Volume 12 – Arco 4
Capítulo 62: O Destino
Enquanto o mundo continuava do lado de fora, dentro de um espaço cujo tempo não poderia ser medido…
— Foi isso o que disse pra elas? “Vão embora, estão atrapalhando?”
— Está equivocada. Apenas as alertei de que nosso tempo de descanso chegou ao fim, portanto, devem retornar ao trabalho.
— Expulsou elas sem dó nem piedade, hein? Que crueldade, néé?
A garota de olhos bicolores gargalhou e a donzela diante dela suspirou. Ananque era um indivíduo cuja personalidade sempre agradou Sofia. Embora suas outras irmãs também fossem bem-recebidas, diferente de Mania, que era energética e catastrófica, e Kakia, cheia de sarcasmo e exuberância, a outra garota tinha um ar sofisticado e cheio de uma juventude saudável.
Dentre as Entidades, Ananque era uma das mais sociáveis, quiçá a mais comum à primeira vista. Seu comportamento casual e energia contagiantes rapidamente fariam qualquer um perder a timidez — foi o que tornou tão fácil, para ela, conquistar diversos seguidores cujas vidas foram tomadas ou apenas desistiram desde o começo.
— Era necessário. Conforme a provação prossegue, não posso permitir que elas se envolvam diretamente na decisão e no caminho ao qual o Índigo deve tomar.
— Mas a gente se divertiu de montão assistindo, hein?
Sofia não podia deixar de concordar. Lembrava-se das gargalhadas de Mania com as mortes, dos suspiros de tédio de Kakia e dos olhos brilhantes de interesse de Ananque. Reunidas para assistir às provações, como se estivessem em um cinema, ou em um teatro, elas se sentavam para apreciar o espetáculo se desenrolar.
Era um dos únicos entretenimentos disponíveis, ainda que fosse mal visto pelos olhos humanos.
Ao menos era um alívio poder encontrar algum modo de distração que não fosse levar Sofia à sua repetição de dias e atos que não mais a saciavam. Uma indisponibilidade que, por vezes, a levou a se questionar quanto mais tempo deveria permanecer ali.
Com aquele papel, pronunciando aquelas palavras, ocupando aquele espaço.
O Empíreo era um lar cuja segurança era garantida, mas também uma lembrança da prisão ao qual viviam e decidiram abraçar.
— Você não parece muito contente, Sofia.
O tom de voz de Ananque ainda era doce como de costume, embora o olhar das íris dourada e preta não fosse nada amigável. O sorriso dela não falhou nem por um instante, como se a conversa agradável permanecesse.
Sofia sabia que não era o caso, mas não deixou o leve nervosismo transparecer.
— Estou entediada. A provação se encerrou cedo demais.
Desviando-se do assunto com uma desculpa, ela assim respondeu, fazendo com que o Destino arqueasse uma sobrancelha. A análise da íris brilhante como o sol não passou despercebida, mas movimentos bruscos e suar frio não era algo que uma pessoa, que conhecia e lia bem as reações e pensamentos, faria por descuido.
— Tsc, tsc. Que bobinha, hein.
Mas era óbvio que a Entidade não deixaria a atitude passar despercebida. Quem mais além do próprio Destino seria capaz de prever e até moldar cada uma de suas ações?
Se havia uma pessoa capaz de barrar o conhecimento de Sofia, seria a própria Ananque.
— Você não pode favorecer alguém apenas porque te convém, sabe?
Porque diferente de Sofia, que apenas podia criar previsões com base nas ações do presente e usando o passado como base…
— Seria um problema se o nosso Destino fosse mudado, néé?
… Ananque era o próprio futuro. Sua capacidade de controle e manipulação estava além da compressão para alguém como Sofia, que apenas podia vê-lo, e não tocá-lo.
Com um salto leve como uma pena, Ananque pousou em cima da mesa e segurou o rosto da outra moça entre as mãos. Isso permitiu que ambas pudessem se encarar quase na mesma altura, os dedos delicados do Destino acariciando a pele da Sabedoria.
Era um toque de superioridade e zombaria — o roçar nunca foi de afeto ou cuidado, mas uma lembrança de que sempre estiveram em suas palmas desde o começo.
Esse era o papel de Ananque — garantir que os fios do Destino não sejam interrompido por nós. Ela se livraria deles, seja desmontando ou cortando-os de seu caminho. Assim como não via os humanos como criaturas vivas, nem mesmo suas irmãs eram dignas de compaixão.
Uma crueldade gentil e doce que forjava o medo da possibilidade, sequer de considerar pisar em falso. Se Sofia podia assistir aquela imagem, chegando-lhe na mente como informações lidas de um livro, criadas pela sua interpretação ao que era descrito, Ananque era a própria escritora.
Ou melhor, era como se pudesse tomar a caneta a força e rabiscar qualquer coisa do que já tinha sido narrado. Rabiscar, arrancar as páginas e remarcar era como respirar.
Embora mesmo Ananque tivesse as próprias limitações, o alcance de seus poderes estavam centenas de anos luz além dos de Sofia — não havia como entrar com objeções, quaisquer que fossem, a menos que isso as encaminhe para o Destino esperado.
— Estou ciente de minha função. Não a decepcionarei.
O sorriso de Ananque suavizou conforme ouvia as palavras que queria. E estava ciente de que eram verdadeiras, afinal o conhecimento raramente mentia, apenas era convertido para uma meia verdade.
Era o suficiente, ao menos por enquanto.
— … Muito bem.
Soltando o rosto da beldade, Ananque endireitou-se em cima da mesa e saltou para o chão. Era como uma boneca, que não fazia ruídos e sequer parecia ter peso, conforme se movia para longe da mesa de chá.
— O tempo está acabando, Sofia. Não deixe de colocar a Filha da Luz em seu devido lugar antes que Ela descubra.
Sem esperar por uma resposta, sem sequer necessitar de uma porta ou dos estalar dos dedos de Sofia, a imagem de Ananque se desfez até desaparecer, como particular derretidas no ar, mesclando-se às estrelas.
Quando a presença desapareceu, um suspiro discreto escapou dos lábios de Sofia. Então, ela estendeu a mão no ar, permitindo que o livro de capa dura se materializasse em seus dedos.
Eu me pergunto o quanto posso ver até este dia.
Ao menos, esperava que fosse o suficiente para que seus objetivos não escapem de seu alcance. Com aquela expectativa em mente, ela deslizou as páginas para o lado e começou a ler.