Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 12 – Arco 4

Capítulo 56: Presente Imutável, Futuro Ideal

Quando a noite chegou, a cena deplorável no quarto de hotel tirou um riso de Dio, que cruzou os braços.

— Ainda tá com vergonha, moça?

— É claro que sim. Faz muito tempo que as pessoas não me olham com tanta atenção e tão de perto. Quase morri do coração.

Era engraçado ver como até quando Ryota escondia o rosto vermelho como tomate no travesseiro, suas orelhas ficavam à mostra, revelando o quão constrangida estava. Até mesmo seu vocabulário, que ocasionalmente mudava entre tons mais firmes e formais, agora era completamente descontraído e livre de amarras sociais. Era Ryota sendo ela mesma por baixo dos panos.

O garoto soltou um suspiro doce, observando Lion saltar para o colchão e se aconchegar entre os cobertores.

— Mas não foi ruim, não acha? Quero dizer, eu fiquei feliz em ver que todos estavam te olhando com tanto carinho.

— Essa é a parte que mais me dá vergonha! Sabe o quão ridícula eu fui nos últimos meses? Eu não acredito que essas mesmas pessoas ficaram rindo e sorrindo pra mim como se não fosse nada. É sério, se não fosse a chegada do Alex, acho que ia desmaiar.

— Eu percebi que você ficou pálida, então segurei sua mão pra te impedir de cair. Acho que minha ajuda não serviu de muita coisa, me desculpe.

— Isso não é verdade. Eu só… Bem…

Ouvir Dio se autodepreciar com a voz tão gentil quase fazia o coração de Ryota partir, e ela ergueu o rosto do travesseiro quase que imediatamente para retrucar as palavras dele. Mas quando fez isso, ainda com as bochechas coradas, o viu parado ao lado da cama com um pequeno sorriso travesso.

— Consegui te fazer me olhar.

Ryota resmungou baixo e Dio gargalhou baixinho quando ela bateu nele com o travesseiro. Esse comportamento seria típico de Zero em uma situação daquelas, mas não desgostava de ver o menino diante dela demonstrando aquele lado mais infantil. 

Em geral, Dio sempre foi muito calmo, doce e pacífico. Poucas vezes o vira expressar tristeza ou raiva, e essas ocasiões foram o bastante para que nunca mais quisesse o ver assim. Ainda era uma relação nova a que estavam cultivando, mas a fazia se sentir bem ver que ele também estava ficando confortável em mostrar outros lados de sua personalidade, mesmo estando inconsciente disso.

Com um suspiro para respirar fundo e distrair-se do constrangimento, Ryota se sentou na cama e recostou contra a cabeceira. Estava um pouco mais tarde do que o usual, mas fazia algumas horas desde que retornaram do Instituto Gnosis. Ambos haviam se alimentado, feito a higiene pessoal e se vestido para dormir, apenas compartilhando uma conversa casual um pouco antes de deitarem, iluminados sob a luz do abajur ao lado da cama.

Os olhos azuis de Ryota se desviaram do abajur para a gaveta abaixo da mesa, pensando no pequeno bloco que estava guardado ali dentro.

— Você quer que eu vá dormir agora?

A pergunta foi parecida com a que uma criança faria, mas não havia nada de infantil nos olhos de Dio. Apesar de sua aparência, a sabedoria por trás de tudo era admirável, e Ryota se sentiu agradecida pela consideração. Mesmo desconhecendo o conteúdo do que estava escrito, era como se ele soubesse que aquela leitura noturna era um ritual que ela gostava de fazer sozinha.

E ele não poderia estar mais certo sobre isso, mas Ryota não gostava da ideia de excluir Dio de nada. Era contraditório que as duas vontades de seu coração colidissem assim, então ela hesitou um instante antes de responder.

— Não, não se preocupe comigo. A noite é longa o bastante para que eu possa dividir minha atenção.

— … Ah, tudo bem. 

Parecia que a escolha de palavras deixou Dio um pouco envergonhado dessa vez, mas ele não negou o que Ryota disse. Isso tirou um sorriso caloroso dela.

— Vem aqui. Podemos conversar um pouco antes de dormir.

O murmúrio de Ryota e as batidas suaves ao lado dela na cama pareceram mandar para longe o nervosismo dele, e Dio arrastou-se no colchão para se sentar ao seu lado. Em algum momento, haviam se acostumado a dormir juntos. No começo, foi um pouco estranho compartilhar a cama quando sempre esteve acostumada a ficar sozinha, mas sentir a respiração de outra pessoa no meio da noite, quando às vezes acordava assustada com algum pesadelo ou pensamento ruim, era estranhamente acolhedor.

A mera presença de Dio a fazia se acalmar, permitindo que respirasse fundo e mandasse embora a sensação ruim. E isso certamente era uma atitude mais infantil do que podia permitir, mas a quantidade de vezes em que seguraram as mãos durante o sono não foram poucas. 

Nessas noites, nem ela ou Dio tinham uma única faísca de memórias ruins, e o calor daqueles dedos segurados, acompanhados de um pequeno filhote que se enroscava entre eles, era relaxante ao ponto de fazê-los se esquecer do mundo ao redor.

Então, quando ambos deitaram lado a lado e os dedos pequenos e gordinhos de Dio seguraram dois dos dedos dela, Ryota não se retraiu. 

— Está preocupada com alguma coisa?

— Você é sempre tão observador.

— Bem, eu estou sempre olhando pra você, moça.

Ryota o encarou com o rosto visivelmente constrangido, e o menino riu. Antes, teria ficado em conflito e possivelmente suspeita sobre essas palavras, mas agora estava quase ficando acostumada a ouvir coisas assim dele. Embora nem sempre fosse tão fácil aceitar a afeição quase incondicional de alguém, o coração dela não podia evitar de se sentir feliz com isso.

— É sobre as provações?

Quando Ryota não respondeu, Dio tentou adivinhar aos sussurros, e a forma como ela tensionou os músculos deixou claro como o dia qual era a resposta.

— … Faltam duas semanas para a penúltima provação.

— Está com medo?

— Estou sempre com medo. Principalmente depois das últimas coisas que vi.

Ela queria se fingir de forte e acreditar que as dificuldades passadas a fariam ter forças apenas porque as superou, mas ainda não tinha tanta determinação assim ao ponto de não ter receio do que poderia acontecer. A faceta dos sorrisos não era uma mentira, mas era mais fácil para Ryota apreciar aqueles dias ao lado de todos e se esquecer por um pequeno período de tempo daquilo que a pertubava.

— Além disso, a recompensa pela quarta provação… Talvez seja a que mais me deixe nervosa.

Dio não disse nada ao murmúrio dela. Os olhos azuis pareciam tão distantes, tão ressentidos e sofridos que ele não pôde evitar de franzir a testa.

— Por quê?

Ryota engoliu em seco, sem saber por onde começar a explicar. Era fato que as verdades ouvidas por Sofia traziam-lhe grande alívio, mas ao mesmo tempo saber mais a respeito do avô trazia uma mistura de ansiedade com preocupação.

Ela sempre quis ouvir a verdade — por que partiu para não mais voltar, por que a abandonou, por que se recusou a dizer qualquer palavra, por que precisou morrer… Eram tantas questões que sua mente mal conseguia contar.

E receber finalmente uma resposta para tudo seria, com certeza, como uma bomba explodindo em sua cabeça. 

— Tenho medo de que a resposta que procuro não seja a que quero.

Eis uma discussão que teve consigo mesma várias vezes. A expectativa de saber e a realidade da verdade eram contrapontos que sempre a pegavam de surpresa. Por vezes, quebravam tudo o que construiu tão facilmente, lembrando-a do quão errada estava em acreditar com uma determinação frágil de que podia enfrentar as adversidades sozinha.

Às vezes parecia mais fácil, às vezes era tão dolorosamente difícil que desejou morrer.

E mesmo desejar a morte naqueles momentos era um ato de covardia, que apenas reforçava seus defeitos. A facilidade com que desviava os olhos e sobrepunha uma verdade com outra que apenas tornava tudo mais conveniente para seu lado era assustador. 

Egoísta, covarde, arrogante e mentirosa — adjetivos que sempre combinaram muito bem com ela, desde o começo. O disfarce apenas culminou e fortificou, não dando espaço para que pudesse trabalhar cuidadosamente naqueles problemas. 

E mesmo agora, depois de tudo, esses mesmos problemas voltavam para assombrá-la. Sua decisão de fazer o que era necessário não mudou, apenas o modo de encarar as dificuldades — de peito aberto, pronta para abraçar e moldar aquela feiura em algo digno de ser visto e respeitado pelas pessoas que gostavam e esperavam algo dela.

Era uma decisão difícil e que tornaria tudo mais doloroso — mas apenas a curto prazo. Se continuasse segurando aquelas mãos que insistiram em mantê-la de pé diante de cada onda de adversidade, talvez as coisas pudessem começar a mudar. Devagar, passo a passo, porção a porção, rastejando-se em direção ao seu verdadeiro ideal como pessoa para si e para aqueles ao seu redor.

Em resposta às palavras de Ryota, Dio apertou um pouco os dedos dela.

— Talvez seja melhor ouvir uma verdade dolorosa do que uma mentira bonita.

— Não acho que seja tão fácil assim.

Ryota era o tipo de pessoa que viveria facilmente em um mundo feliz desde que todos que importavam fossem felizes. Eventualmente, a hipocrisia e amargura de abandonar a realidade seriam substituídas pelo alívio de ver aqueles que se foram e chorar pelos arrependimentos passados para nunca mais os repetir.

Esse era o tipo de ideal sujo que tinha.

— Então, prefere não saber?

A pergunta de Dio atingiu outro ponto sensível dentro dela. Conhecer e se arrepender, ou não saber e ficar considerando para sempre o que poderia ter sido. Medir as duas proporções de medo eram complicadas, e as chances de que a resposta que esperava fossem dadas eram quase em parcelas iguais.

Isso se não estivessem falando de Albert.

Ele passou tanto tempo escondendo as coisas de mim, e até o final não me disse nada. Isso significa que a verdade é assim tão ruim?

O avô que perdeu a vida deixou para trás algumas palavras e uma pulseira que conjurava sua arma de batalha. Ryota nunca teve coragem de usá-la ou sequer de olhar por tempo demais para ela, então a manteve guardada em um lugar seguro.

Ainda assim…

“Obrigado… Por me encontrar.”

As mensagens deixadas ao final de sua vida nunca trouxeram nada além de mais conflitos à mente dela.

— Eu não sei, mas ao mesmo tempo, eu quero saber. Tenho medo que minha curiosidade faça com que me arrependa depois.

Dio ficou em silêncio por um longo momento, observando as íris trêmulas de Ryota quando encarou as mãos que seguravam uma à outra.

— … Você gosta de mim?

— … Hã? De onde veio isso?

— Você gosta? Ou não?

Foi tão de repente que Ryota ficou pasma, e quase constrangida com o quão direto Dio foi, mas ela respondeu após alguns segundos, murmurando com a voz desacostumada a expressar diretamente essas emoções:

— Sim, eu gosto.

Como sempre, o sorriso do menino foi tão cheio de calor que Ryota poderia ter chorado. Então, ele sussurrou outra vez:

— Ainda gostaria de mim se te contasse uma história?

— Por que isso mudaria como te vejo?

Demorou um instante até perceber que se tratava não de um conto comum, mas uma história dele mesmo. Isso a fez arregalar levemente os olhos e responder quase de imediato:

— Não. 

— Por quê?

— Eu acho… Eu acho que a pessoa que você é agora valoriza mais quem você foi no passado. Então, se tem erros que você cometeu, desde que tenha corrigido e aprendido com eles, isso não determina quem é agora.

Quase pareciam palavras bonitas demais, mas era o que Ryota realmente sentia. Ao mesmo tempo, ela gostaria de pensar sobre si da mesma maneira, mas era bem diferente fazer isso a julgar os outros.

— E se eu não pudesse me perdoar pelo o que fiz sem que você saiba?

De alguma forma, não parecia tão hipótetico o que Dio estava insinuando agora.

— E se eu tivesse feito coisas bem, bem ruins pra chegar onde estou, mas não me arrependesse nem um pouco? Você ainda gostaria de mim?

Ryota notou que ele parecia estar tentando disfarçar o nervosismo quando alguma verdade por trás das perguntas surgiu em seus olhos dourados — como o sol, como os de Albert. 

Houve uma pequena pausa, e um silêncio quando os dois continuaram a se encarar, sem desviar a atenção. Parecia uma conversa quieta que era frágil ao ponto de se partir a qualquer descuido. Ryota não queria desrespeitar os sentimentos de Dio, mas ao mesmo tempo sabia que ele era uma pessoa honesta e que estava de coração aberto, esperando por sua resposta igualmente sincera.

Diferente dela, o garoto era cheio de certeza e estava satisfeito com os erros do passado. Talvez não necessariamente tenha gostado de cometê-los, pois os reconheceu como atos ruins, mas o arrependimento nunca veio dado que o resultado a que chegou foi o que queria.

— Se pudesse ter tomado um caminho diferente para chegar até esse fim, você teria optado por ele? Ou continuaria pelo o que traçou no começo?

Dio riu baixinho da pergunta dela, mas Ryota não se alterou. Foi quase como se ele estivesse sorrindo para a inocência da pergunta, como se as idades de ambos tivessem sido trocadas por completo.

— Essa opção nunca existiu em primeiro lugar, mas sim. Eu teria escolhido uma alternativa que os outros não precisassem se machucar caso fosse possível.

Somos estranhamente parecidos.

Foi o que passou na mente de Ryota. Talvez as vontades e escolhas fossem diferentes, mas os sentimentos de querer priorizar o que era importante, escolhendo um caminho de desespero por este fim, cometendo incontáveis erros e criando arrependimentos, ainda era o mesmo.

E Dio escolheu isso para ser feliz. Poderia Albert ter tomado a mesma linha de raciocínio?

Ryota sentia que estava, neste momento, na encruzilhada que poderia fazê-la caminhar por um desses caminhos sinuosos. E mesmo conhecendo os problemas de cada um deles, nem Dio ou Albert pareciam querer forçá-la a escolher o certo.

Haveria uma escolha certa, para começo de conversa? Quem determina o que está certo para alguém que não tinha chance de escolha e optou pelo ato de machucar os outros pelo próprio bem?

Eram questões delicadas demais para serem consideradas, e Ryota desconhecia o passado tanto de Dio quanto de Albert. Julgando por fora, talvez os tivesse censurado pelas decisões, mas saber a verdade poderia afetar sua resposta. Pelo fato de serem pessoas importantes para ela, sentia que sua resposta seria mais frágil do que deveria.

— E mesmo assim, não se arrepende do que fez?

— Me sinto mal pelas consequências de minhas decisões, mas me arrepender significa que não estou satisfeito com o resultado a que cheguei, e isso não é verdade.

Dio apertou um pouco mais a mão dela, e Ryota passou o polegar pela pele dele em retorno.

— Não trocaria nada nesse mundo pelo o que estou vivendo agora. Depois de passar tanto tempo procurando este calor, este amor e felicidade… Como posso dizer que não estou satisfeito?

A honestidade nas palavras e sorriso de Dio fez algo dentro de Ryota se partir, e ela quis chorar de novo. Era estranho como um garoto como ele criava gatilhos tão fortes de coisas que ela sequer sabia o que eram, mas seu coração sempre foi tocado de tantas formas possíveis por ele…

— Ainda não tenho certeza de minha resposta, mas se fosse para dizer agora… Acho que apesar dos erros ao longo do caminho e por ser uma história que não vivenciei e não conheço, ainda gostaria de você.

— Então, se soubesse, gostaria menos de mim?

— … Não, não é isso. Eu provavelmente discordaria de suas decisões, mas entenderia seu ponto de vista naquele momento.

Entendimento não era concordância. As circunstâncias que levaram alguém a agir de determinada forma eram uma coisa, mas acreditar que este era o caminho ideal a ser seguido era uma perspectiva diferente para cada um.

Ryota conheceu diversas pessoas assim — que soube ou não de suas histórias, e seu ponto de vista a cada um deles era diferente. Se estivesse na pele delas, poderia ter feito o mesmo. 

Mas ela não era ninguém além de si mesma, e considerar possibilidades era nada mais que um ciclo ao qual estava acostumada a continuar vivenciando. 

— Ficar pensando no que poderia ou não ter sido não me leva a lugar algum. E o passado não vai mudar, independente do quanto me arrependa. O que me resta é continuar aprendendo mais e mudando um pouco todos os dias, para compensar esses erros e nunca mais repeti-los.

Eram coisas que adquiriu de diversas pessoas, e se não fosse por elas e suas diferentes vidas, personalidades e sentimentos, não estaria ali. Ryota gostaria de respeitar a todos que eram importantes, mas também seria justa consigo mesma em resposta à expectativa dessas pessoas.

Assim sendo, a resposta para aquela questão era apenas uma.

— Eu não vou deixar de gostar de você, Dio. 

Ryota sentiu que as íris dele tremeram.

— Mesmo depois de tudo?

— Quando se sentir confortável em me contar, vou ouvir tudo. E então vou poder pensar melhor a respeito de tudo, mas acho que o mais importante não é o passado, e sim o presente.

— O presente? E não o futuro?

— Se você não consegue refletir, aprender e melhorar com o que passou, não existe futuro. O presente vai ser uma repetição do passado.

Era como ficar preso no tempo, em um estado congelado ao qual se era imutável. Ryota sentia que viveu assim durante muito, muito tempo, e apenas recentemente tomou consciência de como isso foi prejudicial a si e aos que estavam ao seu redor.

— Assim como vocês esperaram por mim, Dio, eu vou esperar por você. Quando estiver pronto para dar um passo para esse futuro e compartilhar comigo o que está dentro de você, vou receber de coração aberto.

Dio engoliu em seco e fechou os olhos, apertando a mão dela como um sinal de que estava satisfeito com a conclusão da conversa. Um pequeno e melancólico sorriso se desenhou nos lábios dele quando se aconchegaram mais perto na cama, e Ryota também começou a adormecer quando as luzes do quarto se apagaram.

Provavelmente porque sentiu os fôlegos profundos do menino, ela o abraçou um pouco mais perto de si, afagando-lhe as costas pequenas que pareciam carregar um peso invisível e inimaginável. Mas estava tudo bem.

Ryota queria acreditar que poderia perdoar aqueles que não podiam se perdoar quando via quem eram agora. Era fato que seu julgamento mudaria antes e depois de saber a verdade, mas desde que fosse honesta e justa consigo mesma, um novo ponto de vista se abriria — e, quem sabe, um novo caminho para esse futuro ideal.



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