Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 11 – Arco 4

Capítulo 48: Não Terei Medo

Não foi uma grande surpresa para Ryota quando, logo ao abrir os olhos, estivesse encarando o teto alto do anfiteatro. Mas ao contrário das três vezes anteriores, o que a preencheu não foi uma sensação de vazio com o mundo deixado para trás, ou a dor fantasma que fazia seu corpo convulsionar, e sim algo diferente.

Sentando-se no piso, reparou que as luzes que outrora estiveram sobre sua cabeça não estavam mais acesas — como se a apresentação tivesse chegado ao fim, e apenas ela restou no palco. Quando todos os atores se retiraram para trás das cortinas e os espectadores foram embora, apenas uma pessoa restou, demandando mais tempo que os demais para perceber o fim da peça trágica que se repetiu várias e várias vezes.

Caso não fosse capaz de encontrar o destino necessário ao protagonista daquela apresentação, jamais encontraria seu fim. Estaria repetindo-a pela eternidade ao som da ovação da platéia, meramente sombras parabenizando mais um desfecho cruel com o derramamento de sangue, vida e lágrimas.

Talvez para aqueles que viam de fora, fosse tudo um grande entretenimento. Quando observados como seres superiores, cujas marionetes poderiam ser controladas como bonecos, era divertido tal qual um jogo. Não havia compaixão, perdão ou reflexão sobre as perdas e sofrimentos causados, e a origem daquele desespero apenas ficava mais e mais empolgada para gerar mais e mais angústia.

Eram peças no xadrez, marionetes no palco, brinquedos usados e descartados infinitamente — assim que se via de fora da caixa, alheio ao experimento que ali ocorria. 

Mas com o encontro da origem da provação — o destino trágido do herói cujas esperanças seriam sempre esmagadas — foi o que gerou o fim da peça. E, por fim, desencadeou no encerramento da provação.

Ryota suspirou, e seu murmúrio ecoou no espaço vazio.

— Eu gostaria que ela fosse menos criativa, às vezes.

Era um comentário cheio de críticas que não chegaria ao seu destino diretamente, mas a garota sabia que Sofia tinha olhos e ouvidos em todos os cantos do mundo. E era por saber disso que conseguiu visualizar o som da risada dela no Empíreo.

Colocando-se em pé e batendo nas roupas para afastar a sujeira, Ryota caminhou na direção das escadas para descer do palco e sair do anfiteatro. Ele estava mais escuro do que de costume sem as luzes ligadas, mas ainda era possível enxergar o bastante para ver que nem mesmo as escritas em letras vermelhas estavam mais na parede.

Antes, aquelas palavras que escorreram como sangue marcaram o retorno de Ryota três vezes, incessantes em exigir pela busca de algo desconhecido. Agora, com o fim da provação, elas desapareceram para sempre em mais um dos mundos artificiais criados pela Entidade da Sabedoria.

… Mas o quão artificiais eles eram, afinal?

Ryota se viu pensando sobre isso enquanto saía do anfiteatro, passo a passo caminhando na direção da luz e da cidade serena de Celestia. 

Durante os mundos que se repetiram, uma parte dela se perguntou várias vezes sobre o quão verídicas eram todas as experiências que teve. Quão reais eram os pensamentos, as palavras, os sentimentos e as decisões de cada um — e temeu que quando voltasse ao mundo real, se decepcionasse ao descobrir a verdade.

Estava ciente de que não tentariam tomar sua vida assim como na provação, mas um pedaço dela ainda queria entender o que levou cada um deles a tomar aquela decisão. Houveram pessoas, como Bellatrix, que cederam à pressão mental do mundo em uma parcela de tempo muito mais curta do que outras como Amane, cuja resistência persistiu até que ela finalmente preferisse tomar a própria vida a ser controlada por aquela insanidade.

Ryota queria conhecer melhor cada um deles. Queria entender o quão verdadeiras eram as palavras e os sentimentos que ouviu — e quase se sentiu envergonhada ao perceber que ainda temia que fosse mais uma brincadeira de mal gosto das Entidades.

Mas, após fazer sua decisão com Sofia no Empíreo, sentiu-se mais forte. Apesar dos temores do subconsciente, ainda restava-lhe forças para ouvir o indesejado e compreender o desconhecido.

No passado, Ryota ouviu verdades que não queria, e tapou os ouvidos para elas. Ao invés de se esforçar para entender e manter a calma, suas emoções explodiram e se viu entrando em um abismo sem fim por vontade própria.

Diversas vezes justificou ações erradas com bons propósitos, e contornou a culpa apontando dedos para outras pessoas envolvidas no problema. Ela criou um acúmulo de erros muito maior do que acertos, e alguns deles não tinham mais correção.

Lembrar-se do desaparecimento de Jaisen e da morte de Albert apertou-lhe a garganta, mas conteve a dor no peito e respirou fundo. Aquelas eram feridas que não cicatrizaram, e se via cutucando-as propositalmente para se lembrar de onde veio e para que ainda estava ali de pé.

Era um método doloroso, mas que funcionou até o ponto de sentir-se solitária o bastante para querer desaparecer. Temia se apoiar em outras pessoas, e recusou-se a ouvir os outros mesmo depois de terem lhe estendido a mão e oferecido ajuda.

Ela era fraca, covarde e patética. Um poço de egoísmo que tropeçou constantemente nos próprios pés incontáveis vezes. 

E, ainda assim, houveram pessoas gentis o bastante para querer ajudá-la a se levantar. No começo, afastou aquelas ofertas, mas elas permaneceram em sua mente por tempo o bastante para se arrepender de não tê-las aceitado. 

Ryota queria amar e ser amada de novo, mas não tinha forças para enfrentar o medo da perda ou dos erros. Era cega aos próprios defeitos e ignorava os dos outros apenas para se sentir bem, dentro do próprio casulo confortável.

Após correr, se exaurir, chorar e implorar por tanto tempo, uma grande exaustão pesou em seus ombros ao ponto de seus olhos quase fecharem. E mesmo agora aquele cansaço mental e físico não desapareceu, mas tornou-se um pouco mais leve.

Estava pronta para começar a encarar tudo o que desviou o rosto. Usaria os aprendizados que foram repassados e o que vivenciou para melhorar a si mesma, correspondendo às expectativas e sentimentos que foram concebidos.

Ryota não teria medo.

***

Ela retornou para o quarto de hotel quando o sol começou a despontar no horizonte, banhando as paredes do quarto de dourado e laranja. 

O silêncio do cômodo era agradável o bastante para que seus ouvidos pudessem relaxar do constante zumbido, e Ryota despencou na cama sem nem pensar duas vezes.

Um grunhido escapou de sua garganta com o conforto do colchão recepcionando a mente cansada, e seus olhos encheram-se d’água com o sono repetino. O cansaço era forte o bastante para afetá-la fisicamente, e nada além de uma boa noite dormindo era o que sua mente implorava.

Interrompendo as pálpebras tremulas que ameaçaram se fechar, uma figura sombria surgiu na porta, de costas para a luz do sol. Não foi uma surpresa para Ryota que Dio estivesse ali quando ainda compartilhavam o mesmo quarto de hotel, e quase não encontrou energia para erguer parcialmente o rosto da cama.

Sua visão ficou embaçada com os olhos molhados, e Ryota apenas se viu observando a face de Dio ficando gradualmente mais nítida.

Ele abriu seu familiar sorriso, relaxando os ombros em alívio.

— Eu sabia que você conseguiria.

Foi um sussurro que trouxe ao coração o despertar de suas últimas memórias na provação — quando o cadáver do garoto aninhou-se nos braços dela, e encontraram o fim daquele mundo lado a lado.

Ryota sentiu os olhos queimando, mas agora não de sono.

Sentou-se na cama devagar, e com a menção do menino de dar um passo para frente, Ryota se adiantou. E, para a surpresa de Dio, que quase enroscou os próprios pés no chão e caiu, um par de braços o segurou em um abraço desajeitado.

Ela nem percebeu que caiu de joelhos e envolveu o pequeno menino para mais perto, deitando o rosto no peito com um calor protetivo. 

Durante um longo momento, Dio apenas olhou para baixo com visível choque, antes de finalmente rir levemente com o nariz, suavizando as feições jovens.

— Acho que te preocupei, não foi? Me desculpe.

A mão dele deslizou devagar para a cabeça dela, tocando os fios escuros em uma carícia discreta. Os dedos finos encontraram caminho pelas raízes marcadas por discrepantes tons de branco ao centro da cabeça, roubando a atenção dos olhos áureos de Dio.

— Vai ficar tudo bem agora.

Apesar da gentileza do menino, Ryota não conseguiu se acalmar ou soltá-lo. Seus braços se mantiveram firmes ao redor dele, o segurando como se ele pudesse desaparecer a qualquer segundo. Não queria, mas as lágrimas despontaram de seus olhos mancharam a camiseta dele.

Dio não comentou sobre a descarga de emoções, apenas se permitiu ser segurado por o que pareceu uma eternidade. O silêncio do quarto de hotel apenas era quebrado pelo tique-taque do relógio de parede, anunciando o gradual anoitecimento na cidade.

Quando Ryota afastou o rosto úmido, seus olhos se apertaram ao se focar no rosto de Dio. Havia uma infiidade de coisas a serem ditas, mas a primeira coisa que saiu de seus lábios foi uma pergunta sussurrada:

— Você… Parece menor.

Apesar de Dio nunca ter revelado sua idade, a aparência sempre fez Ryota interpretá-lo como uma criança em seus tenros onze ou doze anos. A altura dele originalmente chegou até a altura de seu peito, mas agora… Parecia estranhamente diferente.

Ryota não percebeu isso na escuridão ou com o quão embaçada sua visão esteve, e apenas mencionou aquela discrepância de tamanhos depois de longos minutos o abraçando. 

Até mesmo ajoelhada no chão, ele ainda mal parecia alcançar a altitude de seu rosto. Na verdade, observando de perto, o rosto e as mãos dele estavam discretamente menores do que antes.

— … O que foi que aconteceu?

Com a pergunta murmurada, as íris de Dio adquiriram o tom experiente por um instante quando alargou o sorriso gentil.

— Estou surpreso que tenha percebido isso.

— Ah? Como não poderia perceber? Faltava tão pouco para chegar na minha altura antes, e agora você… Bem, parece ainda mais novo.

— Obrigado por perceber, moça. 

Encarando a confusão de Ryota com um riso entretido, Dio suspirou em satisfação. Ele parecia estranhamente contente com a observação.

— Você é sempre um mistério, não é?

— Não sou, não. Acho que você apenas não prestava atenção em mim o suficiente.

— Ugh… Isso eu não posso negar.

Ryota desviou os olhos com o rosto pegando fogo de constrangimento. Era verdade que se recusou a encarar e entender a verdade por trás do garoto que sempre prestou-lhe conselhos e ajuda quando precisava, e não havia como esconder isso agora.

Dio riu baixo novamente, ainda passando a mão na cabeça dela como se fosse mais nova do que ele — o que era uma cena engraçada, pois se antes ele parecia uma criança, agora o menino se assemelhava a alguém da pré-escola com cerca de sete a oito anos.

— … Não vai me contar o que aconteceu?

— Não é que eu não queira, moça. Apenas…

Ryota olhou novamente para o rosto de Dio, encarando-o quando agora ele desviou o olhar com um tom distante. Aquele mesmo sentimento de melancolia que o acompanhou desde o começo, e era outro grande enigma.

Apesar de suas questões às quais ele deveria estar entediado de ouvir repetidamente, Ryota respirou fundo uma vez e soltou os braços do corpo dele.

Então, ergueu de leve o canto dos próprios lábios em um sorriso discreto.

— Eu vou esperar até que esteja pronto para me contar.

Dio voltou seus olhos para ela com uma leve surpresa, e Ryota continuou:

— Bem, é claro que eu gostaria de ouvir e saber tudo agora, mas… Tem coisas que levam tempo para serem ditas. Não vou te forçar a falar.

Ela entendia isso melhor do que ninguém, e mesmo agora ainda estava se acostumando com a ideia de voltar a compartilhar seus pensamentos e sentimentos com os outros. 

Mas para que pudesse ouvir, também precisava falar. Era uma troca mútua gerada e fortalecida por laços de confiança. E para estreitar esses laços ao ponto de permitir que desabafem uns com os outros… Era mais um ponto que Ryota precisava trabalhar.

— … Me acompanhe, por favor.

Ryota colocou-se de pé e aproximou sua mão de Dio. Apenas agora ficou ainda mais claro a nova diferença de tamanhos entre eles, especialmente quando a palma tão pequena quanto uma folha pousou em seus dedos. A garota o guiou para mais perto da cama, e sentou-se na beirada dela com um convite silencioso para que Dio a acompanhasse.

Ao sentir o colchão ceder um pouco ao lado quando ele se sentou também, Ryota inspirou fundo e pensou. Sua mente trabalhou pelas palavras corretas a serem usadas para se expressar, ainda sem soltar da pequena mão a que se agarrou.

E então, quando trocou olhares com Dio outra vez, se viu falando baixinho:

— Obrigada por estar aqui comigo.

Ryota pensou ter visto Dio engolir em seco, mas continuou:

— Eu… Fui rude com você mais vezes do que posso contar. Não acho que consigo dizer o quanto me arrependo do que eu disse antes ou das vezes em que te afastei quando tentou me ajudar.

Ainda se lembrava de cada um daqueles momentos. Mesmo quando cegou-se com os horrores da paranoia, ele sempre esteve por perto. 

— Você nunca me deixou sozinha… O que é estranho, porque… Eu sempre me senti assim.

Dio era um grande mistério. A origem de sua afeição era desconhecida e a fonte de seus poderes a fazia lembrar de como estremeceu diante de seus olhos frios. Havia ainda tantos acontecimentos aos quais era incapaz de descrever que se via perdida em qual deles mencionar primeiro.

— Pra ser sincera, eu não entendo você.

Como se esperasse aquele comentário, ele riu com o nariz, e Ryota voltou a murmurar com um pequeno sorriso:

— E como eu não entendo, quero aprender a entender. 

Ainda que um pedaço ínfimo, pequeno e ridículo dela ainda tivesse medo, sua vontade em compreender o desconhecido era maior do que temê-lo.

Seus dedos, maiores do que os dele, pareciam infinitamente mais frágeis ao estremecer.

— Tem muitas coisas que quero saber, ao ponto de não conseguir saber o que perguntar primeiro… Não, na verdade, antes de te conhecer, preciso saber se vai me permitir fazer isso.

Ryota poderia desejar e se esforçar o quanto quisesse — ela nunca alcançaria o coração de alguém sem a permissão deste primeiro. Um conhecimento sem alma era o mesmo que nada.

— Então, pra isso… Pra que eu possa ser digna da sua confiança, eu vou aprender a confiar em você também. E…

O rosto de Ryota ganhou uma cor vermelha de novo. Era estupidamente difícil de vociferar sentimentos em voz alta, especialmente quando havia afastado os de outra pessoa por tanto tempo.

Ela apertou os lábios antes de concluir:

— … E quero que me conheça também. 

Talvez aquela fosse a maior prova de esforço que poderia oferecer. Com dificuldade para não tropeçar nas palavras ou ser mal interpretada, ela tentou explicar um pouco dos próprios motivos para Dio.

“A origem do conhecimento está aqui”

Uma vez, Scarlet lhe disse e apontou diretamente ao seu coração — era uma dica para onde o fim da provação se encontrava, mas também o simbolismo de um novo começo.

Era preciso se conhecer para conhecer os outros, e Ryota pensou que, apesar de ainda não entender o bastante sobre si mesma, esperava que pudessem ajudá-la a trilhar esse caminho.

Talvez, ao lado das pessoas que queriam conhecê-la, pudesse adquirir o aprendizado necessário para compreender e alcançar o coração delas, também.

Diante daquela determinação falha e frágil como uma brasa que poderia fraquejar e se apagar, o menino alargou o sorriso com o que pareceu um olhar de orgulho.

E, no fim, Ryota suspirou com um riso tão leve quanto o de Dio ao perceber que, realmente, nunca precisou ter medo.



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