Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 12 – Arco 4

Capítulo 54: A Força da Covardia

Sinto que estou tendo um deja-vu.

Esse foi o pensamento de Ryota quando, naquela tarde, após as aulas teóricas do percurso regular e da rotina cotidiana no Instituto Gnosis, se viu no coração de Celestia ao lado do trio de jovens barulhentos.

Talvez não fosse exatamente assim no começo, mas caminhar ao lado de pessoas que estavam constantemente criando barulho e chamando a atenção estava longe de ser seu novo hobby. Entretanto, quando Bellatrix e Alexandre chegaram à conclusão de que queriam sair com Ryota ao fim das aulas, não havia para onde recuar.

Até mesmo Dio foi a favor, votando imediatamente depois de Alex convencê-lo porque compraria um pedaço de bolo de morango para ele. Ainda que ele fosse um indivíduo cheio de mistérios e lados assustadores, seu coração juvenil falou mais alto, e algumas horas mais tarde, o garoto foi visto se deliciando com o doce com a expressão mais radiante de todas.

Ryota observou quando Dio, com uma gota de chantilly no rosto, serviu o pedaço de morango em cima do bolo para Lion. Ele jogou a fruta no ar, e o filhote saltou com uma pirueta para comer, fazendo o garoto rir em aprovação e acariciar a cabeça do cachorro. 

Antigamente, ela teria interrogado se estava mesmo tudo bem alimentar um animal de estimação assim, mas depois de todos os segredos que o menino guardava e dos questionamentos na mente de Ryota de que o filhote poderia, ou não, ser aquele monstro que viu na terceira provação, ela decidiu não questionar.

Se ele disser que essa criatura minúscula come até carne humana, eu acredito.

Desviando os olhos que encaravam a cena adorável com certa perplexidade, ela puxou a manga da própria roupa mais para cima e se aproximou do garoto, passando o tecido no rosto de Dio.

— Cuidado, vai se sujar desse jeito.

— Ah? O-Obrigado, moça.

Dio pareceu surpreso e constrangido com o deslize infantil, mas Ryota não o culpava, e tomou apenas alguns segundos para limpar a mancha de chantilly em sua bochecha. Lion latiu em aprovação, balançando o rabo para os lados.

— Até você?

— Au!

— Não concorda de novo, vou ficar com vergonha…

— Au! Au!

— … Parece que tá rolando uma conversa impossível de eu entender.

Suspirando com a interação entre animal e dono, Ryota deu um sorriso leve. E então, quase engasgou com o ar nos pulmões com o tapa nas costas que recebeu de repente. Uma figura de face sorridente apareceu ao seu lado, passando o braço por seu ombro e erguendo o dedo indicador para apontar em sua direção.

— O que é isso, o que é isso? Baixou o espírito de mãe coruja agora? Menina, alguma coisa rolou entre vocês dois faz algum tempinho que eu sei.

— Não aconteceu nada, Alex… Na verdade, eu diria que apenas estamos nos entendendo melhor.

— E lá vem você ficando toda misteriosa. Eu gosto de fofoca, e das boas, viu? Pára de me excluir das coisas, gata.

Ryota riu de leve quando o prodígio cutucou-lhe a bochecha com o dedo indicador, reclamando com um tom de diversão. Como esperado, Alexandre era uma pessoa muito observadora, e seus olhos atentos notaram de imediato a proximidade conquistada entre Ryota e Dio. Mas não apenas entre eles.

— Já faz algum tempinho que aquela doida da Bella tá tagarelando sem parar. É “Ryota isso, Ryota aquilo”, valha-me o Pequeno Sol, hein? Que chatisse, ela não calava a boca.

— N-Não precisa falar assim, também. A Bella só está feliz porque dormi na casa dela ontem.

— Minha nossa, eu jamais teria percebido essa grande novidade bombástica. Sabe por quê? Porque eu não fui convidado! Fui excluído, abandonado e descartado como uma boneca! 

— Por que você ficou assim tão magoado?! 

Ryota ficou chocada quando Alex colocou a mão no coração e criou uma cena de drama digna de um ator. Em geral, ela se surpreendia com o trabalho de Bellatrix em seus estudos e na expressão de suas emoções, mesmo nunca tendo-a visto em um palco. Mas o caso de Alexandre era quase cômico se ele não estivesse atirando facas com palavras em tom de sarcasmo.

Ouvindo a pergunta dela, Alex bufou e cruzou os braços, revirando os olhos.

— Eu? Magoado? Até parece. Tenho mais o que fazer do que ficar perdendo meu tempo brincando de casinha. Vão fazer noite das meninas pra lá. Não precisa me convidar, eu nem iria mesmo. Com certeza aquela idiota deve ter feito o maior caos, e o quarto dela deve ser brega que dói. E você também devia ter dormido cedo do jeitinho sem graça que é.

— … Acho que você realmente se magoou, não foi?

— Hmpf!

Ryota apenas conseguiu ficar perplexa com a tagarelice de Alexandre, disparando seu descontentamento antes de fazer bico com os lábios. Ao seu lado, Dio ainda se deliciava com o pedaço de bolo, alheio ao mundo.

— Deixa ele de lado. Mais importante do que isso, Ririii! Olha só o que eu achei! A gente pode usar combinando.

— Mas o quê… Eh?!

— É lindo, não é? Agora a gente parece melhores amigas de todos os tempos! É o tipo de coisa que eu sempre quis usar!

Bellatrix surgiu atrás de Ryota e simplesmente jogou no peito dela uma camiseta branca com escritas coloridas. Era o tipo de roupa feita com uma confecção de segunda mão e a impressão das palavras mal eram possíveis de serem lidas. Mas aquela nem era a pior parte.

Bellatrix colocou uma camiseta idêntica na frente do peito enquanto Ryota segurava a própria diante dos olhos com um olhar de descrença. O que a atriz cheia de alegria se gabava de ter comprado era uma daquelas camisetas bregas da amizade, onde estavam escritas várias coisas genéricas como “melhores amigas de todos os tempos!”, e derivados. Havia até mesmo uma seta apontando para o lado, e se compradas em dobro, as amigas poderiam ver e as setas apontariam uma para a outra quando estivessem juntas.

— Não é maravilhoso?

— Pfffft! Que porcaria é essa?! Que horror, que ridículo! Queima isso agora!

— Alê! Ninguém te chamou na conversa, some! Xô, xô!

— Aaaah, deixe de ser cricri, mulher. Seu gosto pra moda precisa ser descartado e conseguir outro totalmente novo. Pequeno Sol me livre de andar com você e ser visto desse jeito. Prefiro a morte.

— Que exagero! E eu nem ia comprar nada pra você. É só pra minha melhor amiga do mundo. Não é, Ririii?

— Há, divirtam-se, então. Eu que não quero parecer trinta anos mais velho com esse troço horroroso no meu lindo corpinho.

Enquanto Bellatrix e Alexandre trocavam provocações usuais, criando outra discussão chamativa no centro de Celestia, Ryota continuou encarando a estampa daquela camiseta como se tivesse congelado no tempo.

Quem foi o idiota que criou isso? Essa é a coisa mais ridícula que já vi.

— E então, Riri? O que achou?

— … Eu amei! Vou usar, com certeza!

Ryota não conseguiu expressar a verdade em seu coração quando as íris verdes puras e cheias de expectativa pousaram nela, e Bellatrix comemorou dando pulinhos no lugar com a aprovação da única pessoa que importava.

Alex apenas cobriu os lábios, ainda rindo da situação, especialmente ao perceber a expressão de quem pedia socorro de Ryota. Ao lado, Dio havia terminado de devorar o terceiro bolo de morango, novamente tendo manchado as bochechas macias de chantilly com um pequeno filhote deitado no colo.

Foi assim que uma boa parte da tarde daquele quarteto caótico passou seu dia. Mas Ryota certamente não conseguiu encontrar uma única razão para reclamar disso.

***

Enquanto andavam por Celestia, algumas coisas se passaram na mente de Ryota.

A primeira delas era que seus amigos eram pessoas nada discretas, e conseguiam fazê-la passar vergonha em toda esquina. Sua única salvação para não afundar a cabeça no chão e sumir era Dio segurando sua mão com um sorriso de consolo. Entretanto, um Alex ciumento e uma Bellatrix entusiasmada sempre conseguiam quebrar sua autoconfiança em um piscar de olhos.

A segunda coisa que pairou em seus pensamentos foi o quanto ela desconhecia a cidade.

Ainda que tivesse passado quase um ano em Celestia, desde que seus compromissos com Sofia, o Instituto Gnosis, as provações e todas as demandas que surgiram se acumularam em sua mente, ela nunca se permitiu parar para descansar de verdade.

Quando caminhou pelas ruas da capital de Urânia, seus olhos vagaram pelas casas e ruas limpas e silenciosas. Diferente de Hera, onde as pessoas andavam de forma caótica e luzes e vozes se misturavam como uma grande turbulência, Celestia apresentava o completo oposto. De alguma forma, talvez por seu tamanho ser consideravelmente menor ou porque eram apenas terras emprestadas, o cuidado da população com a higiene e o respeito pelo espaço dos demais era muito maior. 

Ela havia presenciado isso desde que chegou em Celestia pela primeira vez. A diferença gritante entre as cidades a teria deixado perplexa caso na época sua mente não estivesse com prioridades diferentes. Mas agora, enquanto caminhava pacificamente por aquelas ruas, Ryota conseguia reparar naqueles detalhes um pouco melhor.

— Essa é uma cidade pequena, mas cheia de cultura.

Dio fez aquela observação quando Ryota parou de andar de repente, olhando para um dos mapas de Celestia. Ele começou a explicar um pouco, mas dado seu tamanho menor do que o usual, seus dedos não alcançavam o mapa alto demais. Então Ryota fez um favor e o segurou no colo, o permitindo apontar diretamente para os espaços conforme dizia:

— Quando chegamos, aqui estava a estação de metrô. Ela fica perto do centro de Celestia, onde estamos agora. Esse lugar tem menos ruas e menos becos do que Hera, mas até os espaços fechados são bem menos perigosos do que em Thaleia.

Ryota se lembrava de como na terceira provação acabou se infiltrando em um beco e tinha como comprovar as palavras de Dio depois de ver com os próprios olhos.

— Eu lembro de ouvir falar que Urânia foi um país que prezava bastante pelo desenvolvimento da tecnologia moderna e pela conservação das culturas.

— Sim, você tá certa, moça. Aqui — Dio apontou para um ponto ao leste do mapa, para longe da região onde as lojas e padarias se encontravam — é onde as principais atrações estão. Além do Anfiteatro Diadema que você deve conhecer, algumas feiras culturais começam por aqui e se estendem pelas ruas até o centro, fazendo paralelo com as lojas.

— Minha nossa, você parece conhecer bastante esse lugar.

— N-Não é isso, quero dizer… Eu apenas aproveitei para passear por ela enquanto você tava ocupada, moça.

Com o constrangimento de Dio, que facilmente se sensbilizava com elogios, Ryota abriu um sorriso discreto. Ela não tinha orgulho de reconhecer que andou tão presa dentro de si durante os últimos meses que sequer se deu ao trabalho de fazer o mesmo.

— Fez muito bem.

— N-Não foi nada demais… De qualquer forma, nós vimos essas feiras culturais acontecendo no Instituto Gnosis também, lembra?

Ryota concordou com a cabeça. Foi logo quando chegaram em Celestia, e ambos foram até o prédio para se encontrar com Sofia. No caminho, cruzaram com estudantes fazendo apresentações de trabalhos e foi quando conheceram Scarlet, também.

— Agora que paro pra pensar sobre isso, as ruas das feiras também se conectam na direção do Instituto.

Foi uma observação direta, e não precisou de muito esforço para encontrar a conexão entre ambas as coisas. Dio assentiu e traçou a rua em questão, descendo até o coração de Celestia.

— Aparentemente, Gnosis une o útil ao agradável. Então quando as feiras culturais da cidade ocorrem, os próprios estudantes participam para apresentar seus próprios projetos. 

Era uma decisão sábia. Colocar em prática o que foi estudado dentro dos respectivos cursos para os visitantes não apenas da própria cidade, mas daqueles que viajavam de fora para conhecer Urânia, era uma ideia excelente. 

Em geral, aqueles que viajavam para Celestia vinham com o intuito de conhecer a beleza da cidade beira-mar, ou de visitar locais famosos como a Biblioteca Nacional e o Anfiteatro Diadema. Mas quando se criavam exposições gratuitas ao público, as chances de chamar a atenção de outras pessoas para o Instituto crescia, incluindo quantos estudantes tentariam se candidatar à bolsa de estudos.

— Eu sei que pra entrar em Gnosis é bem mais difícil do que parece. Apenas acabei conseguindo por pura conveniência, mas sempre esqueço que quem estuda nesse lugar é a nata da nata.

Ryota voltou sua atenção para o desenho do prédio no mapa, e pensou na criação impressionante de Sofia. Agora que conhecia sua verdadeira identidade, não parecia um mérito tão grande de sua pessoa, mas os resultados do que suas mãos tocavam não poderiam passar despercebidos. Ela era uma pessoa influente de diversas formas.

— É isso aí, mona. Só a elite da elite entra, e o resto vai pra vala.

— Do jeito que você disse isso, parece até que eles são descartados.

— E não foi o que eu disse? Ora, que bobinha.

Alex apoiou o braço no ombro de Ryota, a fazendo sentir um peso extra por ainda estar carregando Dio, mas dado sua força física acima do comum, isso não a incomodou nem um pouco. Ela fez uma careta com um sorriso leve para o comentário dele, mas o prodígio não pareceu nem um pouco incomodado.

— Mas, claro, nem todo mundo pode se comparar com uma grande estrela como eu. 

— Eu sei que você é incrível, mas a Bella também é, certo? Na verdade, todos que entram são. 

— Como você é tolinha, minha querida. Deixa que eu te explico melhor como as coisas funcionam.

Alex abriu um sorriso largo, do tipo que dizia estar cheio de confiança, quando continuou:

— Sim, você está certa quando diz que apenas os melhores entram. Mas é mais do que isso: Só a elite dos melhores vai se formar.

— O quê?

— Pfft! Já viu quantos fracassados abandonaram os estudos porque não conseguiram suportar o peso? Eles entram achando que com a bolsa vai ser mole, e depois de perceberem que nunca seria tão fácil, eles vazam com o rabo entre as pernas.

Ele descreveu de uma forma quase cruel, debochando dos estudantes que trancaram os cursos. Isso fez Ryota apertar os lábios com o aperto no peito, sentindo pena dessas pessoas.

— Não me parece justo julgá-los assim. A pressão poderia ter sido demais, sim, mas todos tem seus limites. Continuar em um curso onde seu bem-estar está em risco não parece bom. 

— Falou bonito, docinho. E eu até me curvaria pro seu argumento se ele não tivesse uma falha.

— E qual é?

Franzindo o cenho, Alex respondeu com um tom mais de desprezo do que sarcasmo.

— Não existe limite para um estudante de Gnosis. Quando se entra, não se sai igual. Ou você entra e se forma como um covarde, ou entra e abandona com coragem.

Ryota encarou Alexandre intensamente, tentando destrinchar o significado por trás de suas palavras. O olhar dela fez Alex rir baixo, parecendo perceber que sua expressão brincalhona usual desapareceu, e ele rapidamente recuperou a postura.

— Por que aqueles que se formam são covardes? Não deveria ser o oposto?

Dio permaneceu em silêncio durante a conversa, e Ryota não se incomodou de ver que tipo de rosto ele estava fazendo agora conforme a conversa continuou.

Após um instante de silêncio, Alex cruzou os braços.

— Você acha que covardia é um defeito?

— Bem… Do jeito que estamos falando agora, me parece ser. Além disso… 

Ryota pensou um pouco antes de continuar, agora com a voz mais baixa.

— … O medo te faz se afastar e abandonar tudo. Você se apega a si mesmo e a apenas uma única coisa, ao seu porto-seguro — ela apertou os lábios novamente — Se estamos falando sobre limites, a covardia é o que traça até onde se pode ir.

Diante dos pensamentos que revelavam mais do que apenas um ponto de vista, mas sim uma experiência, Alexandre ponderou antes de inclinar a cabeça.

— Não posso negar isso, mas e que tal isso? 

Ele bateu a palma da mão no próprio peito. O prodígio, que sempre falava tão cheio de si, agora parecia pronto para discutir seriamente. E isso fez Ryota perceber que o tópico em questão deveria ser importante para Alex.

— Se precisasse escolher, diria que sou covarde ou corajoso, Ryota?

— Corajoso.

Ela nem hesitou em responder, o que tirou um sorriso de Alex.

— Se o medo cria limites, então a coragem os ultrapassa. Elas são duas faces da mesma moeda, opostas como luz e sombra. É o que está pensando, certo?

— Estou errada?

Ryota coloco Dio no chão em algum ponto da discussão, mas a mão pequena ainda segurava a dela enquanto a conversa se desenrolou.

— “Errado” não seria o termo, acho que “desiludida”.

Novamente, Ryota encarou Alexandre com perplexidade, e parecia que as reações da garota o divertiam. Mas ele não estava zombando dela — era mais como se ver as mudanças no coração da amiga lhe trouxesse satisfação.

— Eu não sou corajoso. Nunca fui, e nunca serei.

Celestia pareceu se calar diante do murmúrio do prodígio cuja face neutralizou, expressando apenas um sorriso leve que Ryota conhecia muito bem.

— Sou covarde, fraco e pequeno. 

— Isso não é verdade. Você é-

— Eu aceitei este fato, Ryota. Não há nada que possa mudar isso. 

Apesar das palavras autodepreciativas, não havia nada de frágil em seus olhos. Ryota quase ficou boquiaberta com a contradição da expressão corporal e falada. Não porque ele estava mentindo, mas porque parecia conformado com isso.

— Se negar minha fraqueza me torna forte, então sou um grande mentiroso. Mentir me torna corajoso, mas apenas por fora. Diante das verdadeiras dificuldades, ignorar minha fragilidade me faria tropeçar nos próprios pés. Com isso, posso até levar outras pessoas que me importo comigo. Tudo porque não aceitei que sou fraco, e quis me fazer de forte.

De alguma forma, isso perfurou aquela parte pequena e ridícula dentro de Ryota. Se não soubesse que estavam falando sobre o próprio Alex, pareceria muito um sermão.

— A coragem não existe, Ryota. Ela é uma desilusão para que as mentes fortes possam pisotear as fracas, julgando-os pelo o que são e mantendo-os no lugar sem mudar… Nunca foi sobre deixar de ser fraco, sempre foi sobre ser fraco e fingir que não é.

Ryota engoliu em seco e sentiu a palma da mão suar.

Eu sei.

Era o que queria dizer.

Parecia mais fácil resignar-se à própria inferioridade e se contentar com isso, então mostrar ao mundo uma mentira para que, ao convencer aos outros, pudesse convencer a si mesma. Ao invés de encarar o cerne da questão, cobrir seu lado feio não o faria desaparecer.

Mas se a coragem não existia, então… 

O que tornava Fuyuki tão forte? O que fez Alex se tornar quem é? Como Bellatrix conseguiu limpar as próprias lágrimas vivendo em sua própria desilusão?

A resposta era apenas uma.

— Aceitar a fraqueza é a maior das coragens. E isso apenas a elite da elite pode fazer.

Alex, por fim, abriu aquele sorriso cheio de confiança e diversão que sempre fazia Ryota se sentir calma.

— Se convencer de que é corajoso fará seu ego subir, e quando tropeçar, vai te fazer desistir na primeira oportunidade e se convencer de que não pode fazer nada. No pior dos casos, vai levar outras pessoas com você, e tudo porque decidiu manter a cabeça erguida, sem olhar para os próprios pés, sem enxergar essa verdade.

— … Então, o que eu devo fazer?

Parecia que algo dentro dela tinha se remexido e despertado. Alex sequer se moveu quando Ryota sussurrou com a voz trêmula, imitando-o ao colocar a mão no próprio peito, acima do coração que batia forte.

— Como posso me tornar forte como você? Como devo… Aceitar isso?

Ryota tinha aceitado que queria mudar, e para isso precisaria conhecer aos outros para conhecer a si mesma. Mas sempre soube que a última fase sempre seria a mais difícil — afinal, ela mesma nunca se conheceu, e portanto, como poderia aceitar o desconhecido? Aquele lado pequeno, horrível, fraco e imundo como uma sombra da mente?

— Eu não acabei de dizer, sua tolinha?

— Ai!

Os olhos dela, que pareciam prestes a chorar, se fecharam quando Alex deu um peteleco na testa de Ryota. 

— Seja covarde, fraca e frágil o quanto puder. Não esconda isso de si mesma. Estufa esse peito e limpa essa cara.

— Mas…

Se eu me deixar ser assim, então… Tudo vai se repetir.

— A gente vai mesmo voltar neste tópico? Eu não quero precisar repetir o que te disse uns meses atrás. Você lembra, cabecinha de vento?

— … O que você disse?

Sua mente vagou para o passado, para quando conversou e desabafou com Alexandre após sua crise de ansiedade dentro do anfiteatro. Quando reconheceu seus próprios erros e entrou em uma espiral de preocupação e dor, se perguntando se poderiam perdoá-la.

E então, depois de ajudá-la a limpar as lágrimas e deixar que aquela dor fosse expelida para fora de si por palavras e lamentos, havia algo que Alex afirmou.

— “Só precisa de uma pitada de coragem, uma xícara de ousadia e uma bacia de autocontrole”.

— Isso aí, garota! Tá com a memória em dia.

Ele piscou um olho para ela, e Ryota riu com o nariz.

— Se a coragem não existe… Não, se a coragem é encarar minha fraqueza, então preciso usá-la?

— Quase isso.

— Mas… Você também me disse que mentir era ruim, e ainda antes dsso, me disse que estava tudo bem em mentir também. Então… 

Eram frases contraditórias, mas a expressão de Ryota pareceu deixar Alexandre contente outra vez. Ele balançou uma mecha do cabelo ruivo e empinou o nariz.

— A pitada de coragem para encarar a própria fraqueza. Em demasia, cria uma desilusão de força, mas se tirar esse ponto importante, você fica preso no lugar, então não vai adiantar de nada.

— Parece difícil demais.

— Não precisa ser. Às vezes somos nós mesmos que dificultamos tudo sem perceber.

Ryota baixou o olhar, pensando um pouco.

Convencer-se de uma força que não existe a faria criar coragem, mas quando o primeiro obstáculo a derrubar, toda essa força desapareceria, e a fraqueza que escondeu a abraçaria. Mas se ela pudesse usar essa fraqueza para pouco a pouco aceitá-la, para se conhecer e entender o que a fez como era, então…

— Eu precisaria ser cara de pau pra expor minhas falhas assim sem mais nem menos.

— E é aí que a xícara de ousadia entra, minha querida! Pra que mais serviria essa confiança? Como eu disse, algumas coisas começam como mentiras até se tornarem verdade, mas isso leva tempo pra aperfeiçoar.

— Então… Eu preciso fingir que estou confiante de minha fraqueza? Mas se carregar isso comigo, vou querer abandonar tudo.

Ela sabia que aquele lado ridículo que não queria ser exposto era minúsculo, mas poderoso o bastante para apenas uma migalha ser capaz de fazê-la hesitar a dar um passo adiante com ele. Conviver com a fraqueza era difícil de diversas formas diferentes. Não apenas reconhecê-la como sua, mas deixar que os outros a vissem, temendo a rejeição e o medo do erro, era…

— Não é pra isso que serve o autocontrole? 

Alex quebrou sua linha de raciocínio com apenas uma frase, e Ryota ergueu o rosto para ele de novo. Talvez havia uma sombra de preocupação em seus olhos azuis, porque o prodígio continuou:

— É necessário muuuita temperança, e não só pra não bater nas outras pessoas insuportáveis que tentarema te atrapalhar, mas também pra não se render ao medo mais do que o necessário. Se você carregar mais coragem do que consegue, então precisaria aumentar a dose de ousadia, o que iria sobrecarregar sua bacia de autocontrole atual ao ponto de explodir. Entende o que quero dizer?

Ryota encarou Alex com uma expressão intrigada, mas lentamente as palavras dele começaram a fazer um pouco mais de sentido.

Se fosse vista como uma receita para encontrar criar a própria força, então as medidas de cada um dos ingredientes deveria ser perfeito. O pouco de coragem, no caso, a porção pequena de fraqueza que estava disposta a tentar aceitar, era colocada na bacia de autocontrole para se manter calma em continuar cozinhando. Então, a xícara de ousadia para não permitir que aquela fraqueza se alastre sozinha, impedindo a receita de se cumprir.

Ousadia não para si mesma, mas aos outros. A mentira de que estava confiante nunca foi para esconder, mas para fermentar a massa que se formaria. Assim como a massa de um bolo para ser preparada, era necessário tempo para cada passo ser processado e completo. E sem isso, muito menos o cuidado e amor durante o processo da cozinha, a receita não poderia ficar pronta ou perfeita, e então seria necessário repetir o processo.

Se colocado de forma mais simples, seria assim:

Use a fraqueza como ponto de partida para se tornar forte. Convença os outros de uma mentira para manter aquilo protegido até estar pronto para ser exposto, e durante esse processo, era necessário trabalhar cuidadosamente para não permitir que a massa de fraqueza cresça e a consuma. Se manter deixada de lado por tempo demais, vai superar o que seria capaz de carregar, e tudo retorna à estaca zero. O autocontrole era essencial, um exercício de paciência e dedicação diários que, conforme cada receita era concluída, se tornaria capaz de repeti-la várias vezes até finalmente fazê-la sem precisar do passo a passo e se tornar natural.

Honestamente, Alexandre tinha um talento natural para convencer as pessoas, mas assim como Kakia, ele demandou tempo demais tentando explicar com analogias ao invés de ir direto ao ponto.

Apesar desse ponto em comum, Ryota não conseguiu deixar de sorrir. Ela entendeu que foi justo por saber como doía encarar diretamente o passo a passo para não sofrer com a insignificância que metáforas tornavam o processo mais fácil de se lidar.

Mentira não para enganar e esconder, mas para ganhar tempo e revelar a verdade com toda a força guardada. Era uma coragem forjada com o tempo e esforço, e Ryota sabia que era um sentimento que nunca deveria ser desprezado. 

Considerando sua analogia de mentira com o propósito de gerar força de vontade, a história de Bellatrix fez Ryota admirá-la ainda mais. E mesmo desconhecendo a de Alex, aquele mesmo sentimento cresceu por ele também.

Ainda assim, havia algo que permaneceu em sua cabeça.

— Se quem desistiu do curso era corajoso por subir o próprio ego acima do que podia encarar, então o que faz os estudantes de Gnosis superarem os próprios limites mesmo sendo covardes?

Diante da pergunta que Alexandre esperou ouvir durante todos aqueles longos minutos de conversa, ele indicou com a cabeça o que estava ao lado de Ryota. Mais especificamente, o garoto que segurava a mão dela em completo silêncio.

— O medo de fracassar pode te tornar fraco, e convencer essa fraqueza a ser força é um erro. Mas esse mesmo medo, se usado como combustível para não perder justamente por ser fraco, pode te fazer suportar qualquer coisa.

Acompanhando o olhar do prodígio, Ryota notou que Dio ainda estava ao seu lado. Mas diferente do que imaginou, o pequeno menino de aparência inocente tinha se encostado contra ela, deitando a cabeça contra sua barriga e fechado os olhos.

Para sua completa surpresa, ele conseguiu adormecer daquele jeito. Aos pés de Dio, Lion também cochilava. Mas ambos se mantiveram perto de Ryota o bastante para sentirem o calor de sua presença.

Ver a cena fez algo dentro dela se partir de novo e então se reconstruir, mais forte e mais macio do que qualquer coisa que sentiu em tantos dias.

— Essa, sim, é a verdadeira força da covardia. Acho que consegue entender melhor agora, não é?

— … Sim. 

Quando Bellatrix os alcançou alguns minutos mais tarde com várias sacolas cheias de compras, Alexandre nem hesitou em provocá-la como de costume. Ryota, em contrapartida, permaneceu em silêncio durante o restante do trajeto. E mesmo quando o sol da tarde gradualmente se tornou alaranjado, banhando Celestia com as cores calorosas do anoitecer, Ryota não soltou Dio ou Lion de seu colo, os carregando nos braços de volta para o hotel de hospedagem.

Após deixá-los na cama, ainda profundamente adormecidos, saiu outra vez do quarto o mais silenciosa possível. Sua caminhada pelo coração da cidade noturna foi agradável, mas não demandou muito para que encontrasse o local ao qual buscava.

Durante o caminho de volta para o hotel, ela acabou cruzando com um espaço conhecido, e por algum acaso do destino, sentiu que as encontraria ali, exatamente como da última vez.

— Boa noite. Se importariam que eu me una à vocês?

A voz de Ryota lhes chegou aos ouvidos, e logo as faces de Scarlet e Amane se viraram em sua direção.



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