudável e cheio de vida, gradualmente empalideceu e emagreceu. Stella nunca foi acima do peso, na verdade era dita como uma mulher com feições e membros delicados, mas não frágeis. 

Ou era assim que deveria ser.

Minha mãe… Começou a adoecer.

Agora tinha consciência disso. Mas a Ryota do passado, não. O que seus olhos viam eram apenas a alma cheia de amor, a figura materna, não sua forma

Embora assim fosse, mesmo Stella tinha ciência de que, algum dia, a filha haveria de notar a mudança. Seus esforços para esconder as lágrimas de amargura quando via o próprio reflexo eram meramente um detalhe. 

Trancar-se no banheiro e cobrir a boca para conter os soluços não ouvidos quando Ryota brincava do lado de fora; Observar a pele flácida começando a se apertar contra o tórax, expondo as marcas dos ossos; Sempre carregar um lencinho extra de tecido escuro para que suas tosses com pequenas manchas de sangue não fossem vistas.

Somos tão parecidas…

Ainda que nunca tivesse visto qualquer semelhança física entre as duas, quando observado deste ponto de vista, Ryota podia ver a maneira como suas emoções eram igualmente contidas.

Eu não quero preocupá-la.

Deveria ser este o pensamento de Stella.Ver a si mesma degradando, quem sabe ciente do pouco tempo que lhe restava, apenas acumulou desespero e mágoa naquele coração materno.

Não posso deixá-la descobrir.

Mas, ainda assim, um dia Ryota a viu.

Provavelmente, a mãe sequer notou que tinha começado a chorar, ou que ainda estava na presença da filha, mas as lágrimas escorrendo pela feição contorcida em dor foram perfeitamente claras.

Ryota nunca tinha visto a mãe chorar daquela maneira.

É claro, às vezes ela lacrimejou de alegria; ou derramou algumas lágrimas por falecidos do vilarejo, mesmo que silenciosamente.

Aquilo era totalmente diferente.

Sua respiração entrecortada expressava grunhidos de uma dor inexplicável aos ouvidos. Era como se quisesse gritar, mas não houvesse voz. Os dedos tremiam, magros, ossudos, mas ainda quentes. Ainda com vida, ainda era a mãe que conhecia.

Foram meros minutos até que Stella limpasse o rosto e olhasse com espanto para a filha, que a encarava com inexpressividade. Pânico atravessou suas feições, e ela se abaixou para segurar-lhe os ombros.

Eu nunca parei pra pensar em como, naquele momento, ela parecia tão menor do que eu.

— Sinto muito, querida. Mamãe te assustou?

A garota se manteve quieta, mas acenou com a cabeça em negação.

Daquela distância, Ryota podia ver as marcas dos olhos vermelhos. As manchas de exaustão, o rosto definhando não com a idade, mas com a depressão, e uma consciência que aquela criança jamais poderia entender.

— Me desculpe. A mamãe vai sorrir, veja. Está tudo bem agora.

Mesmo assim, naquele dia, algo mudou nela. Bem fundo, em seu coração, Ryota pôde sentir uma fagulha de preocupação.

Não chore. Por favor, não chore.

Ver a mãe transtornada gerou uma das piores dores de toda a sua vida. O desespero de saber que ela precisava de conforto, mas não saber o que dizer, o que fazer. Havia imaturidade, inocência e pureza — nada que fosse útil para dar à sua mãe, à Stella, o que ela precisava.

A expressão de dor dela fazia seu peito apertar e afundar com uma pressão inimaginável, ao ponto de sufocar. Era como se pudesse chorar, explodir em prantos a qualquer segundo caso não se contivesse.

O que posso fazer? O que devo dizer? O quê? O quê?

A pequena mente cheia de dúvidas, medos, inseguranças e preocupações compiladas em apenas alguns segundos, apenas conseguiu concluir uma coisa.

Não quero que a mamãe chore, então… 

Naquele dia, ela aprendeu que as emoções contagiam.

Ainda que esteja triste, caso abra um sorriso, as pessoas tendem a sorrir também. E sorrir significava felicidade. A felicidade a fazia se sentir segura, sem precisar chorar ou lamentar por qualquer ansiedade, perigo ou dor.

Eu quero que ela sorria pra mim.

Então, Ryota sorriu.

Seus lábios se puxaram largamente, expondo os dentes de leite e os pequenos vãos para aqueles que ainda não haviam crescido.

Como esperado, Stella suspirou em alívio e também sorriu.

Para uma criança, parecia que os problemas poderiam ser resolvidos dessa forma. Mas, obviamente, nem sempre apenas um gesto os faria demonstrar alegria ou contentamento.

Conforme o tempo se passou, ela percebeu que não era o suficiente. Então, foi necessário ir além, e causar risos. Fosse fazendo piadas, abraçando a mãe e criando dramas que a tiraria dos pensamentos ruins, ou se tornando o próprio alvo dos risos.

Se antes Ryota era uma criança cheia de energia, agora ela se tornou uma verdadeira pirralha, e não hesitava em envolver outras pessoas em suas atrapalhadas. De alguma maneira, se os vizinhos podiam sorrir, até mesmo sua mãe os acompanharia.

Eu farei todos eles sorrirem. Mais, mais e mais! Ainda mais do que isso!

Era provável que Stella entendeu o intuito das ações da filha, porque sempre que possível estava sorrindo e mantendo a calma perto dela. Revisitar as próprias memórias nunca lhe daria acesso aos sentimentos de outra pessoa ou seus pensamentos, mas era visível o esforço diário que aquela mulher, aquela guerreira, sempre fez.

Assim, o tempo se passou. Mais e mais, a garota cresceu e aprendeu sobre o mundo. O instinto de tirar um sorriso das pessoas permaneceu, na verdade apenas cresceu e se abrangeu.

Essa não. Se eu chorar agora… Se eu ficar com raiva… Eu não posso.

Ela aprendeu a se conter. Por vezes, era caricata e propositalmente exagerada, mentindo para os outros e a si mesma para entreter aqueles ao redor. No começo, foi bastante difícil, quiçá quase impossível, mas Ryota era uma criança dedicada. Assim como a mãe, seus esforços para se tornar uma pessoa prestativa e gentil não foram em vão. A pessoa que respeitava e admirava como a mulher ideal não passou despercebida, e assim ela lentamente se tornou quem era hoje.

Paralelamente ao desejo de estabilidade, havia a curiosidade de uma garota que nunca saiu de seu vilarejo natal. 

Albert Megalos, ou apenas Albert, era um homem respeitado que visitava o vilarejo com certa frequência. Ryota não sabia quem ele era, mas o viu pela primeira vez por acaso, enquanto andava por uma das vielas entre as árvores. Havia uma comoção acontecendo e várias pessoas rodeavam um senhor de cabelos brancos e olhos dourados. Sua expressão parecia dura, mas havia um brilho de empatia nas íris

Enquanto espiava o desconhecido, Ryota se perguntou quem ele era, e por que tantas pessoas queriam sua atenção Era, por certo, um visitante, e um dos raros, pois Aurora nunca os recebia por qualquer que fosse o motivo.

Por curiosidade, passou a seguir e observá-lo. Mesmo como uma garota de seis anos, o corpo de Ryota era forte e resistente. Ela não cedia aos machucados e adoecia raramente. Às vezes, era pega pelos moradores escalando árvores e saltando entre galhos, caminhando com um sorriso espertinho pelos telhados ou pulando janelas e muros. 

Foi durante um desses dias, enquanto espiava através das folhas da árvore o velho sentar-se para beber uma caneca de chá oferecida por uma das vizinhas, que seu pé escorregou. Ela não conseguiu evitar o pequeno grito de surpresa quando quase caiu, agarrando-se ao galho com esforço, mas eventualmente cedendo ao próprio peso.

— Ah!

— Peguei você.

Quando abriu os olhos, estava nos braços do velho homem. Vê-lo tão de perto fez Ryota empalidecer por um instante, preocupada com o possível sermão que viria. Aquela reação tirou um sorriso dele, ao lado de uma risada baixa e grave, quase rouca.

— Não vou brigar com você, se acalme, por favor.

— … Mesmo?

— Sim, mesmo. Mais importante do que isso, você está bem? Foi uma queda e tanto.

O velho homem pousou a menina cuidadosamente no chão e limpou a sujeira de suas roupas, retirando uma pequena folha grudada nos cabelos negros compridos. 

— E-Eu tô bem! Isso num foi nada!

Ignorando o pequeno arranhão na canela que mal sangrava, ela estufou o peito e respondeu. A postura de bravura fez o velho rir de novo.

— Ainda bem. 

— Mas, escuta aqui, vovô. Como é que tu me segurou? Eu tava bem longe do banco onde cê tava sentado, e do nada…

— Ora, como será?

Ao invés de responder, ele apenas manteve o mistério, fazendo a garota mostrar um beiço emburrado. Havia uma distância de pelo menos dois a três metros entre onde ele estava bebendo chá até a árvore que Ryota caiu. A queda ocorreu em meros segundos, era impossível para um velho correr tanto assim.

Certo?

— Ah! Não me apresentei, que falta de educação! Meu nome é Ryota!

— Você é muito bem-educada, garotinha. 

Ele não demonstrou surpresa ao nome, sequer ao fato de que Ryota o estava perseguindo. Na verdade, tudo o que se revelava em sua expressão era divertimento. O elogio, que ela aceitou de muito bom grado como direcionado à própria mãe, fez Ryota abrir um sorriso ainda maior.

— E o vo-... Digo! E o senhor? Qual seu nome?

Corrigindo-se da maneira que Stella ensinou para sempre ser respeitosa com os mais velhos, Ryota devolveu a questão. O par de olhos brilhantes como o céu refletiam toda uma vida pela frente, e o velho simpático não conseguiu evitar de retribuir aquele calor inocente.

— Albert. Prazer em te conhecer.

Mais tarde, Ryota veio a saber pela mãe que ele era o fundador do vilarejo. Entretanto, não permanecia ali por razões de trabalho, visitando ocasionalmente de tempos em tempos. Era um homem de grande importância para a comunidade, gentil e cuidadoso. Quando Albert chegava ao vilarejo usando o trem, todos o recebiam com sorrisos e cumprimentos, por vezes faziam jantares comemorativos na praça para comemorar. 

O homem que antes parecia um velho rígido e misterioso se mostrou dócil e amável. Ele não hesitava em visitar cada uma das casas de Aurora e conversar com cada morador, brincar com cada criança e passar um tempo ao lado de velhos amigos. Todos o tratavam com respeito e admiração — além de uma gratidão visível mesmo para Ryota, que desconhecia a verdadeira história por trás do vilarejo.

Stella também recebia visitas de Albert, e ele sempre abria o mesmo sorriso amoroso quando Ryota pulava do sofá para seus braços. Ela era erguida no ar, girando e o abraçando até ficarem tontos, enquanto os demais riam da cena. Mesmo sem a ligação sanguínea, o afeto dele por Ryota era visível, e de alguma maneira, ambos criaram laços semelhantes ao de avô e neta.

— Ryota, o senhor Albert-

— Vovô!!!

— Aaah, minha pequenina! Venha cá! Eu trouxe algo pra você.

— Minha nossa… O senhor a mima demais.

Stella suspirou pousando as mãos nos quadris ao ver a cena familiar. Mesmo tendo crescido tanto, Albert ainda gostava de segurá-la nos braços, ignorando a idade que chegava. A menina sequer hesitava em abraçar seu pescoço, sorrindo de orelha a orelha. 

— Qual o problema, Stella? Eu apenas gosto de fazê-la feliz.

— Sim, mamãe! O vovô é muuuito legal! A gente até roubou a cobertura do bolo outro dia, e-

— Vocês fizeram o quê?

— … Ah. Não, quero dizer… Nada… Desculpa.

— Bem que desconfiei que faltou chocolate pra cobrir a massa! Então foram vocês?

Algumas vezes, mesmo um homem de idade como ele se envolvia nas atrapalhadas de Ryota. Obviamente, a culpa geralmente era dela, mas Albert era do tipo de pessoa que não abandonava ninguém, nem mesmo uma garota querendo fazer pegadinhas, ou roubar doces escondido, quem sabe deixar as verduras de lado no jantar. Pelo contrário: ele a acompanhava do começo ao fim, provando dos doces que tanto gostavam, oferecendo sua própria refeição à ela e comendo aquilo que Ryota não queria.

Alguns diriam que Albert era um avô babão, que faria de tudo pela neta, e era uma grande verdade. Suas visitas semanais eram acompanhadas de caixas e sacolas de presentes recorrentes para todas as crianças e adolescentes. Ryota, em especial, era um pouco mais privilegiada do que as outras.

Seus favoritos eram os livros de contos. Aqueles em que podia conhecer o mundo de fora, os quais sua mãe lia antes de dormir. Às vezes, se via relendo durante o dia e sonhando acordada como seria a sensação de cada prato de comida, cada cenário, cada emoção. 

Um dia, porém, ele chegou acompanhado.

Era um pequeno garotinhos de olhos cinzas e cabelos violeta. Ele era apenas um pouco mais baixo do que Ryota, mas sua expressão tensa e cabisbaixa era visivelmente diferente da dela.

Apesar da tentativa de Stella tentar comunicar-se com ele, e Albert o incentivar a se apresentar, o garoto apenas se virou e saiu correndo da casa sem dizer uma palavra. Ryota saiu atrás dele, deixando os adultos para trás para encontrar o garoto.

— Achei!

Após procurar durante algum tempo, Ryota logo localizou o garoto sentado atrás das pilhas de fenos. A passos lentos, ela se aproximou. Ele estava abraçando as pernas, olhando para a frente. 

— Oi! Ah, oi? Tá me ouvinduuuu?

Se agachando, após falhar em chamá-lo, sacudiu a mão na frente do rosto dele, esperando uma reação. 

— … Uh.

— Ah! Agora sim! Você me olhou direitinho! — Ao segurar o rosto dele com as mãos, ela o ergueu, forçando-o a encará-la. Até que a garotinha deu um suspiro de surpresa e admiração. — Caramba! Seus olhos são lindos! Aaaah, é a primeira vez que vejo alguém com olhos assim!

Diante da fala dela, que parecia sincera até demais, o garoto arqueou as sobrancelhas, mas não recuou quando ela o soltou. 

— Ei! Quer ser meu amigo? Qual o seu nome? Ah, espera, calma, eu ia te convidar pra almoçar lá em casa hoje! Tem bolo de cenoura de sobremesa e eu mexi a cobertura! Mas não conta pra mamãe que passei o dedo na massa antes, tá?

Ryota pôs o dedo indicador na frente dos lábios, rindo baixinho de forma sapeca.

— … Zero.

— Hm?

— M-Meu nome… É Zero.

Após um brilho momentâneo surgir nas íris do garoto, assim ele a respondeu com uma voz rouca após tanto tempo sem falar. Porém, Ryota, que não sabia disso, apenas abriu um sorriso ainda maior e segurou sua mão.

— Zero? É um nome bem esquisito e diferente, mas eu gostei. Isso te faz especial, né? Ao menos é o que a mamãe me disse.

Colocando-se de pé, Zero estremeceu quando as mãos dos dois se apertaram um pouco mais e ele foi puxado às pressas de volta para a casa.

Naquele dia, almoçaram todos juntos. Apesar da pequena faísca de brilho no olhar que raramente aparecia, ele ainda era um garoto recluso e difícil de conversar. Qualquer que fosse o motivo, Zero era diferente de todas as crianças que conheceu até então.

Eu o achei fascinante. Provavelmente por isso, fiquei grudada nele como um carrapato. Mas, ao mesmo tempo… 

Ela queria vê-lo sorrir. Assim como todos ao seu redor, que estavam constantemente sendo alegrados por suas trapalhadas, se houvesse uma única pessoa incapaz de compartilhar dessa felicidade, os esforços de Ryota não teriam sentido.

No começo, Zero a ignorou. Mesmo com suas tentativas desastradas de chamar a atenção, resultando em receber encaradas tediosas, como se visse um inseto, nada tinha efeito nele. Mas ela não desistiu. Sempre que ele visitava o vilarejo com Albert, Ryota segurava na mão dele e o puxava para brincar. Ela lia os livros de contos, saíam para explorar a floresta, colhiam flores juntos, o empurrava no balanço, pulavam no lago para nadar durante o verão, fazia cócegas e recebia beliscões em retorno, roubava doces escondido apenas para dar de presente a ele — tudo o que fosse possível, Ryota fez.

Provavelmente, tornou-se impossível para Zero ignorar Ryota. Então, ao longo do tempo, ele parou de fingir que não a via e ao menos observava suas trapalhadas. Por vezes, quando algo muito desastroso acontecia, via relances de um sorriso. Raros eram os dias em que podia ouvir a risada dele, suas íris ganhando um pouco mais de vida do que antes. Ela se pegava fascinada pelas reações de Zero, e queria ver todos os tipos de feições que poderia fazer.

Apesar de Zero crescer como um menino rígido para conversas e tímido para ficar perto demais de Ryota, ela nunca se importou. Sentava-se bem ao lado dele no gramado, com os joelhos se tocando, e cutucava seu ombro como uma pirralha. Ela sabia que, eventualmente, Zero seria forçado a retribuir a provocação, fosse puxando suas bochechas ou fazendo cócegas por vingança. Em geral, não importava — se ela pudesse vislumbrar o sorriso dele, se pudesse fazê-lo se esquecer ao menos um pouco da tristeza que estava em seu coração, era o suficiente.

Ele nunca contou sobre suas origens, muito menos o motivo de sempre estar distante e pensativo. Mesmo Albert e Stella, que sabiam, respeitaram o espaço do garoto.

— Zero… Teve uma vida difícil. Talvez você não entenda agora, mas, por favor, não o pressione demais.

— Então, o que eu tenho que fazer? O que faço pra ele gostar de mim?

— Apenas seja você mesma. No fundo, ele é um bom menino. Tenho certeza que vão ser bons amigos.

Os conselhos de sua mãe acalmaram seu coração agitado. Mesmo quando foram ajudar Jaisen a limpar o restaurante, ele se mantinha rabugento e distante. Às vezes, ela se perguntava se podia mesmo ajudá-lo.

Era um sentimento que nasceu e permaneceu no fundo de seu coração até o presente — mesmo com todas as coisas que passaram juntos, nunca era o suficiente. Ryota sentia que jamais o retribuiu por tudo o que fez.

Mas, tudo bem… Se tudo pudesse continuar assim pra sempre, eu ficaria feliz. 

Entretanto, a realidade se provou mais dura a cada dia. 

E em seu aniversário de dez anos…

— … Mamãe?

A primeira coisa que Ryota ouviu foi um barulho alto da sala de estar. Ela estava no quarto, lendo, quando se assustou com o som. Chamou por Stella, mas não houve resposta. Imaginando que deveria ter derrubado alguma coisa, ela saltou da cama e caminhou para fora do cômodo.

— Mãe? 

Daquela altura, tudo o que viu foi a figura dela no chão. Era como se tivesse se ajoelhado para pegar algo que caiu, e Ryota suspirou de alívio.

— Eu posso pegar pra você! Não se preocu-

A voz alegre em ajudar engasgou e diminuiu até parar. Os passos firmes dela hesitaram e seus olhos se arregalaram um pouco.

Ela nunca tinha visto tanto sangue.

Como a trilha de um riacho que abria caminho, ele delineou o chão e se espalhou ao redor do corpo da mulher que caiu sentada, cuspindo sangue. A hemorragia manchou a pele pálida de Stella, irradiando de seu nariz e boca. 

— … M-Mãe! 

Após o que pareceu um longo minuto de choque, a garota recobrou a consciência e correu aos berros para onde Stella caiu. Ao som da voz familiar, as pálpebras fechadas tremeram antes de abrir, revelando uma fragilidade tão grande que Ryota sentiu que tocava vidro rachado.

Caindo de joelhos, ela tentou verificar o sangue e de onde vinha. Suas mãos ainda eram pequenas, mas puderam deduzir que Stella não poderia ter vomitado tanto sangue de uma vez. Quando seus olhos fisgaram a mancha de sangue na barriga, foi como se o som sumisse do mundo.

O que… É isso?

— … Ryo… Ta… Não olhe…

Mas era tarde demais. 

A lâmina da faca brilhou aos olhos, e Ryota entendeu a origem do sangramento. A mente dela entrou em curto-circuito, os dedos perderam as forças e as lágrimas brotaram de seus olhos.

— … Por quê?

Sua voz sequer saiu com o murmúrio, mas, de alguma forma, Stella respondeu, ainda engasgando com a voz chorosa.

— … Ah… Me desculpe… 

Ryota não podia ouvir mais nada. Ela não entendia. Por que sua mãe estava se desculpando? Por que havia uma faca com seu sangue no chão? Por quê?

Por quê? Por quê, por quê?

— … Era… O único jeito…

Ela não entendia. Estava ficando tonta. O mundo escureceu, e seu corpo tombou. Tinha quase certeza que desmaiou por apenas alguns segundos, mas mesmo nesse momento, Stella conseguiu segurar a filha contra o peito.

Após o que pareceu alguns segundos, o calor de seu corpo se dissolveu e ela recuperou a consciência. Ainda sentia-se tonta, sem ar. Havia um cheiro forte de sangue impregnando suas narinas, provavelmente porque estava igualmente encharcada dele.

— Minha… Querida…

… Eu reconheço esse cenário.

Era um que viu tantas vezes em seus pesadelos. A Ryota viria a sonhar com este momento centenas de milhares de vezes nos próximos oito anos. Não apenas a morte derradeira que causaria uma fissura entre o mundo de calor e o preto e branco, mas também traria até Ryota a maior e mais dolorosa perda.

Mas, diferente de suas memórias conturbadas, esse era o momento completo — a visão que havia visto, mas o cérebro não se permitiu assimilar.

— … Mãe?

— Eu… Estou aqui… 

Ainda era aquele sussurro carinhoso ao ouvido. Mas a voz falhava, tossindo um pouco, como se fosse difícil para ela até mesmo falar.

— Não… Por favor… Por favor, não me deixe aqui.

Stella, com uma feição leve, apenas observou a filha choramingar em seus braços, escondendo o rosto no peito da mãe.

… Aaah… Tem cheiro de sangue.

— R-Ryota… Olhe… Pra mim, por… Favor…

Depois de um momento, o rosto cheio de lágrimas se levantou. Era uma visão de partir o coração, mas não havia nada a ser feito. Não havia mais tempo a perder, então Stella precisava aproveitar seus últimos momentos.

— … Você nunca… Vai estar sozinha.

— Não! Eu vou! Sem você, eu não-

— … Albert… Estará com você. E… O Zero… E todos… Do vilarejo…

Ainda que o sangue continuasse a escorrer, o sorriso gentil dela não desapareceu. Com um esforço considerável, Stella tocou o rosto da filha, percorrendo sua bochecha com o polegar e manchando a pele com seu próprio sangue.

— … Um dia… Você vai entender.

— Não… Não, não…

— Então… Agora… Tudo vai acabar… 

— Não, mãe… Não… 

— … Eu vou… Proteger você… Agora e sempre.

Ryota não entendia as palavras, então sua mente não se esforçou para lembrar-se delas. Mas a do futuro, cuja mente estava preparada para ver aquela cena novamente, não sem ainda sentir a dor da perda, tentou prestar atenção ao máximo naquelas palavras.

Elas são importantes. De alguma forma, eu sei… 

— … Eu te amo, querida.

— Eu… Ah, eu também! Mãe, eu… Eu sinto sua falta! Não vai, por favor!

— Eu te amo, Ryota… Nunca… Se esqueça disso.

Mas eu me esqueci.

Quando encontraram o corpo de Stella, ela estava fria. O sangue grudava em suas roupas e nas de Ryota, que adormeceu ainda a abraçando, como se tentasse segurar aquele calor por tanto tempo quanto possível. Mas era óbvio que a vida de uma pessoa nunca poderia ser mantida, nem mesmo através das lamentações e orações de uma garotinha em seu aniversário.

Ao despertar, Ryota não se lembrava de nada. Foi como se sua mente tivesse sofrido de um apagão, e nem as vozes ou rostos eram familiares. Havia apenas a escuridão, o calor e a fraqueza. O cheiro de sangue ainda era fresco, mesmo quando trocaram suas roupas e ajudaram a tomar banho, porque ela não respondia ou não reagia a estímulos externos.

Era como uma boneca. Mal piscava ou respirava. Deixaram-na sentada no sofá, encarando a parede, pelas próximas horas. Mesmo enquanto cuidavam de limpar e investigar a casa de Ryota, era óbvio o que havia acontecido ali — e que havia assistido a tudo, se agarrando tão forte ao corpo da mãe que três pessoas foram necessárias para soltá-la sem machucar a menina.

O funeral aconteceu apenas dois dias depois. Nem quando foi guiada por Jaisen, segurando sua mão cuidadosamente, até o cemitério onde haviam enterrado-na, nenhum tipo de expressão surgiu em seu rosto. Havia apenas a pura indiferença, uma neutralidade quase fria, mas todos sabiam que Ryota estava sofrendo mais do que qualquer um.

Nem Albert ou Zero compareceram.

E não viriam a fazer qualquer visita nas próximas semanas.

Apenas Zero voltou para o vilarejo de Aurora desde então. Quando chegou, notou que havia algo de errado, e o presente de aniversário atrasado que trouxe para Ryota caiu no chão ao ouvir as notícias.

Ryota não havia saído de casa desde o funeral. Ela permanecia deitada ou sentada em sua cama, encarando a parede, em transe. Não sentia fome ou sono, mas por vezes adormecia em horários irregulares. Foi apenas graças à ajuda dos vizinhos para cuidar dela e da casa que a garota não havia definhado até a morte ali dentro.

Mas não podiam culpá-la. Era difícil fazer Ryota reagir, e forçá-la a fazer coisas nunca foi o caminho ideal para ajudar em sua recuperação. No começo, Zero achou que era um exagero, mas quando entrou em seu quarto, teve a sensação de que estava sonhando. A maneira como Ryota olhou para ele, as íris tão escuras quanto o oceano, como se sequer o reconhecesse, doeu tanto que parou de respirar.

Ela nunca contou para ninguém como se sentia, e nem pretendia fazê-lo. Sua reação imediata foi fechar-se como uma concha, contendo cada uma das lágrimas, cada grito de dor, cada lamento, cada fúria, dentro de si. Periodicamente, elas escapavam, mas apenas quando Ryota se sentia confortável o bastante para demonstrar-se frágil. Em geral, era ao lado de Zero ou Jaisen, que se tornaram seus pilares emocionais.

Zero, em especial, sempre sabia o que ela estava pensando. Era assustador. Ainda quando sorria, podia prever quando as lágrimas iriam escorrer. Sabia quando estava com raiva ou estressada, talvez por pequenos detalhes e manias que nem ela mesma conhecia. 

Agora, Ryota conseguia imaginar o motivo da mudança brusca de tratamento que ele teve para com ela. Talvez ver a garota que sempre estava sorrindo, aparecer como estivesse morta por dentro, o corroeu. Por culpa? Mágoa? Tristeza? Ela não sabia, mas foi necessário para que Zero se tornasse mais honesto com os próprios sentimentos. Demonstrando mais afeto, cuidado e gentileza com ela. Ainda mantinha sua personalidade durona na frente dos outros, mas era menos rígido, embora por vezes fosse aquele garoto emburrado e tímido que os fazia zombar um do outro como quando eram crianças.

Era seu porto seguro. Estar com Zero foi o que a ajudou a sair de seu casulo, e em alguns meses, retornar a ser a Ryota que todos conheciam. Fingindo que nada aconteceu, que a morte de sua mãe não a afetou tanto assim. Nunca revelando que passava noites em claro, chorando e mordendo o travesseiro para conter os soluços. A dor que a esfaqueava repetidas vezes todos os dias era insuportável. 

Apenas piorava em seu aniversário. Sempre que esse mês chegava, uma avalanche de emoções a desestabilizava, e Ryota se via sendo incapaz de mentir apropriadamente. Facas a assustavam um pouco. O cheiro de sangue, mesmo que de animais mortos, a enojava. Sons altos a faziam ter sobressaltos. Em geral, Zero mesmo assim a visitava, sem falta. Em todos os seus aniversários, ele estava em Aurora, mas nunca mencionou em voz alta a necessidade de comemorar. 

Mas, secretamente, ele tentava ser menos duro consigo mesmo. Nesses dias, se tornava mais prestativo, mais gentil e carinhoso. Segurava sua mão, a abraçava e liam juntos. Se permitia fazer até coisas que não gostava se fosse para fazer Ryota sorrir. E ela sempre soube que era um esforço da parte dele que jamais poderia retribuir, não por tanto tempo que foi egoísta em manter tudo para si mesma. 

A dor do luto de sua mãe — a maldição gerada pelo medo, culpa e memórias conturbadas foi o que a tornou quem era hoje. 

Se tudo fosse diferente… Se minha mãe não tivesse adoecido e tirado a própria vida…

E se Albert nunca tivesse parado de ir para Aurora? E se o vilarejo nunca tivesse sido destruído? E se Zero tivesse criado coragem para dizer como se sentia muito antes disso tudo acontecer? 

Você pode tornar isso real, Ryota… 

Não, isso não era realidade.

É fantasia. Outra mentira, mas a maior de todas que posso fazer para me proteger. 

Esquecer a verdade e viver no conforto da ignorância? Sim, era tentador. Não importa o quão hipócrita ou falso fosse, ainda teria a chance de estar presa dentro daquele calor de verão para todo o sempre.

… Não. Se fosse a “eu” antes dessas provações, provavelmente teria aceitado sem pensar duas vezes.

Ryota estava cansada de se esconder da própria mente e apenas assistir.

Esse passado… Esse mundo… Não existe mais. 

Ela se forçou a reconhecer isso. Não importa o quanto tente se convencer do contrário, Stella e Albert estavam mortos. E poderia perder as duas únicas pessoas que ainda sobraram desta felicidade caso os abandonasse à própria sorte.

Se eu perdi essa felicidade… Então, vou construir outra.

Ao lado de todos eles — de todos que se importam, e de que queria compartilhar daquele conforto, segurança e afeto.

Um novo lar… Uma nova Aurora. 

Quando a conclusão chegou à mente, Ryota sentiu o mundo desaparecer uma segunda vez. Mas, diferente da primeira, nasceu ali um verdadeiro sorriso de satisfação conforme seu peito se tornava leve como uma pena.

E, finalmente, Ryota aprendeu a superar.



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