Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 12 – Arco 4

Capítulo 53: A Fonte da Determinação

O amanhecer daquele dia foi acompanhado do cheiro de café forte e de geleia de morango. As costas de Ryota estavam doloridas quando levantou para ir até o banheiro e lavou o rosto. Percebeu, ao passar os dedos cheios de água pela face, que as marcas de exaustão em seu rosto ainda delineiam os olhos e testa. Na verdade, o inchaço das pálpebras depois das lágrimas daquela noite era quase constrangedor, mas não se deu ao trabalho de tentar escondê-lo.

Logo quando lembrou dos acontecimentos da noite anterior e o fim da noite das garotas, observou um movimento pelo reflexo do espelho e logo uma figura com cabelos alaranjados que mais pareciam uma explosão de chamas se aproximou. Ryota tentou não rir da aparência ainda pior do que a dela, mas Bellatrix reparou em suas intenções antes mesmo de poder se defender.

— Acordou toda engraçadinha, hein, Riri?

— Desculpe, não pude evitar.

Ryota cobriu os lábios com a mão e gargalhou baixinho, um som rouco que fez a amiga rir em retorno.

— Bom dia.

— Bom dia pra você também.

As meninas fizeram a rotina matinal, vestindo os uniformes e trocando de seus pijamas, antes de finalmente irem até a cozinha. O aroma do café da manhã invadiu suas narinas bem a tempo de uma mulher de olhos brilhantes de alegria abrir um sorriso largo.

— Bom dia, garotas. Parece que dormiram muuuito bem.

— Bom dia, senhora Saiph. E obrigada, foi graças à ótima hospitalidade.

Ryota não pôde evitar de ser cortês com as palavras, deixando Saiph vermelha de vergonha e felicidade com os elogios, enquanto Bellatrix seguia atrás dela deixando uma cutucada nas costelas com os dedos.

— Não a mime demais, ou a mamãe fica insuportável.

— Que rude, Bella! E eu me esforcei tanto aqui por você!

— Sim, sim, claro. Venha, vamos comer.

Empurrada pela força do amor e da teimosia jovial, Ryota sentou-se à mesa com as outras duas para o café da manhã. O cheiro da refeição preparada era delicioso ao ponto de fazer seu estômago roncar, mas diferente dos tempos onde se alimentar ao lado de uma família era uma rotina comum, com os aprendizados da corte de Edward e os estudos ao longo de quase um ano para se preparar para a vida na nobreza, ela havia aprendido os modos à mesa.

Então, ela esperou que todos se servissem antes de se permitir beliscar alguma coisa, evitando fazer qualquer sujeira ou sujar os dedos.

— Eu não sabia que você tinha modos de uma senhorita riquinha da corte, Riri. 

— Foram aprendizados que tive nos últimos meses em Hera. 

Querendo ou não, Ryota precisou se adequar e ser reeducada como uma jovem em ascensão dentro da alta sociedade. No começo, ela torcia o nariz para cada um dos passos exageradamente delicados, mas conforme o tempo passou, devido às exigências que passaram a ser parte da responsabilidade ao qual havia decidido carregar, acabou aprendendo rapidamente.

Quando pegou o jeito, aqueles modos deixaram de ser chatos e se tornaram quase divertidos. A aparência fazia parte dos jogos da nobreza, e considerando as origens de Ryota e o histórico não muito favorável de seu noivo Zero Furoto, todo e qualquer deslize poderia ser fatal. Eram pequenos gatilhos que seriam usados contra eles eventualmente, e enquanto ainda pudesse se esforçar, ela queria corresponder às expectativas ao máximo que podia.

— Que coisa mais adorável! Está vendo, Bella? Porque não aprende com sua amiga?

— Ugh…

Bellatrix engasgou com o pão que estava comendo quando Saiph fez um comentário animado, delegando discretamente que a filha tinha maus modos à mesa. Ryota se sentiu um pouco constrangida com a atenção em excesso, e deu um sorriso amarelo para a amiga que parecia ter levado um soco no estômago com as palavras.

— Mãããe, que exagero. Não precisa me esculachar assim.

— Uééé? Eu disse algo de errado?

— N-Não, eu… Quero dizer… Está tudo bem, eu acho.

Era visível o beiço com os lábios que a ruiva fez ao saltar da cadeira depois de terminar o café da manhã, resmungando alto enquanto marchava de volta na direção do banheiro pela casa. A mãe pareceu confusa e inclinou a cabeça, o que quase foi engraçado, e Ryota tentou consertar a coisas, mas acabou tropeçando na própria língua.

— A Bella não te dá trabalho?

— Hã?

De repente, o olhar de Saiph recaiu em Ryota. E ela se sentiu vista — observada de verdade. Era a atenção de uma mãe atenciosa com as pessoas próximas da filha, analisando cuidadosamente suas amizades, mas também respeitando seu espaço.

Talvez fosse porque Bellatrix era uma garota que sempre esteve sozinha, mas Ryota sentiu que Saiph parecia preocupada. E considerando tudo o que ouviu sobre seu passado na noite anterior, era compreensível.

Entretanto, ela abriu um pequeno sorriso.

— Jamais. A Bella é muito doce e gentil. Ela sempre consegue fazer todos sorrirem, sabe? É como um raio de sol.

— … Eu sinto… Eu sinto que ela parece um pouco distante esses dias. E me preocupei que talvez algo estivesse acontecendo.

Era um assunto delicado, e o tremelique nos cílios de Saiph fez Ryota achar que lágrimas poderiam brotar naqueles olhos bondosos a qualquer instante. 

— Cuide dela por mim, Ryota. Por favor. É tudo o que posso pedir a você.

Mas ao invés disso, a fragilidade na expressão da mãe que resplandecia, surgiu um sorriso leve. As palavras dela atingiram o peito de Ryota com um baque, e dessa vez foi ela mesma quem precisou conter a ânsia das lágrimas.

Elas são tão parecidas… Mas tão diferentes.

Ryota alargou o sorriso e tocou a mão no peito esquerdo, acima do coração.

— Com minha vida, eu prometo.

E, apesar de não terem se aproximado o bastante para poderem mesmo confiar uma na outra plenamente, Ryota sentiu que Saiph acreditou nela. Era um sentimento mútuo entre mãe e filha que tiveram perdas e falhas no caminho, mas outras pessoas puderam compensar esses erros para que ficassem em paz.

Talvez nesse sentido Ryota e Saiph fossem mais parecidas do que imaginavam. E, enquanto as duas sorriram uma para a outra, Bellatrix continuou recostada contra a parede ao lado, ouvindo discretamente a mãe e a melhor amiga conversarem, também suavizou a expressão durante aquele diálogo.

***

— E-Eu não acho que seja uma boa ideia…

— Deixa de ser medrosa, Riri! Cadê a grande heroína de Hera que salvou o príncipe dos males da humanidade?

— Isso nunca aconteceu! Quero dizer, mais ou menos, mas não foi bem assim.

— Não fica com vergonha e vem, segura minha mão que vai dar tudo certo.

Ryota estava se segurando como se suas pernas pudessem quebrar no portão da casa de Bellatrix, ouvindo a amiga tentando convencê-la a perder o medo e mover os pés. Ou melhor, mover os patins que foram colocado em seus pés, mas a falta de equilíbrio que tinha era o bastante para fazê-la mostrar puro pavor com a queda.

Era uma cena ridícula, mas que trouxe à Bellatrix risadas gostosas de diversão. Ryota não se importava de ser a fonte do sorriso dela desde que não se machucasse no processo, e mesmo com a mão estendida da ruiva em sua direção, ainda temia parcialmente o processo.

— Acho melhor eu ir caminhando.

— Que sem graça! Vive um pouco, Riri! Vem, vamos! Você consegue!

— O poder da torcida não vai mudar nada, sabe? Só tá me deixando mais nervosa!

— Então segura a minha mão! Você não confia em mim?

Os argumentos de Bellatrix eram cruéis, e parecia que a intimidade delas tinha aumentado consideravelmente desde a noite das garotas. Mas agora, Ryota quase estava se arrependendo de seus esforços anteriores para conhecê-la melhor se o preço fosse esparramar a cara no chão como um pudim.

Quando os dedos de Bellatrix estremeceram novamente diante dela, insistindo para que se esgueirasse, a tensão do corpo de Ryota diminuiu um pouco. 

— … Eu confio.

— Então, vem comigo. Segura a minha mão, e vamos fazer isso juntas.

Então, Ryota agarrou-lhe a mão com uma impulsividade tão grande que quase fez Bellatrix tropeçar para trás. Mas com o equilíbrio perfeito e os anos se acostumando a patinar, ela também estava determinada a não cair, especialmente depois de prometer que não deixaria a amiga despencar.

Quando segurou a mão, Bellatrix fez um movimento suave como o de uma bailarina e esticou as pernas para recuperar o equilíbrio, e em um passe de mágica, agarrou a segunda mão da amiga e a manteve parada no lugar.

— Viu, só? Não precisa ter medo.

— Está bem, está bem. 

— Você fica uma gracinha com vergonha, Riri. Que fofa.

— Podemos ir logo? Vamos nos atrasar.

— Que pressa, minha nossa!

Ryota disfarçou o constrangimento, mas Bellatrix nunca perdia a oportunidade de brincar com seus sentimentos. Ainda assim, era uma interação casual e cheia de carinho que ambas não conseguiam esconder, e a amizade apenas ficava mais e mais forte a cada momento.

— Devagar, você vai mover seus pés para encontrar o equilíbrio. Se frear, empurre devagar os calcanhares no chão e abra as pernas, flexionando um pouco os joelhos. Cuidado pra não fazer forte demais para não cair.

— Muita informação! Mas tudo bem, eu vou tentar.

Assim, a dupla dinâmica passou pelo portão da casa e prosseguiu pelas ruas de Celestia. A passagem foi tranquila mesmo com a lentidão das duas, mas gradualmente Ryota aprendeu a diminuir e aumentar a velocidade, ainda segurando a mão de Bellatrix.

Em algum ponto do trajeto, ela se permitiu andar sozinha e riu baixo quando se viu conseguindo andar por aquele trajeto. Adiante, Bellatrix patinou de costas, ainda mantendo a atenção em Ryota. Ao vê-la perder o medo e se divertir, ela ergueu o dedão da mão e mandou um “joinha”, e Ryota retribuiu o gesto. 

— Mas não é justo se exibir assim. Eu só consigo andar e virar, e você fica se exibindo assim…

— Não estou fazendo nada. Que exagero, Riri.

— Mentirosa! 

Bellatrix fez beiço com os lábios e disfarçou o sorriso quando patinou com apenas um dos pés, saltou por pequenos obstáculos e fez manobras com movimentos tão suaves que até parecia fazê-la flutuar. Ryota reclamou de brincadeira, mas seus olhos revelavam um brilho de admiração.

Se fosse de bicicleta, as coisas seriam bem diferentes…

Inconscientemente, ela se viu lembrando de Amarelinha, e de seus dias nada seguros andando com ela pelas colinas de Aurora ao som dos sermões de Zero.

Foram dias coloridos que não voltariam mais, e ela sacudiu a cabeça para focar-se no presente quando Bellatrix acenou em sua direção, indicando a aproximação do Instituto Gnosis.

Eu não quero perder mais nada… Não quero que nada disso acabe.

Se fosse possível congelar o tempo, mantendo todos aqueles dias coloridos e cheios de sorrisos em apenas um pequeno espaço para poder se recordar e vivenciá-los novamente sempre que quisesse, seria como um sonho.

Mas a realidade não era tão conveniente, e nada era eterno.

Ryota gostaria que fosse, no entanto.

Ainda que tenha adquirido a determinação para enfrentar todas as provações, trazendo resultados para os problemas que lhe foram confiados, um pedaço dela sempre temeria pelo pior. Pela possibilidade da felicidade de Bellatrix, da confiança e do laço que trabalharam tanto para construir e se firmar, um dia desaparecesse.

E ela fosse deixada sozinha de novo. Em geral, o que causava aquela discrepância de acontecimentos sempre era a própria Ryota, mas também não podia se esquecer que a origem daqueles sorrisos foi, de certa forma, originado dela também.

Eram duas caras da mesma moeda, assim como ódio e amor, vida e morte ou mentira e verdade. O mundo não permitiria que apenas uma face permaneça por tempo demais virada para cima, então tentaria sortear novamente para descobrir qual seria a jogada da vez.

Faltam apenas duas provações agora… Eu consigo.

Ryota assim pensou, disfarçando suas preocupações com um sorriso quando adentraram o Instituto Gnosis. Ainda havia um mês para sua próxima tentativa, e dessa vez esperava que não fosse tão difícil de encarar quanto a terceira.

Quem dera se tudo fosse tão fácil de ser conseguido apenas desejando.

Mesmo assim, eu vou… Não, eu preciso conseguir.

Se o medo de perder fosse a fonte de sua vontade para não recuar para o mundo isolado, frio e dolorosamente aconchegante no fundo da mente, que assim fosse. 

Mas Ryota não se ajoelharia de novo tão fácil ao Destino.



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