Volume 12 – Arco 4
Capítulo 57: Depressão
E assim, quatro semanas se passaram.
Como de costume, não houveram grandes acontecimentos que valeria a pena mencionar. E, caso precisasse destacar alguns eventos que marcaram aqueles dias, Ryota escolheria os momentos em que sorriu ao lado de seus amigos.
Pôde se reaproximar de Alex, Bellatrix e Dio. Também foi capaz de agradecer pelas palavras e ajuda de Amane e Scarlet. A única coisa que não conseguiu cumprir, ainda, foi encontrar-se com Sasaki enquanto estivesse à sós.
Apesar do curandeiro normalmente estar passando seu tempo no pátio do Instituto dormindo, por alguma razão, Ryota o viu poucas vezes durante aqueles dias. E em todos os momentos que trocaram olhares, mal tiveram tempo para se cumprimentar antes dele se afastar ou outras tomarem sua atenção.
No passado, ela colocou para fora os sentimentos que tinha em relação aos desentendimentos com ele, e também agradeceu por todas as coisas que Sasaki fez por ela. Entretanto, esse mundo não existia mais, e ela suspeitava que aquele Sasaki de agora nunca ouviu seus verdadeiros sentimentos.
Em partes, era triste. Mas um pedaço dela estava aliviada que ele não soubesse sobre isso — era como se sua mentalidade estivesse em constante mudança, então mesmo que pudesse conversar com ele agora, as palavras que lhe diria seriam totalmente diferentes.
Sasaki não era uma prioridade, então Ryota não se incomodou em correr atrás dele tanto assim. Decidiu que encontraria a oportunidade ideal para discutirem de forma adequada em breve.
Agora, enquanto estava andando pelos corredores barulhentos do instituto, havia outro assunto muito mais importante em sua mente — a quarta provação.
Como de costume, nenhum indício foi deixado por Sofia sobre quando, onde ou como o teste iria começar. Mas depois de passar pelos três anteriores, não se surpreenderia tão facilmente com ocorridos fora do comum. As chances de Ryota ser chocada com esse tipo de coisa diminuíram muito depois de tudo o que presenciou e ouviu nos últimos meses.
Não que fosse impossível, mas era mais como se, caso soubesse que literalmente qualquer coisa pudesse acontecer a qualquer momento, estaria mentalmente preparada. Era um constante estado de alerta que a teria deixado mentalmente exausta — isso se ainda fosse a mesma Ryota de antes.
Uma vez, esteve tão presa e com medo de seus arredores que ficou sensível demais. Qualquer toque físico, qualquer lembrança da vida real era como uma lâmina que ameaçava a vida. Ao mesmo tempo, foi justamente esse alerta que a isolou da realidade e a prendeu dentro de um espaço da mente onde sequer notou o tempo passar.
Não repetiria mais os mesmos erros. Estava determinada a encarar aquele caminho final com os próprios pés, passo a passo. O exercício de paciência era a chave para se manter calma enquanto estudava seus arredores, atenta a qualquer acontecimento, e aprendendo com as mudanças mínimas dentro daquele prédio onde passou tanto tempo convivendo com outras pessoas.
As provações de Sofia aconteciam em paralelo com as próprias provas dentro do instituto — Gnosis sempre tinha o mal gosto de fazer os estudantes se prepararem tanto para os testes teóricos quanto os físicos. O caso de Ryota era um pouco pior, pois além do percurso regular, seus estudos também abrangiam conhecimentos gerais. Em suma, ela estudava duas vezes mais do que os demais, o que por consequência a deixava duas vezes mais cansada.
Entretanto, não se deixou abater por isso. Depois dos dias em que estudava e dedicava um pouco de seu tempo para os amigos, quando Dio estava dormindo, ela se levantava no meio da noite para ir até a escrivaninha do quarto para estudar. Ryota não se podia permitir reprovar em nenhuma matéria, custe o que custar. Perder tempo não era uma opção quando tantas responsabilidades estavam em suas costas.
Naquelas frescas madrugadas solitárias e silenciosas, ela se permitia espiar o bloco de notas de Zero, como que procurando por algum guia ou palavras de conforto. Às vezes, se via relendo as mesmas palavras do começo, ou então lendo uma página nova ou outra.
Em geral, as anotações de Zero podiam ser resumidas em comentários de seu dia-a-dia. Parecia que no começo o bloco seria usado para espairecer seu tédio diário enquanto estava trabalhando para Fuyuki, então ele contava seus sentimentos e parte dos acontecimentos.
Para Ryota, era como uma janela de seu coração. Os contos eram curtos, e no começo a escrita era desengonçada e constrangida. Ele não tinha se acostumado a expressar suas emoções muito bem, especialmente em voz alta, mas parecia que o exercício de fazer isso no papel, onde ninguém além dele mesmo poderia ler, fez algum efeito.
Independentemente dos relatos lidos, Ryota se via imaginando cada um deles como se estivesse estado presente durante todos os dias em que Zero estava fora de Aurora. Era um alívio, na verdade.
Nunca teve a oportunidade de expressar a saudades que sentia dele, mas tudo isso veio à tona em forma de lágrimas silenciosas que escorriam na madrugada durante a leitura e pelos sorrisos nostálgicos de dias felizes que não existiam mais.
Na verdade, eu fiquei com medo.
Quando abriu as páginas e começou a ler, aquela parte pequena e frágil dela tremeu como uma folha.
E se o que eu ler aqui não for o que eu esperava?
As palavras que Sasaki uma vez lhe disse ainda martelavam a cabeça de vez em quando. E se Zero não tivesse apaixonado por ela em primeiro lugar? Tudo teria sido muito diferente. Era apenas conveniente que um garoto de bom coração como ele tivesse se apegado a ela para começo de conversa.
Sinto sua falta.
O coração se apertou diversas vezes durante a leitura, e as memórias do passado sempre vinham para fazê-la soluçar silenciosamente na escrivaninha.
Estou com medo de esquecer sua voz.
Fazia quase um ano desde que escutou a risada dele. Como era mesmo que ele chamava seu nome? Qual era o tom de voz que fazia quando brigava com ela?
Eu não quero esquecer… Eu não posso esquecer.
Em geral, as memórias finais das pessoas que Ryota amava eram todas assim — de despedida, de discussões ou de morte. Não havia nada de feliz nelas, e tudo o que podia se recordar era daquela dor.
Às vezes, sonho com seus rostos… E percebo que não lembro como eram seus olhos. Como era mesmo que costumavam falar? De que forma andavam? Como sorriam pela manhã ao me ver? Qual era o som de suas vozes?
Se pegava pensando naquelas coisas durante as madrugadas, e por vezes perdia o sono. Seus olhos podiam estar cansados, mas o peso de esquecer as pessoas que amava com a tamanha carga emocional dentro de si era ainda pior.
Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça. Não esqueça.
Repetia para si mesma, diversas mesmas. Tinha de se lembrar, eles eram sua origem, a razão pela qual tinha caminhado até ali, o motivo de tudo fazer sentido.
Se suas memórias sobre aquelas pessoas desaparecerem, o indivíduo “Ryota” também sumiria. O que restaria era nada mais do que uma casca vazia.
Era ridículo, mas era esse o tipo de pessoa que era. Portanto, por aqueles que confiaram e a amaram, não podia se deixar cair assim.
Foi com essa determinação que Ryota continuou passando pelos corredores de Gnosis, procurando por qualquer pista para a quarta provação. Entretanto, não encontrou nada.
Ela estava sozinha daquela vez. Bellatrix e Alexandre estavam ocupados com suas próprias tarefas, e Ryota não teve a oportunidade de acompanhá-los ou assistir suas apresentações dessa vez. Ao menos, se pudesse passar pela provação o mais rápido possível, quem sabe poderia comparecer a tempo, se é que isso seria possível.
Os dois estudantes pareciam estar juntos em uma peça conjunta que seria apresentada no Anfiteatro Diadema em cerca de uma hora. Dio, que também estudava no instituto, parecia ter terminado com suas ocupações e saído para o anfiteatro também.
“Não posso interferir na sua provação, moça. Vai ser por sua conta daqui em diante… Mas eu sei que você vai conseguir passar. Você sempre consegue.”
Ryota esperava que fosse assim tão fácil quanto Dio fazia parecer.
Foi provavelmente nesse instante que aconteceu.
Quando seus olhos azuis claros, que passavam rapidamente pelas portas das salas de aula, onde estudantes ocupavam para fazer suas provas, de repente recaíram em um cômodo chamativo.
Não porque estava barulhento com vozes, ou porque algum conhecido a esperava. Na verdade, era ausente de vida, e silencioso como se o próprio mundo a tivesse ensurdecido, criando uma barreira de som à prova da realidade.
Ou talvez fosse pelo cavalete em pé no meio da sala, segurando uma tela em branco.
Era para ser uma visão normal. Afinal, Gnosis era um instituto que instrui a prática da arte, então não era estranho ver quadros para pintura em várias salas onde os estudantes poderiam usar. Entretanto, havia algum tipo de anormalidade naquele espaço — como se a chamasse a se aproximar, tal qual os sussurros de um demônio ao ouvido a tentar o coração humano.
Ainda sabendo que era um cenário sobressalente ao mundo, Ryota conhecia aquela sensação como a palma de sua mão. Não mais a assustava, e ela certamente não se permitiria recuar agora. Mesmo que os fantasmas do passado, de alguns meses atrás, continuem a provocar-lhe os ouvidos, nenhum sinal de tensão surgiu na face dela.
Ryota deu um passo adiante, e assim outro, e mais um na direção do cavalete. Quanto mais se aproximava, mais as vozes do mundo se tornaram distantes, silenciosas. O ar dentro do cômodo era um alívio aos pulmões, que podiam respirar na temperatura ideal que a permitiu manter-se calma.
Respire fundo. Um passo de cada vez. Vai ficar tudo bem. Você consegue. Não se apresse.
Repetiu esses pensamentos diversas vezes para não se esquecer das coisas que aprendeu das pessoas que eram importantes pra ela. E era justamente por lembrar desses ensinamentos que consequentemente conseguiu parar na frente do quadro em branco sem vacilar os passos.
Houve, então, um silêncio agudo que era tanto relaxante quanto agoniante. Ryota sabia que qualquer coisa poderia acontecer agora, mas parte dela estava preparada para isso. Não importa que tipo de dificuldade ou cena aterrorizante se disponha diante de seus olhos, não viraria mais o rosto.
Foi quando um som pintou o mundo, e Ryota reconheceu aquele tilintar que tão poucas vezes escutou.
Um sino?
Não era a primeira vez que o escutava, isso era certeza. O som que ecoava no fundo da mente mesmo sem alcançar os ouvidos de verdade, era uma sensação familiar.
Enquanto permaneceu distraída pelo tinido, Ryota olhou ao redor da sala de aula, procurando por alguma mudança drástica. Mas tudo o que encontrou foram as quatro paredes de pintura clara.
Espere um pouco.
Percebeu tardiamente que o espaço por onde entrou desapareceu — ou seja, a porta, que antes estava atrás dela, agora fazia parte da parede e não tinha qualquer sinal de já ter existido.
Que brincadeira de mal gosto.
Ryota suspirou e olhou novamente para o quadro em branco diante de si. E o que encontrou além dele foi um godê com várias tintas de cores diferentes para pintura a óleo. Não havia qualquer pincel disponível, o que tornava o conjunto para a prática da arte um pouco irresponsável.
— É pra eu pintar usando isso aqui?
Ela não tinha problemas em sujar os dedos, mas deveria ser o tipo de tinta que não sairia tão fácil da pele. Ainda assim, era muito melhor do que testemunhar um teatro bizarro ou dançar sob os holofotes de fantasmas no anfiteatro, então não podia reclamar.
Ou será que estou falando cedo demais? Só tem um jeito de descobrir.
Ryota se aproximou mais do cavalete e pegou o godê, o apoiando no antebraço. Ela tinha praticado pintura durante as aulas práticas antes, mas não era especialmente boa desenhando.
Pelo menos, sou melhor do que o Zero nisso.
Lembrar-se dos desenhos garranchudos de linhas tortas a fez dar um pequeno sorriso. Então, sem pensar muito, usou o dedo indicador para pincelar na tinta roxa e passou despretensiosamente pela tela em branco. Como esperado, o papel recepcionou e articulou conforme suas vontades, e Ryota se viu desenhando um pequeno Zero.
Estava longe de ser uma obra de arte, mas ao menos não era um boneco de palito desproporcional. Ela finalizou o desenho colocando um sorriso no rosto dele, e viu a si mesma rindo baixinho.
— Ficou uma gracinha.
Olhar para aquele Zero em miniatura a fez sentir um calor agradável. O boneco, apesar de ter sido inspirado no Zero que conhecia da atualidade, era pequeno e adorável como quando ainda eram crianças.
— Ele parece um pouco solitário.
Ryota comentou sozinha, passando então o dedo na tinta vermelha e desenhando a si mesma ao lado dele. Os dois bonecos sorridentes deram as mãos, sorrindo sob a luz do sol. Então, nasceu um gramado verdejante com flores douradas. E um céu cheio de nuvens.
Mais e mais elementos foram sendo adicionados conforme Ryota se perdeu na expressão da arte. Suas emoções e memórias fluíram a cada pincelada com os dedos. A tela em branco, antes fria e isolada, agora estava cheia de cores radiantes e de um brilho de nostalgia caloroso.
Seria bom se tudo tivesse continuado assim.
Diferente de pinturas, que eram permanentes e eternas, a vida era contínua e cheia de mudanças — algumas não tão bem-vindas quanto outras.
Em alguns momentos, aquele calor e felicidade perdidos no tempo a deixavam irada. Quando perdia a razão e não sabia o caminho ao qual seguir, o brilho das memórias era cegante ao ponto de odiá-las. Era um sentimento controverso que sempre deixou o coração de Ryota turbulento.
Ryota sentiu os pulmões encherem de ar e a garganta trancar. Quanto mais encarava a tela, mais parecia que os olhos que ela mesma desenhou encaravam-na de volta. E devagar, como se escorresse por seus dedos pequenos, frágeis e inúteis, aquele calor e felicidade com a qual usou para desenhar desapareceu.
O silêncio da sala se tornou opressor. A claridade do ambiente era cegante. Doía demais encarar cores tão claras, sorrisos felizes e inocentes de qualquer male do mundo.
Como uma virada de chave, Ryota odiou aquele desenho.
E o arrancou da tela violentamente, rasgando-o.
A pintura flutou e caiu silenciosamente ao lado de seus pés, amassada. Ainda podia ver aqueles rostos, mas o que brotava de seu coração não era mais afeição por eles.
No quadro em branco, mais uma folha surgiu — pronta para ser tingida com memórias, emoções, fagulhas de todos os tipos de coisas que surgissem de dentro dela. Era assustador. Deveria haver apenas uma folha sobressalente, marcas da pintura anterior acima da nova página, mas nada restou.
Havia ali apenas um branco puro, pronto para ser destruído. Pintar aquela pureza com as tintas de seus sentimentos era como manchar algum tipo de terra sagrada. Mas agora que Ryota tinha começado a pintar, não podia parar. Era como se uma bola de neve tivesse começado a rolar a partir do momento que visualizou o quadro em branco.
“Pinte”
Era o que lhe dizia em palavras silenciosas. Naquele ambiente claro, cegante, dolorido e angustiante.
“Rasgue”
Antes desejava rever aquela luz, mas agora ficou forte ao ponto de queimar-lhe os olhos. Como uma chama que queimava em sua alma sem nunca cessar.
“Repita”
Então, Ryota pintou.
Os dedos manchados em verde e amarelo foram sobrepostos com o preto. Tingiu a tela com a negritude que seus olhos precisavam para se recuperar, rasgando com pinceladas de branco semelhantes a cometas passando. Os olhos dourados que nunca se esqueceria a encararam de volta quando os pintou — duas estrelas no céu que a seguiam.
Rasgou o papel e o jogou para o lado. Assim como a primeira pintura, ele flutuou e pousou no chão ao seu lado.
“Pinte”
Pintar o quê?
“Tudo”
Por quê?
“Pinte”
E Ryota pintou.
De novo, de novo e de novo.
Conforme as memórias afloraram, cresceram e afundaram, a cada quadro, a cada página tingida e arrancada em sequência, descartada aos seus pés, continuou a repetir o processo.
Quanto mais pintava, mais manchava.
Quanto mais manchava, mais emoções afloravam.
Quanto mais sentia, mais chorava.
Quanto mais chorava, mais queria expressar.
Quanto mais queria expressar, mais pintava.
As folhas arrancadas intermináveis ganharam volume no chão, sobrepondo uma às outras. Os quadros, que antes tinham forma, claridade de figuras e sentido, tornaram-se um amontoado de nós, cores e contornos confusos. As cores não se alinhavam, nenhuma delas entrava em um concenso, então eram descartadas apenas para serem reutilizadas, e novamente o coração sentia-se traído pelo vício da repetição.
As lágrimas que escorriam por seu rosto silenciosamente pingavam no godê, e as tintas eternas nunca acabariam. E como não acabavam, não podia parar de pintar. O que uma vez foi felicidade, tornou-se um pesadelo — um ideal inalcançável, uma sombra do passado que nunca se permitiu se livrar.
Ela estava presa nas telas que ela mesma pintou.
Era por isso que continuava a refazê-las, sem parar.
Pintou para colocar para fora aquelas emoções que não tinham começo ou fim. Como fios, gerando centenas de milhares de nós. Tudo o que restava para ela, que não tinha força para desfazê-los, era cortá-los.
Ou rasgar cada página para começar novamente.
Mas de que adiantava recomeçar se os resultados sempre eram os mesmos?
Onde estou errando?
As mãos dela estavam cinzas, secas e rachadas.
Por que tudo ficou assim?
O aperto no peito ficou forte ao ponto de achar que sua alma partiria em dois.
Por que não consigo mudar nada?
A respiração fria se tornou irregular. A sala fechada era como uma gaiola da mente conturbada.
Por que não consigo parar… Mesmo querendo tanto?
“Pinte”
Não consigo.
“Pinte”
Não posso.
“Rasgue”
Dói… Dói tanto…
“Repita”
— Eu não queria nada disso.
Quando as folhas de papel preencheram a sala ao ponto de seus calcanhares afundarem, Ryota murmurou para a tela em branco.
— Por que pintar é tão difícil?
— Não precisa ser.
Ryota ouviu uma segunda voz e abriu os olhos que tinham se fechado. Percebeu, então, que a sala de pintura desapareceu, dando lugar a um espaço em branco — como se ela mesma tivesse adentrado na tela.
Seus joelhos cederam e ela caiu no chão. Seus dedos das mãos, ainda manchados, secos e ressecados, estavam duros pela tinta usada. Mas o que realmente roubou o ar de seus pulmões foi a pessoa que apareceu diante de seus olhos.
Era uma garota de estatura baixa e personalidade radiante. Mesmo em um local distorcido como este, a alegria nas íris azuis como o céu e os cabelos negros compridos até a cintura reforçavam a tenacidade de sua infantilidade. Era, tal qual o quadro em branco, um ideal que não deveria jamais ser manchado pela sujeira do mundo.
— Você é…
— Eu sou você… Não, na verdade, estaria mais certo dizer que você já foi eu.
A voz de Ryota fraquejou, e ela encarou a figura conhecida como se visse um fantasma — e, de certa forma, era mesmo. Uma pequena e inocente garotinha que vivia em Aurora, cujo conhecimento da verdade era limitado, mas nem por isso sentia-se menos feliz.
Uma Ryota de um mundo cujo inferno jamais conheceu. Sem marcas de exaustão, sem machucados nas mãos, sem fios brancos nos cabelos, ou qualquer indício de manchas.
— … Por quê?
— Hm?
— Por que você… O que é você?
— Preciso mesmo repetir?
A garotinha, que era e não era Ryota, sorriu com um riso leve, como se tivesse ouvido uma piada boba. Mas a verdadeira Ryota continuou olhando para aquela figura, sem ter forças nos joelhos para se erguer.
Não conseguia pensar em nada para dizer ou perguntar. Na verdade, parte dela estava constrangida por mostrar uma visão tão horrenda para o seu eu do passado.
— … Você deve estar decepcionada.
— Por quê?
— Porque eu me tornei uma falha. Em tudo.
Um sorriso melancólico e tímido surgiu no rosto de Ryota, e ela desviou o olhar para o espaço em branco. Se ainda bem se lembrava, o “eu” que gostaria de se tornar no futuro era totalmente diferente do “eu” deste presente.
— Não fui uma boa filha, amiga ou noiva. Cometi tantos erros, fiz tantas pessoas chorarem. Não fiz nada do que devia ter feito… Do que prometi a mim mesma fazer.
Uma vez, Ryota decidiu que não preocuparia mais ninguém. Quando percebeu que suas dores, preocupações e lágrimas eram fúteis perto de ver alguém que gostava sofrendo, então nunca mais colocou-as para fora.
Sentiu-se impotente, e por isso nunca mais se deixou abalar na frente dos outros. Guardou tudo dentro do coração para colocar um sorriso no rosto e espalhar a alegria. Quando necessário, foi o ombro amigo e o pilar daqueles que amava. Ela queria esse posto, queria ser vista e desejada como um porto seguro.
— Mas eu não consegui fazer nada disso.
Aquela mentira disfarçada, o sorriso frágil e as emoções que escapavam tão facilmente com um pouco de insistência foi o que a tornou tão instável. Seus sentimentos guardados eram como uma bomba relógio que poderia explodir em qualquer hora e a qualquer lugar — muitas vezes, as consequências disso foram ainda piores.
— E agora não consigo nem me olhar por isso.
Ryota estava sorrindo, mas não de felicidade ou orgulho. Encarar a si mesma e aos próprios sentimentos era uma das tarefas mais árduas para pessoas tão densas quanto ela.
Ela ouviu passos se aproximando, e soube que provavelmente acabaria vendo uma expressão de desgosto. Talvez até palavras de conforto disfarçadas de uma gentileza falsa, como tinha aprendido a fazer para ajudar as pessoas.
— Você se esforçou tanto, não foi?
Mas o que Ryota ouviu foi um murmúrio seguido de um afago leve na cabeça, que a fez virar o rosto novamente para o da pequena menina. A mão pequena acariciou os cabelos de fios pretos e brancos, confortando-a.
— Ainda assim, eu falhei.
— Mas você tentou o máximo que pôde.
— Não foi o suficiente… Eu não me tornei uma pessoa digna de orgulho.
Dentro das expectativas do tipo de pessoa ao qual queria se tornar, Ryota estava em uma distância totalmente oposta.
Nunca conseguiu se tornar amável e gentil como sua mãe.
— Isso não é verdade. Eu me orgulho de você.
Ryota olhou para sua outra “eu” e franziu a testa.
— Está mentindo.
— Não estou. É a verdade.
— Como vou acreditar em você? A Ryota que estava contando os dias para a morte da mãe teria dito algo assim para qualquer um que estava se sentindo mal em seu lugar.
Mesmo que fossem mentiras, o desejo de confortar era verdadeiro. Era por isso que conhecia tão bem a si mesma, e deveria saber que a resposta para suas ações e erros do futuro não era orgulho, mas vergonha.
— Mas eu não sou você.
Ryota se calou quando a menina disse isso em tom de esclarecimento, ainda com a palma da mão em sua cabeça.
— E você não é mais eu.
— … Como assim? Eu… Nós…
— Uma vez, você foi eu. Mas eu nunca fui você. Não sou a Ryota que fez uma promessa para si mesma. E por sermos pessoas diferentes, não deveríamos ter sonhos e visões diferentes?
Pela primeira vez, Ryota olhou para a garota não como a sua eu do passado, mas como outro alguém. E, quando percebeu, a vergonha que sentia de si mesma diminuiu um pouco.
— Na verdade, você sempre quis continuar sendo eu, não foi?
Ela não conseguiu responder as perguntas retóricas daquela Ryota, e apenas baixou os olhos que lacrimejavam.
— Essa era a sua “eu” ideal… A que a mamãe sempre amou, a que sempre fez todos sorrirem, a que sempre estava feliz e radiante, a inocente e doce Ryota que apenas trazia bons sentimentos.
As mãos pequenas deslizaram para seu rosto, e ela ergueu o rosto da Ryota que chorava. Não permitiu que aqueles sentimentos escondidos por tantos anos fossem guardados novamente.
— Você fez uma promessa de trazer felicidade, mas não de tê-la. Desde que os outros estivessem bem, nada mais iria importar, não é?
As lágrimas quentes escorreram pelos dedos pequenos e gordinhos, mas a pequena Ryota não afastou ou limpou. Permitiu que fossem vistos, expostos. Eles tinham de ser.
— Essa felicidade não existe. Você fez uma promessa que mentia para si mesma desde o começo. Achou mesmo que as pessoas que gostam de você seriam felizes te vendo sofrer? O mesmo vale pra todo mundo.
Eram palavras óbvias, mas necessárias de serem ouvidas. Ryota sabia disso, mas ainda assim…
— Você quis tanto manter essa felicidade, esse ideal de ser “eu”, que nunca quis mudar. Se forçou a ser aquela Ryota criança que todos sempre amavam, com medo do que poderia acontecer se todos vissem aqui dentro… Você teve medo de ser descartada.
E mesmo assim, aquilo tudo aconteceu. A pequena Ryota tocou no peito da mais velha, acima do coração.
— Mas agora você sabe que ninguém vai te odiar porque está sendo você mesma, e não alguém que se foi.
Ryota sentiu que estava mesmo olhando para um fantasma ao ouvir essas palavras. Todas eram ditas com tanto carinho, tanto orgulho, tanto afago… Era mesmo ela mesma se confortando? Ela mesma… Se amando?
— … Eu não sou você.
— Sim. Então está tudo bem aceitar isso. Eles nunca amaram “essa” ou “aquela” Ryota… Eles nos amaram.
A tristeza da perda, a dor da repetição, a busca por algo que nunca existiu, a criação de um ciclo de sofrimento que ela mesma gerou por uma mentira sem fundo… Tudo foi em prol de se proteger, mas isso não levou a nada.
Suas emoções, sentimentos e lembranças eram o resultado disso. Sem terem lugar para onde ir, sem saber a que levariam ou que tipo de forma deveriam ter, foram expostas erroneamente. O resultado da tela em branco de sua alma, pintada centenas de milhares de vezes, precisando ser repetida de novo e de novo, foi culpa inteiramente dela.
Era uma ferida funda demais para ser curada, gerada por mais de uma década. Não seria cicatrizada tão facilmente quando a própria Ryota insistiu em cutucá-la, fazendo sangrar para lembrar-se das suas origens, do que deveria ter sido e do que gostaria para o futuro.
Era confuso, era doloroso, era triste… Mas também bonito. A Ryota criança na sua frente era linda, e mesmo não sendo quem desejou ser no começo, tinha certeza que a sua eu do passado a via sob a mesma luz.
— Vá para casa, Ryota.
A pequena garotinha afagou a cabeça e enxugou as lágrimas dela, sorrindo com o mesmo carinho e orgulho que teve desde o começo.
— Cumpra com suas responsabilidades, mas não se sinta culpada pelas promessas que não pôde cumprir. Você também é humana.
Um beijo pequeno e leve como uma pena foi deixada na testa da mais velha, e os olhos de Ryota se encheram de lágrimas novamente quando a figura da menina começou a se desmanchar na tela em branco, desaparecendo gradualmente.
— Chore, e faça isso tanto quanto puder. Depois, limpe o rosto e se levante quantas vezes for necessário. Vá para casa… Encontre seu novo lar, não importa se for um local ou uma pessoa.
Ryota abraçou a pequena figura que desaparecia, sentindo-se pequena e patética, mas estranhamente amada.
— Se permita ser feliz… Eu amo você.
Não houve tempo para responder os sussurros finais quando o brilho da criança feita de luz se dispersou na tela em branco. Os olhos de Ryota continuaram derramando lágrimas até o final, quando o mundo tremeu e esfriou, banhando-se em um forte clarão e, por fim, a consciência dela foi tomada.