Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 12 – Arco 4

Capítulo 58: O Vilarejo do Alvorecer

As lágrimas ainda manchavam a face dela quando Ryota abriu os olhos e se viu em um espaço controverso ao que estava até então. O que antes era branco como a mais pura neve derreteu e escorreu até finalmente revelar um céu escuro cheio de estrelas, e o Empíreo surgiu diante de seus olhos.

Diferente das outras vezes em que havia feito aquela viagem para o mundo cheio de uma tranquilidade perturbadora das Entidades, tal qual uma sala de estar que recepcionava suas visitas, Ryota não se sentiu especialmente desconfortável — foi o oposto.

Na primeira vez, foi choque e revolta. Na segunda, fúria. Na terceira, exaustão e culpa. E dessa vez, nada além de um intenso vazio preencheu sua alma. Mas não de uma forma ruim. Foi como se, ao invés de uma tempestade de sentimentos que eram desbravados e reverberaram em ações e palavras, uma paz grande o bastante se assentou em seu coração ao ponto de sentir estar flutuando.

Ela não queria perder aquela sensação de acalento, então permaneceu exatamente onde estava — de joelhos, encarando o nada. 

Respirou fundo uma, duas vezes. O ar preencheu seus pulmões e saiu novamente com lufadas leves e sutis. O único pesar que restou foi em seus olhos inchados após as lágrimas. Mas mesmo isso era agradável ao lembrar da origem delas, ao refletir e memorizar cada palavra que a sua eu havia dito.

— Parece que enfim encontrou a bonança, filha da luz.

O que cruzou aquela margem de quase devaneio foi uma figura esbelta que se aproximou a passos lentos. Seus pés faziam a figura da água abaixo tremer, pousando como uma pena naquelas poças.

Ryota não ergueu os olhos na direção daquele rosto, mas ouviu as palavras de Sofia que se seguiram.

— Foi um longo e árduo caminho, cujos espinhos fincaram em seu coração repetidas vezes. Mas regozijo em reconhecer seu esforço para chegar até aqui.

O único sinal de que estava ouvindo foi o franzir de suas sobrancelhas. Ryota soltou um bufo que mais se assemelhou a um riso.

— E eu achando que vocês se divertiam com o nosso sofrimento.

— Embora não possa negar sua afirmação, é de ainda mais acalento para nós testemunhar uma Índigo que resistiu até o fim. 

— “Resistir” é uma palavra forte, mas… Bem, acho que é algo assim.

Mas nada disso teria sido possível sem as pessoas que estavam ao seu redor para lembrá-la do que era importante. Desde as que abraçaram suas fraquezas até as que apontaram os seus erros. Ryota nunca poderia expressar gratidão o suficiente por terem permanecido ao seu lado até aqui.

— … O que teria acontecido se eu nunca tivesse conseguido passar por uma das provações?

A dúvida residiu em sua mente e Ryota não foi capaz de contê-la antes de dizer em voz alta. Ainda não teve a vontade de erguer o rosto e ver como Sofia estava reagindo às suas palavras, mas esperava vislumbrar a mesma face serena de sempre.

— Quer mesmo saber?

Mas o que encontrou em resposta não foi nada além de uma tensão na voz. A curiosidade a fez erguer o queixo para, por fim, encarar Sofia, e assim ver a expressão de seriedade tão rara que ela fazia.

Uma vez, a Sabedoria mencionou que seu conhecimento era infinito. Ryota queria ter tido culhões para aprofundar o assunto, entender se essa noção de mundo em um nível tão grande poderia ser elevado ao patamar de prever o futuro. 

O que a impediu de perguntar foi o simples receio de saber a resposta. Se a face que Sofia fazia agora era algum sinal de que suas dúvidas eram verdadeiras… Então, Ryota realmente não queria saber.

Conhecer a verdade sobre alguém iria afetar o julgamento a seu respeito — isso era um fato. Esteve refletindo sobre aquilo até há pouco tempo atrás, indecisa quanto a saber mais sobre Albert e temer os resultados disso. Era diferente com uma pessoa próxima ou com quem ainda desconhecia as verdadeiras intenções e mais se assemelhava a um inimigo em potencial, como Sofia.

Ryota não estava preparada para se comover ou se aproximar de uma Entidade. E nem sabia se desejava isso. No momento, ambas eram ligadas por uma negociação de favores, nada além disso. Quando as duas partes adquirissem o que foi requerido durante o acordo, então voltariam a se afastar.

Era para ser assim, mas…

— Não, eu não quero.

Ryota suspirou e decidiu adiar aquele conhecimento. 

— Ficar me preocupando com essas possibilidades não vai me levar a lugar algum. Agora, eu preciso focar no presente. Naquilo que tenho de fazer e cumprir.

Após afirmar isso mais para si mesma do que para Sofia, Ryota finalmente colocou força nas pernas para se levantar. Ela podia estar um pouco mais forte e centrada, mas pequenos deslizes a levariam ao abismo de antes, ao qual ainda estava trabalhando para escalar. Não queria ter de passar por tudo aquilo novamente, então precisava trabalhar nisso sem se deixar levar pelas distrações ao longo do caminho.

Diante dessa resolução, a face da beldade suavizou e um sorriso brotou em seus lábios.

— Então, podemos conversar? Há muito que preciso lhe contar.

Ryota queria ter estranhado o comportamento gentil e educado de Sofia, mas sem desviar-se do ponto principal, assentiu com a cabeça.

Assim, as duas caminharam até a escadaria branca, subindo para a mesa que as esperava ao topo, como de costume. Os passos eram silenciosos, tanto quanto a mente e o coração de Ryota agora estavam.

“Vá para casa.”

Queria ter contado à sua outra eu que o lar que costumava viver não mais existia. Aurora nunca mais seria a mesma, muito menos os momentos alegres e felizes que compartilhou com todos os que ali viviam.

Ainda assim…

“... Encontre seu novo lar, não importa se for um local ou uma pessoa.”

Queria ter dito que as três pessoas que a faziam se sentir em casa não mais estavam ao seu lado. Falhou com elas, e as perdeu. Uma permanente, e duas ainda poderiam ser resgatadas a um esforço e custos grandiosos.

Mas teria tido qualquer sentido em retrucar as palavras que sua eu havia dito?

“Uma vez, você foi eu. Mas eu nunca fui você.”

Se Ryota atirasse as perdas e dores do futuro contra seu passado, seria em vão. Eram tempos e pessoas diferentes, então os pesos e o sentido também o seriam. 

O passado era imutável. As decisões e acontecimentos gerados por ele eram irreversíveis. Colocar a culpa naquela pessoa que era um tempo atrás e se arrepender disso não levaria a lugar algum.

“Na verdade, você sempre quis continuar sendo eu, não foi?”

Talvez se ainda fosse a Ryota confiante, sorridente e cheia de si, que limpava o ar incômodo e trazia sorrisos em troca do próprio orgulho e tristezas acumuladas, poderia manter aquela felicidade intocada. 

Ela se desesperou tanto para salvar seu porto seguro, o único lugar que amou, as únicas pessoas que importaram, que não percebeu que este também foi o erro fatal que a manteve presa por mais de uma década. 

A tela em branco, uma vez pintada, nunca retornaria ao que era.

Era possível rasgar e remodelar. Pintar por cima e recriar a tonalidade. Mas jamais seria a mesma, e o futuro não seria diferente se as ações do presente repetirem o passado.

Ryota entendia isso, mesmo que doesse. Olhar para as costas de Sofia enquanto subiam até a mesa de chá, imaginando as possíveis verdades que finalmente iria ouvir, era assustador.

— Entretanto, sua presença aqui demonstra a valentia que nunca se abateu. 

Intrometendo-se nos pensamentos e emoções, a Sabedoria fez um comentário para complementar. Então, a feição de cores belas virou-se para trás, na direção do outro rosto jovem cujos olhos cheios de vivência a encaram.

Para terceiros ignorantes, eram apenas duas moças de idades distintas. Aos observadores, o peso das íris azuis que recuperaram o brilho tinha uma potência que faria qualquer coração frágil se abalar.

Sofia não era um deles, mas mesmo uma Entidade era capaz de assegurar o remorso de outra Índigo.

Companheiras da dor. Irmãs do inferno. Confrades do Destino.

Um liso e pequeno sorriso desenhou nos lábios finos ao continuar:

— Acomode-se, filha da luz. Vamos conversar, mais uma vez.

As duas mulheres sentaram-se nos lugares de sempre. A mesa as recepcionou como em todas as vezes anteriores, conjurando louças e aperitivos para acompanhar o diálogo.

Quando apoiou as costas na cadeira, Ryota endireitou a postura e olhou ao redor. Não havia nada de diferente no Empíreo em comparação às vezes anteriores que o visitou.

Se fosse para mencionar algo, seria…

— Não se preocupe. Hoje somos apenas nós duas.

Neste ponto, não havia mais surpresa quando Sofia se intrometia em seus pensamentos sem ser chamada. Não parecia que a própria se incomodava com a privacidade alheia também. Talvez tivesse se acostumado gradualmente a isso.

— Na vez anterior, notei que a presença das outras a perturbava. Então decidi que nossas últimas sessões seriam particulares.

Ryota não sabia se deveria agradecer à ela por isso, mas não pôde deixar de sentir um pouco de alívio porque a garota de olhos dourados não estava presente.

Ao invés de focar naquelas que estavam ausentes, sua atenção voltou-se para a menção final de Sofia.

— As últimas?

— Essa será a penúltima vez que nos veremos aqui. Nosso contrato encerra em dois meses.

Ao relembrar Ryota, que arqueou as sobrancelhas com a clarificação, Sofia cruzou as pernas debaixo da mesa. 

— Tem razão… Estou aqui há quatro meses, não é?

O tempo pareceu ter se passado em um piscar de olhos. Ou melhor, os dias mais recentes foram assim. No início, a grade das semanas foi se arrastando quanto mais as preocupações de sua mente se acumulavam.

A Coroação Real foi há quase um ano. 

A noção de que todos aqueles dias se passaram atingiu Ryota com um arrepio, e ela se calou. Cruzando os dedos na mesa, seus olhos focaram-se na superfície branca.

Tantos acontecimentos vieram desde então — novas responsabilidades, preocupações, discussões. Muito foi perdido, mas também conquistado.

— Apenas mais um passo, e alcançará todas as respostas que procura.

Além disso, formaria-se no Instituto Gnosis durante seu percurso regular. Essa foi a condição para que Sofia Megalos, a reitora, correspondesse ao seu pedido por informações. 

Ainda era desconhecido o motivo de tal pedido. E acima de tudo, muitas questões a respeito dele, e acerca da própria Sofia, sempre permaneceram na mente de Ryota.

Por que ela precisava que se formasse em Gnosis? Como isso seria benéfico para ela? Por que fazê-la tomar ciência de seu maior segredo sem qualquer remorso? Sofia não tinha medo da exposição de ser uma Entidade? Por que mostrar a ela o rosto e o nome das demais, também? Essa não era justamente uma das razões para as Entidades serem quase impossíveis de serem encontradas?

Visualizando cada uma daquelas perguntas, a moça de cabelos e olhos verdes como a água abriu aquele sorriso doce e sábio.

— Saberá a resposta para cada uma de suas perguntas muito em breve, filha da luz. Tenha paciência.

— Você gosta de brincar com a curiosidade alheia, não é? Dá pra ver na sua cara.

— Ora, está assim tão explícito? Que falta de educação a minha.

Ryota não conseguiu evitar de sorrir um pouco para a falsa inocência de Sofia. Não era sarcástica ou maldosa, mas quase brincalhona.

O comportamento gentil dela era outra incógnita que temia saber a resposta. O que havia mudado desde a última provação para obter esse resultado? 

— Está correta, no entanto. Eu tenho prazer em incitar a vontade de saber, e espero que aqueles sob minha jurisdição façam o mesmo.

Quando dizia assim, Ryota apenas conseguiu se lembrar de quando conheceu Sasaki pela primeira vez. 

Na época, houve uma conversa estranha, mas o próprio curandeiro em si nunca foi uma pessoa muito normal. Mas a intimidade e a maneira de se portar sempre possuíram uma aura de mistério ao redor do homem, apesar de sua personalidade carismática

Agora, pôde compreender melhor a origem daquela estranha sensação de familiaridade. 

— … Escuta, Sofia.

— Sim?

As duas se encararam por um longo momento. O que a mente de Ryota trabalhava para formular era uma questão que veio de repente, mas que conforme se lembrava de todos os passos que tomou, começaram a fazer mais sentido.

Era visível que a Sabedoria estava ciente de cada conexão que a levaria para a inevitável pergunta, mas talvez por respeito ao seu próprio tempo, se permitiu esperar pela vez em que a voz da convidada voltaria a se erguer.

Prendendo a respiração, ela assim questionou, sentindo uma gota de suor escorrendo pela nuca:

— Por que você me salvou?

Houve silêncio.

No Empíreo, o próprio estado de barulho ou perturbação nunca foram permitidos. Ainda que as demais Entidades estivessem reunidas e fossem caóticas o bastante para causar destruição, aquele tipo de ação nunca foi aceita por Sofia.

A razão disso era para que as visitas, que normalmente estavam preocupadas, confusas ou abatidas, pudessem ganhar tempo para respirar e processar suas próprias ideias e pensamentos. Quando a anfitriã os recebia com acolhimento e paciência, era inevitável que sentissem conforto e gradualmente pudessem liberar o que havia dentro de si.

Até as áreas mais profundas e inexplicáveis do subconsciente. 

Essa era uma das coisas que mais traziam satisfação a Sofia: Permitir aos que se interessavam por seu conhecimento desbravar as áreas da própria imaginação e chegar a conclusões próprias. Tal qual um escrutínio, era um de seus trabalhos averiguar cada um de seus convidados.

O sorriso de sabedoria não falhou nem um milímetro. Como uma estátua piscante, Sofia observou Ryota fazer a pergunta com uma expiração de quase alívio.

— A que se refere?

Entretanto, não entregaria ainda. A resposta para as perguntas que buscavam estavam, por vezes, no próprio enunciado. Quando colocados para pensar, desafiados pela encarnação do conhecimento diante de seus olhos, havia certa pressão e exacerbação nascendo em seus peitos.

Por que não responder de uma vez? Muitos questionavam o mesmo, e a própria Ryota tinha tido aquele minucioso pensamento diversas vezes.

Então, Sofia devolveria com outra pergunta: Qual seria a graça de entregar algo sem que demonstrem estarem prontos para receber?

Não era como um dicionário, cujas palavras e explicações estariam à disposição sempre que necessário. Para que conquiste algo, era valorizado o esforço, o passo a passo, antes que a resposta final chegue e os recompense.

Era como o rito Katharsis — um dos pilares para as provações que a própria Ryota passava.

— Há um ano, aconteceu o Atentado de Aurora. Mania e Shai invadiram o vilarejo e mataram a todos… Ou quase isso.

Sofia acompanhou a linha de raciocínio da garota com um mero piscar de olhos, o único sinal de que estava ouvindo.

— Era para tudo ter sido reduzido a cinzas. Eu e Zero teríamos morrido para a Insanidade depois de relutar um pouco, falhando em salvar o tio Jaisen.

Podia imaginar que as memórias daquele dia eram refletidas na mente de Ryota. Mas não pôde evitar a pontada de orgulho que sentiu quando sua expressão não se alterou nem um pouco à recordação.

— O plano era queimar o vilarejo inteiro até nada restar, nem mesmo os corpos. Não haveria rastros do atentado, e as pessoas ao redor de Thaleia nunca se incomodariam com um caso tão isolado e litorâneo.

Afinal, o Mar Sombrio ainda existia, e era de senso comum que as vidas nas margens fossem menos importantes do que as que residiam mais ao centro. Era um sistema de conhecimento coletivo que priorizava as figuras centrais para o país — tal sendo a razão pelo qual o palácio da família real situava-se no centro de Thaleia.

Mas este não era o ponto do argumento de Ryota, que franziu a testa.

— Aquilo apenas não aconteceu porque Sasaki estava na estação de trem. Foi ele quem salvou a vida do tio Jaisen e do Zero… E a minha também.

A reflexão em voz alta fez o rosto de Ryota suavizar, como se uma pontada de culpa e fragilidade a envolvesse. Entretanto, ela não desviou o olhar quando afirmou.

— Foi você quem mandou ele para Aurora, com a desculpa de que se encontraria com alguém e perdeu o trem. Sasaki estava esperando pelo sinal de fumaça no vilarejo durante todo esse tempo, foi por isso que ficou afastado e não quis sair da estação de trem.

Ryota o convidou para descansar no vilarejo e encontrar uma cama para dormir, mas ele recusou. Na época, com a mente instável demais, nunca parou para refletir como era suspeito até demais aquele timming.

Foi Zero quem apontou aquela estranha coincidência disfarçada, mas a própria Ryota pediu para que deixassem aquilo de lado, priorizando as vidas que foram salvas. Na época, sua mente estava abalada demais para processar a possibilidade de serem traídos ou manipulados por quem os salvou, por uma pessoa que demonstrou gentileza e espontaneidade.

Apenas não queria acreditar, então fechou os olhos e tapou os ouvidos para a possibilidade. Colocou o cargo nas costas de Zero, que atendeu ao seu pedido egoísta, mas também perigoso, outra vez.

Respirando fundo, Ryota prosseguiu:

— Você poderia ter me deixado pra morrer. Então, por que interferiu?

Se Sofia e Mania trabalhavam juntas, era estranho que uma se intrometer nos assuntos da outra. Haviam tantas inconsistências que surgiam à margem de seus pensamentos que Ryota mal tinha tempo para processá-los.

Em resposta ao argumento dela, a Entidade inclinou um pouco a cabeça.

— Errado.

— Hã?

A única palavra pegou Ryota desprevenida, tanto que expressou um único som de confusão. Sofia, por outro lado, alargou o sorriso.

— Não fui eu quem te salvou. 

— Mas… Mas por quê?

— Você está se precipitando quanto ao meu ponto de vista. Assumir que salvei sua vida apenas porque sou a mestre de Sasaki não significa que comando cada um de seus passos. 

Parecia mais uma desculpa, mas Ryota não quis interromper Sofia novamente, então apenas se calou.

— É um fato que Sasaki pegou o trem para fazer uma viagem até um destino em especial, e por coincidência, perdeu seu meio de transporte. Nesse caso, ele precisava esperar pelo próximo vagão para que pudesse seguir com sua viagem.

— Ainda assim, ele não foi embora.

— Sim, porque notou a fumaça vinda além das árvores e a névoa na floresta. Foi apenas o senso comum que o moveu para o vilarejo para salvar, coincidentemente, aquelas três vidas de Mania.

Outra desculpa. Ryota podia dizer isso porque Sofia estava sorrindo como se estivesse se divertindo com sua confusão.

— Sasaki foi até Aurora, salvou suas vidas, fez as preces em respeito às vidas perdidas e continuou sua viagem para seu destino após aquele dia. 

Verdade. Sofia, apesar do que tudo indicava, não parecia ter interesse em enganar diretamente Ryota. Ao menos, não sem omitir.

— Se deseja direcionar sua gratidão a alguém, deve ser a ele, não a mim. 

A voz da Sabedoria suavizou um pouco, bem como seu sorriso.

— Sasaki é um homem de bom coração. Tudo o que ele fez foi movido pelas próprias intenções e convicções. Ajudar pessoas que estavam em perigo faz parte do trabalho de um curandeiro. 

— Mas ele mentiu sobre não conhecer Mania.

— Errado de novo.

Ryota arregalou os olhos diante da objeção veloz. Foi quase como se Sofia estivesse pronta para proteger seu guardião com os fatos que aconteceram naquela noite.

— Ele não sabe nada sobre as outras Entidades, nem sobre as verdadeiras intenções da Ritus Valorem.

— E ainda assim trabalha pra você?

— Nossa relação é meramente de mestre e guardião cujas vontades se alinharam. Foi tudo uma grande coincidência.

Outra desculpa. 

O que Sofia insistia em chamar de “coincidência” não era nada mais que a verdadeira manipulação dos acontecimentos. Não que estivesse mentindo, mas a Sabedoria não pretendia revelar toda a verdade, por qualquer que fosse o motivo.

Entretanto, ela não hesitou em defender o curandeiro de imediato quando acusado. Havia surpresa nos olhos de Ryota, mas também um certo respeito pela decisão da Entidade.

Quando bem observado, tanto mestre quanto guardião eram suspeitos. Sofia e Sasaki eram pessoas misteriosas, mas que sabiam ser gentis quando queriam. Independentemente da razão, esse era um fato.

Ainda assim, por vezes, ambos demonstraram comportamentos frios e até um pouco cruéis. Agora que refletia a respeito, Ryota se perguntou se não foi tudo de propósito para estimular alguma reação dela ou das outras pessoas com quem interagiam.

Havia tanto em comum entre eles, mas nunca teve a oportunidade de vê-los conversando antes. Em partes, era estranho. Mas ao mesmo tempo, era certo que havia uma espécie de afeição de ambas as partes em seu relacionamento.

A razão para isso era simples.

— … Ele sempre falou muito bem de você. Sempre que mencionava seu nome, Sasaki estava sorrindo.

Sofia não respondeu e muito menos reagiu ao comentário de Ryota. Por um momento, achou que foi ignorada.

— Tolo.

Foi o que ouviu a Sabedoria resmungar para si mesma, franzindo a testa. Então, tão rapidamente quanto falou, a anfitriã olhou para a convidada outra vez, pigarreando.

— Acerca de Aurora, há outros pontos que devo revisitar. Está interessada sobre Albert, certo?

A princípio, Ryota pretendia apontar a mudança de assunto brusca, mas quando o nome do avô surgiu, ela se calou de imediato.

Saber a verdade sobre Albert Megalos foi um dos tópicos que a interessava. Um dos motivos que a fez viajar de Hera para Celestia foi a necessidade de saber mais a respeito do falecido homem.

Lembrar-se da morte do avô ainda doía. Ainda que não fossem parentes de sangue, assim como grande parte dos moradores de Aurora, ainda era considerado parte de sua família. Para Ryota, aquela ínfima diferença nunca foi importante.

O grande problema foi que Albert desapareceu do vilarejo Aurora há mais de uma década e nunca mais voltou. Pouco antes do falecimento de Stella, ele partiu em um fim de semana comum, prometendo retornar, mas aquilo nunca aconteceu.

Nem durante o enterro de sua mãe, ou durante o período de luto que seguiu. 

Nunca mais Albert colocou os pés em Aurora novamente.

Então, por saudades, por dor, por ressentimento, por medo e principalmente por esperança, Ryota queria partir de Aurora para descobrir a verdade e trazer o avô de volta.

Para se reconciliar com os outros moradores, que ressentiram de sua ausência. Para recuperar os dias perdidos, para se explicar. Ela estava mais do que disposta a ouvir e perdoar, mesmo que doesse.

Para Ryota, a estabilidade e aqueles dias que se foram deveriam permanecer intocados. A perda daquelas pessoas significaria a destruição do seu porto-seguro. E, como consequência, a ausência do lar que cultivou e tanto se esforçou para manter durante aquele tempo.

Entretanto, desde que Aurora foi destruída e nada além de cinzas permaneceram, muito daquele paraíso foi perdido. Houveram descobertas dolorosas e confusas. Perdas irreversíveis. Laços cortados por mágoa. Arrependimento e luto. 

Tantas emoções pesavam no peito quando lembrava da cidade natal ao ponto de Ryota sentir que poderia afundar novamente naquele oceano sombrio. 

Até que gradualmente aquelas emoções ganharam espaço para serem expostas. Das mais bonitas e felizes até as mais feias e horrendas — forçadas a verem a luz do sol para que encontrassem outro lugar que não fosse dentro de seu coração.

Entaladas na garganta que nunca expôs, apertando até quase sufocar. Ryota poderia ter encontrado um fim assim diversas vezes.

— Sim. Eu quero saber.

Agora, no entanto, após todas as provações, era um pouco mais fácil olhar para aquele ponto sombrio. Nunca foi fácil, mas a diferença era que agora Ryota tinha forças para encarar. Mesmo que com medo, era necessário.

Não apenas por si mesma, mas por todos os outros que dependiam dela. Fechar os olhos e tapar os ouvidos, isolando-se da realidade, não mudaria nada.

Sua voz, um pouco mais frágil e pesada, concordou com o apontamento de Sofia. Trocando olhares, ela endireitou o corpo e segurou os dedos agitados no colo.

— Por favor, Sofia. Me conte sobre meu avô.

O pedido era dispensável, mas demonstrou o quanto era importante para Ryota. 

Sofia não pretendia desrespeitar aquela atitude. Muito pelo contrário: Assentiu de imediato, diminuindo o sorriso para um mais educado.

— Albert Megalos era o antigo líder da casa Megalos. Eu assumi o posto há alguns anos, quando ele se aposentou.

A família Megalos era uma das casas nobres que apoiavam o reino de Thaleia e a família real Fiore. Desde os tempos antigos, as cinco casas que se asseguravam de manter a estabilidade do reino, eram os Fiore, os Furoto, os Minami, os Akai e os Megalos.

— Assim como grande parte dos homens de sua época, ele partiu de casa muito cedo para servir ao exército da guarda real. Com a ascendência das guerras civis no reino, a tensão entre os países e a aproximação das sombras pelo oceano, todo o recurso possível era necessário.

Ryota conhecia aquela história.

Nos livros de registros históricos, a Entidade que causou a maior tragédia da humanidade se espalhou e continuou alastrando-se durante séculos. Foi apenas há um século que suas ações foram interrompidas, mas a sacrifícios e esforços grandiosos.

Em contrapartida, a maldição de seus poderes não cessou. A corrupção do Mar Sombrio se tornou mais lenta, mas não parou. Foi necessário muitos anos de estudo e esforço dos seladores para que pudessem criar pontos seguros ao redor do país de Thaleia. 

Como uma grande barreira, eles detiveram as sombras e permitiram que as pessoas pudessem se refugiar em terra. Na época, a união de nações que eram ou não aliadas gerou um caos além da imaginação. 

O estresse, a exaustão, o luto e toda a dor que o catastrófico evento, mais tarde nomeado como Era Sombria, gerou nos sobreviventes foi imenso. Soldados e cavaleiros de outros reinos foram reunidos para combater, guardas e guardiões mantiveram-se a postos para tentar conter as rebeliões dos thaelianos. 

E, claro, imperadores e reis das nações remanescentes precisaram abaixar suas cabeças para a família Fiore que, na época, abraçou a trégua pelo bem da sobrevivência da humanidade. Mas era mais fácil falar do que fazer. Traições e discussões que perduraram por gerações de intrigas e guerras internas ainda procediam, gerando uma tensão irreparável nos herdeiros das casas.

Hoje, apenas um pedaço da nobreza de Thaleia residia ao lado dos Fiore. Algumas, como a casa Furoto, caiu e se desfez ao longo do tempo por razões únicas. Outras, como a nobreza de Urânia, aliada de Thaleia, reergueu-se e se tornou parte da corte com a família Megalos. A casa Over, por outro lado, residente da nação de Clior, anteriormente inimiga do reino, tornou-se uma aliada periodicamente.

— Entretanto, esta é uma história antiga. Devemos focar naquilo que a interessa, filha da luz.

Sofia interrompeu a reflexão de Ryota e a encaminhou diretamente para o que a interessava.

— O vilarejo litorâneo à beira-mar, também conhecido como Aurora, foi fundado por Albert há pouco mais de trinta e cinco anos.

A Entidade apoiou os cotovelos na mesa e cruzou os dedos.

— Originalmente, era apenas um terreno baldio e abandonado. Mas Albert viu uma oportunidade de criar algo a partir dali, então mandou construir um vilarejo com os fundos da família Megalos.

— Então, Aurora estava sob o domínio dele?

— Não. Aquelas terras nunca foram colocadas sob o nome de ninguém. E como você mesma deve imaginar, não há ninguém insano o bastante para adquirir uma cidade bem à vista do Mar Sombrio. Um alvo fácil, isolado e cheio de fragilidades que não valeriam a pena o investimento.

Um sorriso leve surgiu nos lábios de Ryota quando murmurou:

— Mas ele era louco o bastante.

— Suas prioridades o levaram a construir naquelas terras intocadas, mas nunca as nomeou em seu nome.

— Por quê?

— Apesar de ter construído Aurora, ele nunca pretendeu possuir o vilarejo. Seu interesse nunca foram os bens ou as produções que poderiam ser gerados… Mas algo muito mais crucial. Você sabe o que é?

Sofia encarou a garota diante de si e aguardou pela resposta que sabia que viria. 

Após alguns instantes de silêncios, aos quais Ryota usou para recordar-se do que uma vez conversou com Jaisen, murmurou:

— Um refúgio. 

Segundo o que Jaisen lhe contou certa vez, o vilarejo foi fundado com a intenção de abrigar diversas pessoas. Mas não qualquer um — apenas pecadores, aqueles que fizeram mal ao mundo, que eram impuros e sentiam-se na necessidade de refazer seus passos.

Criar uma nova vida, encontrar um sentido para continuar vivendo. Ainda que tivessem cometido erros, todos desejaram encontrar um lugar para chamar de lar. Para se sentirem acolhidos, abraçados e compreendidos.

Esse lugar era Aurora — o vilarejo do alvorecer. 

— Exato. Após presenciar a guerra, perder tantas pessoas e cometer diversos erros, Albert desejou compartilhar e abraçar aqueles que eram como seus semelhantes.

Encontraram uma pessoa sábia que os acolheu. Ele reconheceu seus esforços, repreendeu por seus erros e os permitiu viver em paz. Ainda que fosse durante um curto período de tempo, ainda que fosse uma ilusão de uma felicidade, um perdão inalcançável…

— Albert era amado por todos eles. E foi por ser amado que compreenderam as intenções por trás de suas ações.

— Quais intenções?

— Eles eram pecadores. Alguns cometeram crimes, outros escaparam de seus próprios passados que os assombram. Haviam até aqueles que nunca fizeram nada de errado, mas foram levados a crer que eram horríveis em seu âmago por seus erros.

Ryota não pôde evitar de sentir um aperto no peito com a descrição, mas nada disse.

— Todos estavam cientes de seus próprios passados, e Albert não pretendia fechar seus olhos para isso. Portanto, deixou claro que os reconhecia apesar disso.

— … Os reconhecia?

— Albert amou cada um deles como seus filhos, e lhes deu a oportunidade de viver de novo. Ali, onde todos entendiam uns aos outros mesmo sem saberem sobre seus passados, pois nada disso importava.

A Sabedoria fez uma pausa antes de sorrir levemente para Ryota, como se soubesse exatamente o que se passava em seu coração.

— Eram como uma família. E, como uma família, perdoaram e se amaram. Entenderam e se ajudaram. O passado não importava ali, mas eles nunca se esqueceram. Sua vontade de ter paz, ainda que fosse por apenas alguns dias, semanas, anos… Até o julgamento de seus crimes ocorrer, era tudo o que desejavam.

Quando ouviu pela primeira vez, a Ryota do passado se enfureceu. Era inaceitável que Jaisen e os outros tivessem aceitado um futuro trágico desses sem lutar. Uma morte tão dolorosa, tão sofrida, tão triste…

Mesmo as crianças, que nada tinham a ver com seus crimes, não foram poupadas. Talvez, em suas mentes, fosse como parte da punição por terem se permitido viver um pouco. Por fugirem de seus passados, a responsabilidade acarretou aos descendentes, forçados a lidar com as consequências das ações de seus pais e avós.

Era nada mais do que injusto. Mas seria justo condená-los por terem desejado tanto aquela vida ao ponto de aceitar perdê-la apenas pouco tempo depois de terem conseguido? Talvez fosse doer muito mais nunca ter tido a chance… Apenas sonhar com um mundo, apodrecendo até o fim, seria muito mais triste.

“Não trocaria nada nesse mundo pelo o que estou vivendo agora. Depois de passar tanto tempo procurando este calor, este amor e felicidade… Como posso dizer que não estou satisfeito?”

Ryota se calou ao lembrar da conversa com Dio. 

O quão hipócrita de sua parte seria perdoar o garoto por suas ações e aceitá-lo no presente, mas apontar o dedo para aqueles de Aurora? 

São tão parecidos, mas tão diferentes.

Por um momento, ela apenas respirou fundo e fechou os olhos. Precisava disso para processar o que acabou de ouvir. A confirmação do seu maior temor, outra vez retomado e atirado em sua face.

Foi ela quem decidiu ouvir, então precisava aceitar isso. Ainda que discorde ou concorde. Um pouco depois, Ryota abriu os olhos novamente para Sofia, mas a beldade não se alterou em nada.

Ela sempre parecia tão distante do que relatava, como se nunca fizesse parte daquele mundo. Atribuindo tudo a uma grande coincidência, quando obviamente sempre soube que as coisas levariam até aquele fim.

— Eu entendo agora. 

— E o que sente a respeito?

— … Estaria mentindo se dizer que sou a favor do que meu avô fez. Mas, ao mesmo tempo, se estivesse em seu lugar, provavelmente faria o mesmo.

Ryota pensou em Bellatrix, em Alex, em Dio. Em Fuyuki, Sora e Kanami. Em Edward, Marie e Luccas. Em todos aqueles que cometeram pecados próprios, erros irreversíveis, e que culpavam e carregavam seus próprios ferimentos sem cicatrizes.

Apenas buscando alguém que possa ajudá-los. Por vezes, fingindo que não. Demonstrando firmeza, mesmo que no fundo estivessem mais tristes e solitários do que nunca. 

Eu entendo… Eu entendo, vovô.

Colocou a mão no próprio peito e agarrou o tecido de sua roupa. Ryota sentiu seus dedos fecharem ali quando o coração apertou, acelerado. Doía tanto, e aquilo nem lhe pertencia.

Foi isso o que você sentiu quando os viu, não foi? Aqueles rostos tão magoados, tão culpados, tão preocupados, tão… Tão sofridos.

Sentiu as lágrimas quentes escorrendo pelo seu rosto antes que pudesse pará-las. Mas Ryota não as escondeu, muito menos sentiu vergonha. 

Não, o que seu coração tanto se contorcia era por compaixão e compreensão. A empatia de conhecer tantas pessoas e querer fazer algo por elas. Ainda que não tivessem nada a ver com sua vida, que pudesse ser um fardo a mais, que fosse ocupar sua mente com problemas que nem foi ela quem criou…

Eu quero abraçá-los. Eu… Eu quero salvá-los também.

Fazer pessoas preciosas assim sorrir e agradecer era tudo o que poderia esperar em retorno. Não haveria recompensa maior para seu coração do que a felicidade delas.

Ryota fungou o nariz e tremeu suas pálpebras quando sentiu um toque na bochecha. Ao olhar para o lado, notou que Sofia se aproximou dela e tocou-lhe o rosto com um lenço branco. Era macio e gentil.

Silenciosamente, aceitou o tecido e o usou para secar as lágrimas dos olhos. Então, respirou fundo antes de erguer o olhar para a mulher parada em pé ao seu lado.

— … Por quê?

A pergunta veio naturalmente, baixa e rouca, mas Ryota não conseguiu evitar de questionar.

E tão suavemente quanto ouviu, Sofia respondeu com o mesmo sorriso leve.

— Estou apenas cumprindo com o dever que prometi a ele.

Novamente, havia aquele tom desconhecido, mas confortante, na voz da beldade. Entretanto, Ryota não conseguiu insistir na pergunta.

Afinal, parecia que a própria Sofia não tinha intenções de revelar o motivo. E estava tudo bem.

Não precisava saber se não estava disposta a contar. 

Entretanto, ainda havia mais a ser discutido, portanto Ryota, depois de limpar o rosto vermelho das lágrimas, olhou para a Entidade parada ao lado e perguntou:

— Por que o vovô foi embora?

Houve outra pausa até que Sofia pudesse responder.

— Ele tinha outros compromissos fora de Aurora. São questões delicadas. Mas para satisfazer sua dúvida: Albert não voltaria para o vilarejo mesmo que fosse você a pedir.

O rosto de Ryota estremeceu um pouco, e seus lábios se apertaram com tensão.

— Não se engane… Albert nunca se esqueceu de você. Ou de qualquer um de Aurora. Até o fim, ele estava pensando em todos nós.

Um suspiro escapou de Sofia quando ela sorriu, dando um leve riso com o nariz como se tivesse lembrado de algo engraçado.

— Sim, até o fim… 

O olhar e o sorriso de Sofia paralisou, como se estivesse se enfiando ainda mais nas próprias memórias. Ryota observou a expressão doce dela antes de mencionar:

— O que o vovô foi pra você?

— Vejamos… Se precisasse definir…

Ela se calou, erguendo as íris azuis esverdeadas para as estrelas sobre suas cabeças quando um corte de luz foi visto atravessando o espaço.

A estrela-cadente trouxe um ar de tranquilidade ao Empíreo quando Sofia respondeu, murmurando.

— Ele era um velho teimoso e etéreo.

Aquela resposta não trouxe grande lucidez para Ryota a respeito do relacionamento que ambos tiveram, mas assim como com Sasaki, Sofia também nutria algum tipo de afeição pelo seu avô.

Estar ciente disso foi o suficiente para Ryota, que também ergueu seu olhar para o céu, desfrutando do mesmo brilho das estrelas

***

Ryota estendeu a mão e tocou a maçaneta da porta que se materializou. Ela era fria como de costume, mas não a repelia. Em especial, daquela vez, não sentia como se nada naquele mundo pudesse afastá-la de verdade.

— Apenas uma última pergunta.

— Sim?

Sofia respondeu às palavras da convidada de imediato, parada a alguns metros de distância atrás dela, observando-a partir. 

A garota de cabelos negros se virou devagar. Para a Ryota do passado, pareceria impossível encarar uma Entidade sem ter ânsia de vômito ou uma fúria fervendo nas veias.

Mas agora era diferente. Quando olhava para Sofia, para a moça de beleza exuberante e grande conhecimento, não via apenas a encarnação de um conceito. 

Havia muito mais nela, um abismo profundo que era perigoso demais para se aproximar, mas igualmente atraente. Talvez esse fosse o grande perigo que rondava uma Entidade.

Ainda assim, Ryota não conseguiu evitar de ser consumida por aquela sensação de instabilidade. E para que fosse embora pela penúltima vez sem arrependimentos, perguntou:

— O vovô era seu parente de sangue?

— Sim.

Não havia nada exposto além do mesmo sorriso gracioso, mas Ryota sentiu que Sofia ainda tinha muito mais a dizer apesar de se manter calada sobre o tópico até que foi questionada a respeito.

— Então… 

— Não, Albert nunca foi influenciado por mim. Suas decisões foram de integridade própria. E não, ele não tinha nenhum poder relacionado com as Entidades, ou comigo. Suas habilidades foram de esforço e garantia próprias.

Ryota expirou um pouco. Em partes, aliviada. Mas ao mesmo tempo, interessada. Porém, não pretendia se estender demais no assunto, apesar de ter insistido um pouco.

— Isso significa que vocês… Quero dizer, as Entidades podem criar famílias também?

Era uma questão estranha, de fato. Mas ela queria saber. Algo dentro dela… Alguma coisa a fazia querer entender melhor.

Diante daquela curiosidade, Sofia não pôde evitar soltar um riso com o nariz.

— Não, elas não podem.

A resposta foi sincera e direta, sem qualquer emoção em especial em sua voz ou rosto.

— Ainda que sejamos originalmente mulheres, como Entidades, não possuímos um corpo capaz de reproduzir outra vida que não nós mesmas.

Ryota sentiu que Sofia quase queria zombar daquela pergunta com seu olhar. Era como se estivesse perguntando “acha mesmo que teríamos interesse em tais coisas?”. 

Mas não foi capaz de responder, seja brincando ou com um fundo de sinceridade. No fim, tudo o que pôde fazer foi soltar um suspiro antes de se virar para a porta outra vez.

— Isso parece… Solitário.

A mão de Ryota segurou na maçaneta e a girou, atravessando a porta bem quando ouviu a resposta de Sofia.

— Acredite, filha da luz… Não há nada mais solitário neste mundo do que a cessão da carne mortal.



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