Volume 12 – Arco 4
Capítulo 60: Egoísmo da Mentira, Conveniência do Perdão
Ao abrir os olhos, o que atravessou suas retinas não foi apenas a brilhante luz que cortava as folhas da árvore, mas também a figura da pessoa parada atrás do banco de madeira.
O rosto do homem, que até então estava adormecido, não moveu um músculo apesar de não estar mais sozinho. Diferente de pessoas comuns, que teriam se sobressaltado e no mínimo gritado, Sasaki permaneceu impassível.
Ryota, por outro lado, deixou seus lábios se abrirem em um singelo sorriso.
Seus braços, apoiados no encosto do banco, observavam as feições do curandeiro conforme despertava. Por algum motivo, a maior parte de seus encontros sempre foram assim, era quase como se o mundo gostasse de rir das circunstâncias em que se conheceram e se aproximaram.
Para a garota, que agora conhecia parcialmente a verdade por trás de tudo, não eram mais memórias tão divertidas. Em contrapartida, chamá-las de amargas também era um exagero.
Agora que suas emoções e pensamentos pareciam estáveis, Ryota se permitiu refletir com mais calma todos os acontecimentos que vivenciou. Desde o começo, quando acordou em seu aniversário de dezoito anos, sem saber que aquele seria o pior dia da sua vida.
Na verdade, grande parte dos seus “piores dias” foram durante seu aniversário. Mais uma vez, o “Destino” insistia em zombar dela das piores maneiras possíveis.
— Você não cansa de dormir o dia inteiro?
A primeira a quebrar o silêncio foi ela, que começou a conversa com uma abordagem amigável. Sasaki esboçou um riso com o nariz, apertando as pálpebras preguiçosamente.
— Se pudesse, eu viveria comendo e dormindo. Igual um gato.
— Parece um pouco chato, na minha opinião. Não tem mais nada que queira fazer?
— Vejamos… Que tal… Cochilar durante uma tarde ensolarada?
— E voltamos à estaca zero.
Ryota zombou e Sasaki retrucou com um riso. Aquele costumava ser o estilo de diálogo que tinham, corriqueiros e esquecíveis, mas agradáveis.
Uma grande diferença separava aqueles dias dos atuais — quase palpável o bastante para que pudesse rasgar ao meio como um pedaço fino de papel.
— Achei que estaria com seus amigos. Estamos em semana de provas, não?
— Eles estão ocupados… O que eu tinha pra fazer, já terminei.
Ainda que a quantidade de materiais para estudo fosse maior para Ryota, seus colegas de turma, Bellatrix e Alexandre, tinham muito mais a se dedicar. Com seus cursos gradualmente chegando ao fim e a aproximação da formatura, a pressão criada em cima das mentes de dois daqueles prodígios eram maiores do que ela ou Dio poderiam sequer imaginar.
Apenas por desencargo de consciência, o garoto mais novo decidiu dar espaço para Ryota conversar à sós com Sasaki. Ela se perguntou se ele estaria assistindo ao ensaio da turma de teatro, ou caminhando pelas exposições de arte na cidade, em algum lugar.
— Então, está entediada demais pra fazer qualquer coisa, e veio me acordar?
— Em partes. Eu também queria conversar com você.
Dessa vez, você não está dormindo, ou se perderá em uma realidade que nunca existiu.
O curandeiro piscou uma vez para assimilar as palavras e a visão da garota ao seu lado. As roupas escuras de antes deram lugar à uma mescla de seu antigo estilo, mais casual e prático, ao atual, próximo do descabido de cuidados. De certa forma, era quase nostálgico vê-la usando vermelho outra vez.
Assim como quando se conheceram, há tanto tempo atrás.
Para meios de recordação, a última vez em que puderam conversar adequadamente foi há meses atrás. Desconsiderando pequenas trocas de palavras ou olhares quando se cruzavam pelos corredores, nem Sasaki ou Ryota procuraram um meio para se entender de verdade.
Era um exagero considerar o que tiveram até então uma amizade. A relação unilateral de confiança forjada por uma gentileza considerativa se quebrou rapidamente quando se conheceram melhor.
Na verdade, foi a própria Ryota quem cortou aqueles laços — ou tentou. Tal como fez com todos os outros, através de um acesso de fúria, mágoa e desgaste, mente e coração foram separados, criando um caos ainda maior dentro dela.
E, como todos os outros, ele assistiu sua decadência.
Mas diferente de todos esses outros, era um dos únicos que poderia ter lhe estendido a mão, porque eram conhecidos de longa data. Os demais demandaram muito mais para se aproximar e criar um laço de amizade respeitável o bastante.
Ao invés disso, antes mesmo de a permitir ouvir a verdade, Sasaki tentou pisotear ainda mais o coração já machucado dela.
Criou a ilusão de um calor, de braços que poderiam recebê-la quando precisasse, sem jamais expor o que havia em suas costas — a cruz que carregava, e que continuava a pesar.
Uma farsa cujo nome sequer lhe pertencia.
Quem sabe, poderia ser considerado como uma pessoa fria. Outrora, considerou-se como uma bomba de emoções que, por levar-se pela irracionalidade, também perdeu pessoas da mesma forma que a garota de cabelos negros.
A diferença era que Sasaki tomou o caminho que Ryota escolheu se afastar. Assim como Sofia, e tantos outros.
Em seu coração, não havia culpa por tê-la abandonado à própria mercê. Mas era capaz de compreendê-la.
— Sinto muito pelo o que disse da última vez.
Novamente, foi Ryota quem iniciou o assunto delicado. Sua expressão era firme, mas também frágil de uma forma que refletia sua personalidade moldável. Sempre em evolução, ganhando maturidade, purificada como uma espada que recebia golpes após golpes de seu ferreiro.
Forjada à perfeição. Afiada como uma lâmina. Mas não era indestrutível ou capaz de causar dor a menos que seu lado perigoso tenha sido exposto. Caso contrário, sua face lisa e inofensiva vinha à tona.
— Eu estava errada em desconfiar de todos e amaldiçoá-los pelos meus medos. Foi… Imaturo e arrogante da minha parte.
Não importa o quão potencialmente ruins aquelas pessoas fossem, nenhum deles jamais lhe causou nenhum mal. Se em alguma realidade, em alguma ocasião passada, ou qualquer possibilidade existente, ainda alheia ao seu conhecimento, tivessem ou seriam, não importava.
— Não fui justa em julgá-los sem os conhecer antes. E apesar de suas palavras terem doído, consigo entender o motivo de tê-las dito.
Ao mesmo tempo em que sua própria situação era compreensível, não justificaria o que disse ou fez. Havia uma grande diferença.
E era por isso que Ryota, ainda que Sasaki, Sofia, ou qualquer outro que a tivesse manipulado ou magoado, sentia-se tão calma agora.
Sim, seu coração doía. Por vezes, apertava ao ponto de não poder respirar. As memórias do que ouviu ou viu não iriam desaparecer. Mas eram justamente por estarem ali que a permitiram — e a forçaram — a abrir os olhos.
Ela errou, os outros erraram. Então, o quê? Iria cultivar aquelas emoções pelo resto de sua vida? Assumiria pensamentos, conexões e objetivos com base nas próprias conclusões. Baseado em quê?
Ryota sequer os conhecia, como poderia compreender a origem de suas ações, ou como sequer consideraram suas decisões que os levaram a este ponto?
Ela não queria mais cometer erros, mesmo que fossem inevitáveis. Então, tudo o que estava ao seu alcance agora era, ao invés de julgar o que estava debaixo de seu nariz, se permitir questionar, considerar, imaginar… E conversar.
Seria muito fácil resolver cada um de seus problemas com explosões sentimentais, através da violência ou da exposição, buscando por uma satisfação passageira.
Mas não era esse o estilo de vida que Ryota queria ter — não mais.
Caso contrário, levada pelas emoções carregadas de traumas passados, cometeria os mesmos erros, tropeçaria nas mesmas pedras, cairia nos mesmos buracos.
Foi assim que esteve vivendo desde então — como um ciclo de repetições. Nunca se permitindo mudar, atordoada e assustada como uma criança cheia de arranhões que jamais cicatrizaram.
O que aconteceria se essas feridas desaparecessem? A Ryota ainda seria ela mesma se as permitisse sumir? Era por cutucar aqueles machucados, que podia se recordar de quem era e de onde veio, para onde iria.
— Não estou mais irritada com o que disse a mim quando cheguei em Urânia pela primeira vez. E também quero entender o que o motivou a mentir pra mim por tanto tempo. Ou melhor, a omitir tantas informações.
Sasaki não respondeu. Entretanto, aquilo não a impediu de continuar desabafando, sua voz suave como a brisa que tocava-lhe os cabelos.
Com um toque no peito, acima do coração, perguntou:
— … Diz respeito ao seu voto de lealdade com sua mestre… Com a Sofia, estou certa?
Novamente, silêncio. Mas esse era tanto em concordância, quanto em paciência, aguardando o fim de suas palavras.
Quando tocou o peito, referia-se à marca do voto que Sasaki tinha na própria pele. Ele quem lhe mostrou, quando se conheceram, como modo de demonstrar confiança à garota ingênua do interior, que desconhecia totalmente o mundo de fora.
Ryota desconhecia se Amane, Scarlet ou qualquer outra pessoa tinha a mesma marca, mas julgando pelas ações de cada um dos guardiões de Sofia, era bem possível.
— Sendo sincera, eu detesto mentiras. Se possível, queria que ninguém nunca precisasse dizer nada que pudesse ferir outra pessoa.
Claro, era apenas um de seus pensamentos egoístas e inocentes.
Ocultar a verdade, qualquer que fosse, era reflexo do medo — seja de perder a pessoa a quem mentiu, ou de causar danos próprios.
As mentiras sempre foram o grande inimigo de Ryota. Grande parte das vezes, mesmo as menores geraram uma bola de neve que, mais tarde, não pôde ser controlada. Não apenas por parte dela, mas de outras pessoas, que presenciou desencadearem os próprios fins porque se recusaram a falar.
— Mas seria injusto da minha parte dizer que elas não servem pra proteger algo importante.
Quem mais mentiu naquela vida, senão a própria Ryota? Seja para os outros, ou para si mesma, ela trabalhou e se esforçou para fingir algo que nunca foi. Por vezes, para proteger. Em outras, para afastar e destruir.
Cada uma daquelas inverdades foram forjadas pelo trauma, a sensação assustadora de perder algo vital. Ou vivenciar uma experiência que no passado foi dolosa demais ao ponto de não suportá-la uma segunda vez.
— É por isso que, apesar de me doer, de ser muito difícil, eu consigo te entender um pouco. Nós somos… Um pouco parecidos, nesse quesito.
A voz que era murmurada para Sasaki parecia-se com o chiado das folhas das árvores, vibrando com a brisa do verão.
Enquanto ouvia Ryota falar, a mente do curandeiro vagava.
“Você, melhor do que ninguém, deve entender como é aceitar uma responsabilidade cujas consequências podem ultrapassar seus limites.”
Sofia nunca poderia ser menos certeira em seus argumentos. Era tão direta que quase chegava a perfurar o peito.
Obviamente, ela nunca esteve falando apenas deles dois. A própria Ryota ao seu lado tinha trilhado um caminho que a levou a este mesmo fim.
Não importa o motivo, todos foram inconsequentes e desesperados. E era justamente porque eram mais velhos, mais experientes, mais fortes, que podiam dar a chance dos mais jovens saber como lidar com as próprias escolhas.
Nunca deveriam tomar decisões por eles. Seu trabalho era oferecer os armamentos e explicações mínimas, permitindo que se aventurem, se machuquem, reflitam e encontrem o próprio futuro. Podiam errar, se arrepender ou chorar — desde que atravessem a linha de chegada, seriam bem recebidos por seus esforços.
Nesse momento, também era trabalho deles abraçar e acolher as crianças feridas, magoadas e cansadas. Parabenizá-las por seus esforços, explicar e aconselhar. Discutir e dar o sermão pelos erros, para que não o repitam e entendam a razão. Para que possam experienciar e traçar seus próprios destinos.
Talvez isso me torne um péssimo aluno dele. Não fiz quase nada do que me ensinou.
Sasaki não pôde conter um pequeno sorriso.
Eu devia me sentir, ao menos, um pouco envergonhado.
Ele se perguntava se Albert puxaria sua orelha outra vez por estar gazeando outra vez.
Bem, acho que nunca mudei esse costume. Não consigo evitar.
— Vai me perdoar? É isso o que está tentando dizer?
Após longos minutos calado, Sasaki finalmente se pronunciou. A expressão de Ryota não mudou em nada. Como se estivesse esperando pela questão o tempo todo.
— Nós erramos um com o outro. Eu quero seguir em frente, reconhecer isso e mudar. Por isso vim pedir desculpas, e deixar claro que estou tentando te perdoar também.
Uma resposta madura. Ele tinha de reconhecer que se fosse a Ryota de meses atrás, talvez sequer considerasse a ideia. Ainda antes, provavelmente se sentiria culpada por não o perdoar e pesaria muito mais a balança para o seu lado.
— “Tentando”? Não é um pouco conveniente demais?
— Tem razão. Mas, sabe, eu meio que gosto de coisas convenientes.
Ela soltou um pequeno riso. A verdade era que Ryota sempre foi do tipo que tendia a aceitar e moldar as coisas para que parecessem mais favoráveis, para justificar seus atos e emoções. Ainda que não fossem verdade, era melhor do que se afundar na dificuldade.
— Além de conveniente, também quero que seja justo. Então…
Inspirando fundo, fez uma pausa, então fortificou:
— Eu vou te perdoar, e espero que me perdoe também. Quero estar em paz comigo mesma, mas se você vai ou não aceitar isso, não é mais problema meu.
Estava fazendo tudo o que estivesse à altura para mostrar sua evolução. Havia arrependimento, vergonha e mágoa, sim, mas diferente de outras pessoas, as mentiras de Sasaki não lhe causaram nenhum tipo de dano real.
Apenas magoaram, mas dependendo do ponto de vista, poderia entendê-lo.
Seria diferente com outras pessoas, como Gê ou Mania, que tomaram vidas importantes por diversos motivos até incompreensíveis. Essas, sim, eram aquelas feridas que mais demandariam tempo para se fechar e cicatrizar.
Entretanto, antes de atropelar suas emoções e combiná-las, o objetivo de Ryota agora era manter a calma, respirar fundo e resolver uma coisa de cada vez. E, lentamente, aliviar a carga que lhe pesava o peito.
— O que quero dizer com tudo isso… É que não quero carregar mais fardos do que consigo. Se tem aqueles que posso me livrar e me resolver, o farei.
Se necessário pedir perdão, pediria.
Se necessário discutir, discutiria.
Se necessário reconhecer os próprios erros, reconheceria.
Se necessário se impor, se imporia.
Tudo demandaria tempo para ser processado e para que pudesse se resolver consigo mesma. E, assim, fazer o mesmo com os outros.
— Você me ajudou no passado, Sasaki. Várias vezes. Então, não tenho motivos para não te agradecer por isso.
Não podia equilibrar os favores e os deslizes. Eram acontecimentos distintos. Seria injusto de sua parte medir duas coisas diferentes com propósitos opostos.
Afinal, foi a própria Sofia quem mencionou antes.
“Sasaki é um homem de bom coração. Tudo o que ele fez foi movido pelas próprias intenções e convicções.”
Como um curandeiro não salvaria a vida de pessoas inocentes?
Se ele optou por magoar essas mesmas pessoas mais tarde, não foi por se tratar de trabalho ou respeito à vida, mas uma causa totalmente diferente.
Interrompendo sua linha de raciocínio, um pequeno riso com o nariz escapou de Sasaki. Quando olhou, Ryota notou que ele tinha aberto os olhos. Encarando as nuvens brancas no céu claro.
— … Vocês são mesmo avô e neta.
Sabendo que se tratava de Albert, a expressão de Ryota endureceu um pouco.
— Acha mesmo?
— Criar desculpas pra justificar atos de gentileza, até com aqueles que fizeram mal no passado e se arrependem agora… Nem que seja irracional ou desvantajoso, estendem a mão para quem precisa, ignorando as reclamações… Desde que os satisfaça, vão agir sem pensar duas vezes.
Parecia que Sasaki estava zombando daquela linha de raciocínio em comum, mas pela expressão, Ryota sabia que havia um sentimento profundo enraizado naquelas palavras.
Não a surpreendia que Sasaki e Albert fossem conhecidos — afinal era o avô de Sofia e seu guardião. O que chamou sua atenção, no entanto, foi quanto afeto ele expressou pelo falecido homem.
— … No passado, você disse que não conhecia o vovô. Por quê?
Na estação de trem, e diversas vezes depois disso, omissões e mentiras estavam sendo expostas. A pergunta dela continha mais hesitação do que frustração, de fato.
Se fosse a Ryota de antes, teria se enfurecido. Mas, agora que sabia parcialmente do passado de Albert, quase podia entendê-lo.
Estava pronta para ouvir tudo o que o curandeiro tivesse a dizer. Se não fosse agora, poderia ser dali a alguns dias, semanas, ou meses. Esperaria quanto tempo fosse necessário até que pudesse saber a verdade de seu coração.
Em resposta ao murmúrio, retribuiu com outro, bem quando as nuvens refletiram nas íris escuras como a noite:
— Se eu contasse, você iria querer saber de tudo na mesma hora. E se soubesse, nunca teria encontrado a senhorita Sofia. Talvez até não quisesse mais sair de Aurora, ou sairia correndo do vilarejo naquela mesma noite de tanta ansiedade. Você era imprevisível assim.
Ryota assentiu com a cabeça devagar. Foi uma resposta muito mais branda do que esperava, mas não conseguia negar o argumento de Sasaki.
Então, quando achou que poderia responder, o curandeiro soltou um suspiro a mais.
— … Eu também… Não queria ter que mencionar nossa relação. Até porque aquele velhote deve me odiar.
O sorriso de Sasaki era triste. Ela conhecia muito bem a expressão de alguém que estava mentindo, mas não era como se estivesse tentando esconder.
Estava claro como o dia que os dois tiveram alguma história profunda juntos. Talvez, envolvendo Sofia também. Mas ambos estavam sempre tão distantes, tão firmes como rochas, que nunca demonstraram qualquer luto pela morte de Albert.
Ou foi o que achou.
Até que Ryota conversou com a beldade no Empíreo algum tempo antes, e agora ouvia perfeitamente bem o tom trêmulo da voz do curandeiro deitado no banco.
Parecia que até eles tinham memórias doloridas que não queriam se recordar. Perceber algo tão óbvio fez o coração de Ryota se apertar, sua respiração prendendo na garganta.
— Salvei a sua vida porque era meu trabalho. Eu nunca deixaria ninguém morrer, nem que tivesse que dar minha vida por isso.
Um curandeiro jamais se rendia. Ainda que fosse ferido, ameaçado ou desmoralizado. A própria Eliza, uma mera menina que mal havia chegado à adolescência, era a prova viva do quanto aquelas pessoas eram fortes.
— Mas… Eu não queria que você morresse.
Os lábios de Ryota apertaram um pouco em reflexo ao nervosismo que se espalhou por seu corpo. Foi como se o mundo tivesse silenciado, tudo para abraçar as palavras de confissão do homem no banco.
O olhar dele para os céus, totalmente disperso, era um escape para que pudesse falar. Porque, se precisasse encará-la, possivelmente não conseguiria dizer. Revelar o que o fez se envolver em algo tão perigoso.
— Você era a neta dele… O Zero também era. O Jaisen… Era um velho amigo. Não importava pra mim que vocês não lembrassem de mim, porque eram novos demais, ou que não nos conhecêssemos de verdade… Eu não podia permitir que os maiores orgulhos dele se fossem.
Mais do que mágoa ou tristeza — arrependimento, determinação e frustração se mesclaram à voz anormalmente emocionada de Sasaki.
Ryota não o interrompeu.
Mas não pôde evitar de se perguntar como foi que Sasaki e Sofia se sentiram com a morte de Albert.
E qual era a história completa por trás daquelas pessoas.
— … Sinto muito por não ter dito nada antes. Eu… Não podia. E não conseguia.
Apesar de provavelmente não estar vendo, a garota assentiu com a cabeça outra vez. Seus dedos ainda seguravam no encosto do banco, com as articulações brancas de tanta força para conter o tremor.
— Meu voto com a senhorita Sofia me impede de expor mais do que devo. Para protegê-la, e para me proteger também.
Uma segurança emocional, provavelmente. Ryota se perguntou se havia algum tipo de motivação maior para que fosse necessário uma promessa de alma para não revelar qualquer que fosse a verdade por trás.
Um segredo que poderia mover cidades, reinos, impérios, Entidades.
Inspirando fundo, o curandeiro expirou o ar de seus pulmões com dificuldade. Aquilo tirou um sorriso leve de Ryota. Parecia que ele liberou um pouco do próprio peso, também.
— … Obrigada por me contar, Sasaki.
Finalmente, as íris negras desviaram-se dos céus para o outro tom de azul ao lado. Fixando-se no rosto daquela garota tão jovem, mas que se tornou tão sensata em menos de um ano…
— Que droga, vocês são tão parecidos que chega a dar raiva.
— O que foi isso? Uma ofensa?
— … Não, o oposto.
Ryota riu um pouco do jeito que ele falou, mas Sasaki gesticulou com a mão para negar a acusação.
— Sabe, agora que penso um pouco melhor, estou me sentindo ofendida.
— O quê? Por quê?
— Não importa. Estou ofendida. Tenho meus direitos de me sentir mal.
Era uma brincadeira óbvia, e o curandeiro entrou no clima fazendo beiço com os lábios. A capacidade de fazer drama era mesmo digna de um ator.
— Ah, é? E daí?
— E daí, senhorzinho, que um certo alguém meio que me prometeu que compraria uma porção de batatas fritas se nos víssemos em Celestia, sabe? Um certo alguém aí, né? Quem será?
Por um momento, Sasaki franziu a testa e encarou Ryota como se ela estivesse falando em outra língua.
— Eu disse isso?
— Ah, pronto, vai se fazer de esquecido agora.
— Eu prometi isso?! Eu nem tenho dinheiro!
— Problema seu, se vira e paga no crédito. E como assim não tem dinheiro? Você trabalha pra Sofia, cara.
— Tsc, droga.
— Você acabou de estalar a língua pra mim?
— Não, jamais, nunca faria isso.
A mentira de Sasaki foi tão mal feita que Ryota o pegou no pulo em segundos, tirando uma risada dos dois.
Com um resmungo, o curandeiro se sentou rapidamente no banco, fazendo ela se afastar do encosto e caminhar para a frente dele, cruzando os braços.
— E então? Vou querer com queijo e bacon. E molho também.
— Eu prometi uma porção de batata fria, não o combo todo! Que isso, além de formanda virou aproveitadora, também?
— Bem, algumas pessoas me ensinaram que você sempre pode usar a oferta da pessoa contra ela e exigir um pouco mais.
— Já tô imaginando…
O sorriso de Ryota cresceu com o suspiro cansado de Sasaki, considerando quem foi o fofoqueiro que colocou uma semente do mal na cabeça dela.
Colocando-se de pé, ele deu um tapa na cabeça dela de forma gentil, mas estava longe de um cafuné gracioso, o que tirou uma exclamação por bagunçar-lhe o cabelo.
— Ei!
— Quieta. Só por hoje, eu vou pagar essa bendita batata frita. Com o queijo, o bacon e o que você tá tanto querendo.
— Nossa, até que você tem um lado decente. Tô impressionada.
— Ué?! Eu sempre fui decente!
Trocando piadas escrachadas e que tiravam risos quase escandalosos da parte de Ryota, os dois caminharam para fora do campus do Instituto Gnosis com os peitos um pouco mais leves do que antes.
Enquanto debulhavam juntos as porções de batatas fritas, com direito a refrigerante e sobremesa, a noção de que pôde fazer as pazes com Sasaki lhe fez sorrir ainda mais em gratificação.
Esperava que, ao menos, pudesse fazer o mesmo com todos os outros, quando se reencontrasse com eles em Thaleia.