Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 11 – Arco 4

Capítulo 47: Decisão Resoluta

O despertar, naquela vez, foi inusual. 

Entretanto, ela sentiu quando o ambiente frio e úmido se modificou, e o calor que percorreu cada um dos poros de seu corpo desapareceu gradualmente tal qual como uma brisa que varreu cada pequeno pedaço daquele mundo que nunca existiu.

E, quando suas pálpebras oscilaram para se abrir, os olhos azuis deslumbram-se com o espaço escuro pincelado de pontos brancos infinitos. 

O silêncio que vagava no Empíreo era pacífico, parecendo recepcioná-la do turbilhão de pensamentos, emoções e dores com um largo e sublime abraço. Podia sentir a superfície dos pés deslizando acima da água, ondulando a cada passo regular e lento na direção da grande escadaria. 

Ryota inspirou fundo uma vez e preparou-se para os rostos que veria quando ascendesse ao último degrau, mas o que a recepcionou não foi nada além da familiar mesa com apenas dois assentos disponíveis. E, um deles, estava ocupado.

— Bem-vinda de volta, filha da luz. E meus parabéns por ter passado na terceira provação.

A voz melodiosa que a recepcionou veio de uma donzela com feições delicadas que abriu um sorriso digno de uma anfitriã. 

Olhar para o rosto de Sofia trazia uma sensação semelhante de banhar-se em um profundo alívio. Vê-la era uma prova de que a dificuldade ao qual encarara havia chegado ao fim, e poderia receber a recompensa por seus esforços. Mas, em contrapartida, havia tanto a ser dito que nada saiu da boca de Ryota, mesmo que desejasse muito.

— Sente-se, por favor… Mas acho que não preciso pedir à essa altura, não é?

A Sabedoria pareceu satisfeita quando Ryota começou a caminhar na direção da mesa e ocupou seu lugar de costume quando ainda mal terminou de falar. 

Logo quando sentou-se na mesa ocupada apenas por uma xícara de chá e seu pires, nasceu com um som de “puff” um copo com água, tilintando devagar com o choque dos cubos de gelo. E, com o mesmo passe de mágica digno de um contos de fadas, um último detalhe foi adicionado ao vidro — pétalas de folhas de hortelã, moldando o copo como uma oferta elegante.

Ryota bebericou de sua água, mentalmente agradecida pelas conveniências que o espaço das Entidades predispunha aos seus visitantes. E assim permaneceu, silenciosa e pensativa, conforme focava-se na sensação gelada do líquido descendo pela faringe.

Pela primeira vez, ao invés de explodir com o acúmulo de perturbações em um par de segundos diante da Entidade da Sabedoria, a garota recolheu-se no assento e apenas apreciou a paz que lhe foi garantida.

E Sofia não se incomodou em dizer ou fazer nada, muito menos manter seus olhos desconfortavelmente em cima da convidada.

Os únicos sons que chegaram aos ouvidos foi o toque gentil das louças na mesa. Sequer suas respirações podiam ser notadas, e Ryota sentiu-se grata por isso. Após um período excessivamente longo de ruídos que a fazia querer chorar ou entrar em combustão, o espaço do Empíreo era como uma casa ao qual voltar após os esforços na provação.

… Um lar, hm?

Seus pensamentos foram quase um murmúrio de sarcasmo. Afinal, era zombeteiro considerar que o local criado e comandado pelas Entidades, justo por aquelas que estavam sendo as responsáveis por lhe dar dores de cabeça, agora a recepcionava ao ponto de fazê-la se sentir confortável.

E, ainda mais do que isso… Diante dela, estava a pessoa que fora responsável por desencadear todos aqueles sentimentos conturbados. Apesar de ciente disso, não parecia que Sofia se incomodou nem um pouco com isso. 

— Você está quieta hoje.

— Apenas estou agindo como uma anfitriã adequada. Seria falta de educação propor o início de uma conversa quando minha convidada parece indisposta.

— … Tem razão.

As palavras trocadas foram através de murmúrios, e suas vozes quase desapareceram na imensidão do Empíreo após soarem em seus ouvidos. Observando a face da beldade que sorria, Ryota se viu outra vez à mercê dos questionamentos.

Apesar de Sofia ser uma Entidade, e que abertamente rotulou-se como alguém que desfrutava de cada um dos sentimentos expostos pelos humanos, ainda havia aquele ar de calmaria ao seu redor que era convidativo. Colocando de lado a imensidão de crueldades que deveria se passar na mente dela, a Sabedoria trazia, tal qual o Empíreo, o abalo do abraço caloroso de uma mãe após um longo dia exaustivo.

Ryota não quis, e seu coração relutou contra o cérebro, cujas prioridades pareciam disparar para vários lugares e âmbitos diferentes, mas sentiu-se acolhida e quase feliz de estar com Sofia.

Acho que o cansaço está me fazendo ponderar coisas absurdas.

Talvez ciente do caminho que seus pensamentos levaram, a Sabedoria riu de leve com o nariz, e Ryota quase se sentiu constrangida com a exposição emocional.

— Será que dá pra parar de me espiar assim? 

— Isso é impossível. Me impedir de adquirir conhecimento está fora de suas capacidades atuais.

— Você devia ter um pouco mais de respeito pela privacidade dos outros, sabe? É por isso que você nunca tem outros convidados aqui além de mim.

— Para alguém que não consegue enxergar além do próprio umbigo, suas palavras foram bem certeiras. 

Apesar da voz de Ryota ainda soar baixa e distante, a Sabedoria se divertiu com a troca de palavras. Era tedioso quando nenhum tipo de ofensa poderia afetar Sofia, pelo contrário: a Entidade estava se divertindo com as tentativas frustradas de sua convidada.

Ryota pensou que provavelmente ela estava acostumada com isso, e decidiu parar de tentar. Apenas parecia uma cena ridícula como a de uma criança discutindo com um adulto.

— E então? Se sente um pouco mais calma?

— Dentro do possível para alguém que precisou tirar a própria vida.

A resposta veio cheia de um cinismo venenoso, mas a beldade não se retraiu. 

— Minha impressão é que os efeitos foram opostos ao imaginado.

— Ah, mesmo? Não me diga que você e suas amiguinhas não se divertiram nem um pouco.

— Se fosse para descrever, elas adoraram. Foi uma peça de tragédia intrigante, ainda que curta.

Ryota sentiu a garganta se fechar com as respostas de Sofia. Seus comentários sarcásticos nunca chegariam ao coração da Entidade — era tão frustrante quanto discutir com uma parede.

Mas, em partes, também foi de grande consolo para o coração cheio de amarguras da garota.

Curta? Sabe quantas vezes precisei repetir aquela merda?

— Estou ciente. Estávamos acompanhando cada passo seu.

— Claro que estavam… 

A Sabedoria suavizou os olhos quando a garota bufou e bebeu mais de sua água, recostando-se no assento sem disfarçar arrogância na voz. 

Ryota ainda se recordava da segunda vez em que perdeu a vida. Seu corpo se arrepiou à mera memória dos ossos quebrados e do sangue esparramando-se no chão do teatro, além das palmas fantasmas que ecoaram pelas quatro paredes. 

E, apesar das sombras de figuras que não estavam ali, sabia que algumas delas realmente eram verdadeiras. Sofia e as demais Entidades testemunharam cada um dos retornos como uma encenação dramática, cheia de altos e baixos no roteiro que trouxeram risos e regozijos. 

Com um suspiro, Sofia pousou sua xícara no pires.

— Entendo sua objeção, mas como testemunhou, nada era real. Não vejo razão para se ressentir tanto assim.

Ignorando a óbvia noção de que foi uma provocação barata, Ryota disparou em resposta, erguendo um pouco o tom de voz.

— Pare de tirar com a minha cara! Você sabe muito bem que eu estava sentindo toda a dor. Não importa se os mundos recomeçariam ou não, eu…

… Nunca vou me esquecer daqueles rostos.

A visão dos cadáveres se acumulando ao redor como uma pilha era incômoda, mas quando as faces encaradas eram as de pessoas preciosas, a laceração em seu coração apenas piorava. 

Os punhos se cerraram sobre a mesa por um instante antes de seus dedos relaxarem ao continuar:

— Não importa quantas vezes eu morra, o medo e a dor da perda não são apagados.

Ryota se lembraria para sempre do pavor e do peso da culpa por deixar quem ama ser perdido. Ainda que fosse um mundo falso, perdido entre milhares de possibilidades, ele permaneceria gravado em sua memória.

O calor do sangue, a vida se esvaindo, os corpos em seus braços, amarrados como correntes de um egoísmo disfarçado de altruísmo construído por anos — e, por fim, a decisão falha de se permitir compartilhar aquele fardo com quem amava, os permitindo se envolver e desperdiçar suas vidas.

— … Eu não quero que eles morram por mim.

Seus lábios se apertaram e a face de Ryota mudou de frustração para amargura. 

— Se o preço pago para compartilhar minhas dores é a vida deles, então prefiro carregá-la sozinha.

Essa foi a decisão que tomou um pouco antes do último mundo se desfazer. Quando o assassinato de Bellatrix e o suicídio de Amane pareceram despedaçar toda a sua determinação em farelos, querendo desaparecer como cinzas ao vento. 

A fez se lembrar dos erros do passado, e como insistia em tropeçar nas mesmas pedras. E, finalmente, a tragédia sangrenta daqueles mundos nada mais refletiram do que a mais nua e crua realidade — o quão incapaz e egoísta sempre foi.

— Mas, se bem me recordo, essa decisão mudou um pouco um pouco depois disso.

A voz de Sofia acompanhou as memórias de Ryota até as cenas finais do mundo escuro, onde o penúltimo ator remanescente resistiu até o fim apenas para repetir palavras às quais quase se cansou de ouvir naqueles meses.

“Não deveria precisar de um motivo, é apenas… Amor por amor.”

Ryota ergueu os olhos do copo de vidro para a face da beldade sentada diante de si.

— … Eu acho que sim.

Quando Dio se propôs a revelar uma vez mais o quanto seus sentimentos eram verdadeiros, outra vez se pôs a hesitar no abismo. 

 “Eu sei que vai se sentir mal agora, mas quando olhar para nossos rostos, vai querer tentar mais uma vez. E mais uma, e outra mais. Essa é você.” 

— Foi por isso que fiquei um pouco perplexa com o quão resoluta chegou até aqui. As apostas estavam pendendo para “depressiva” ou “exasperada”.

— Espera, vocês estavam apostando o quão instável emocionalmente eu estaria depois de sair da provação?

Sofia balançou os ombros com indiferença, mas Ryota apenas conseguiu olhar um pouco chocada para a revelação. Ao fim, ao invés de fúria, apenas conseguiu suspirar diante da desumanidade das Entidades.

Por que ainda me surpreendo?

À reação passiva da outra, Sofia traçou um leve sorriso, sussurrando consigo mesma.

— São mesmo muito parecidos.

— Hã? O que disse?

— Nada importante.

Ryota arqueou uma sobrancelha quando Sofia riu um pouco, acompanhando a Entidade com os olhos ao ouvi-la prosseguir:

— Apenas estive me perguntando o quanto sua experiência anterior a mudou ao ponto de não esbravejar comigo outra vez.

A garota compreendeu que o interesse da Entidade não estava mais apenas no resultado ou no caminho traçado até ele, mas na forma como direcionado a logística até esse fim.

E, após pensar um instante, Ryota murmurou, baixando os olhos para o copo de vidro.

— Não é que eu não queira ficar com raiva ou reclamar do jeito que você faz as coisas. Só não estou com paciência pra isso.

— Está medindo os prós e contras? 

— Talvez sim — Ryota bateu o dedo no vidro e escutou o tinir do gelo — Agora que estou um pouco mais calma e consigo pensar direito, não vejo razão pra ser teimosa quanto a isso. 

Suas íris azuis escuras ergueram-se para as da anfitriã.

— Posso detestar vocês até o fundo do meu âmago, mas teimar com isso não me levaria a lugar nenhum. Estou aqui por um motivo, e não quero desperdiçar esse tempo com bobagens.

Ryota nunca iria se esquecer das palavras ou das ações de nenhuma das Entidades, e não as estava perdoando por serem assim. Ao invés de se priorizar as amarguras pessoais e se permitir ceder às provocações quando seu coração ainda era tão frágil e fraco, deteve as próprias rédeas.

Ao recuperar a sanidade e a capacidade de pensar logicamente, Ryota também relembrou a razão de ter ido para Urânia em primeiro lugar. O motivo de atravessar cada provação, de se lamentar, sangrar e desesperar ao ponto de cegar-se nas sombras, foi apenas um.

— Quero as respostas para minhas perguntas, Sofia. E assim como combinamos, precisa cumprir com sua parte do acordo. Não vou recuar tão fácil dessa vez.

Diante da lenta e gradual força que retornou àquela voz, a Sabedoria acenou com a cabeça em concordância e aprovação. 

— Muito bem. Presto meu respeito à sua decisão, filha da luz. Irei responder-lhe mais duas de suas perguntas.

Sofia soou estranhamente satisfeita com as respostas de Ryota, e o clima no Empíreo voltou à estaca zero. Assim, permitindo que anfitriã e convidada pudessem dialogar.

— Na vez anterior em que me visitou, não tive a oportunidade de entregar a você a recompensa por passar na segunda provação. Mas me permita fazê-lo agora.

Ryota concordou com a proposta da Sabedoria, escondendo sua surpresa com o quão justa ela foi em respeitar o tempo e as condições com as quais haviam se visto da última vez.

— Para reverter as condições que Kanami Akai está, a demanda é simples. 

A menção ao nome da guardiã de Fuyuki causou um estremecimento involuntário em seu corpo, e Ryota encarou Sofia com bastante atenção, entrelaçando os dedos no colo. 

— A resolução para o caso da irmã mais nova e para o herdeiro dos Furoto está correlacionado. Você mesma mencionou no começo quando firmamos o acordo, lembra-se?

A pergunta fez Ryota franzir a testa em busca das palavras que havia dito quando negociou com Sofia pela primeira vez em Urânia. Logo quando chegou na cidade, em Celestia, e foi guiada por Amane até a sala dentro do Instituto Gnosis, onde discutiu e negociou com a reitora a respeito da troca de favores.

Com um pouco mais de esforço do que o normal, finalmente relembrou os quatro pedidos feitos à ela — a cura para Zero e Kanami, a localização da Maga Veridian e de Jaisen, e, também as respostas sobre seu avô. Desde então, como prova de credibilidade, a Sabedoria destinou-lhe o encontro com a Maga Veridian, mas se deleitou com o chocante encontro entre Ryota e Gê.

Desde então, esteve considerando quais mais armadilhas a Entidade estaria colocando em seu caminho, e quais mais omissões faria propositalmente apenas no intuito de tirar-lhe um sorriso. 

“Eu nunca minto.”

Foi o que Sofia lhe disse certa vez, após uma discussão sobre suas verdadeiras intenções. E, independente daquela alegação ser verdadeira ou não, conversar com uma pessoa cujo conhecimento poderia ser usado para mudar vidas e mover países, mas que se recusava a entregar sem o devido custo e entretenimento, era mais do que um desafio.

Quando Ryota se calou à pergunta, Sofia continuou, sem se incomodar com a hesitação da outra:

— Sobretudo, reitero que não apenas as respostas que procura para Kanami e Zero estão interligada, como também precisará do auxílio da Maga Veridian.

Aquilo foi como um soco no estômago, pois o ar dos pulmões da garota desapareceu em um piscar de olhos. Sofia riu com a expressão amargurada da convidada.

— Deveria esperar que ainda pressentisse dela.

— Mas é claro! Ela… Foi ela quem matou o vovô.

O rosto de Ryota ferveu quando ergueu um pouco o tom de voz, motivada pelo rancor e pela raiva. Ainda não se esquecera, nem por um instante, do que presenciou ou das palavras que ouviu de Albert em seus momentos finais.

Tantas perguntas em aberto, tantos desfechos que poderiam ter tido naquele dia — por que justo sua morte fora necessária? Ryota nunca se importou em ouvir o lado da Maga Veridian, e não se sentia nem um pouco à vontade de sequer mencionar o pseudônimo daquela mulher que, diferente de Eliza, sequer pensou duas vezes antes de tomar uma vida.

Ainda que diversas outras questões importantes saltassem à frente, Ryota nunca se esqueceu de nada do que aconteceu há quase seis meses em Hera. Nem das mortes, das discussões, do ódio, do luto ou da culpa. Em partes, tinha se resignado a focar nos objetivos e não se permitiu pensar demais no passado, ainda que suas vontades estivessem diretamente ligadas a ele.

Ela sabia que lembrar demais a faria parar, e com o curto prazo que lhe fora permitido, e a contagem regressiva para salvar a vida de Zero, Ryota não tinha escolha a não ser engolir as dores e cumprir com seu dever.

Mas, ainda assim… Ainda assim, quanto mais se esforçava deixar para trás, mais difícil era quando lembrava.

—  Você também… Você também tinha uma ligação com o Albert, não é?

Ambos compartilhavam do mesmo sobrenome, e provavelmente de uma história. Sofia, mais do que qualquer um, sabia sobre seu avô — não apenas porque era a Sabedoria, mas porque conviveram por muito mais tempo.

À pergunta mais ressentida e em tom de frustração, Sofia inclinou a cabeça para o lado devagar, deixando os fios esverdeados escorrerem por seus ombros.

— Não responderei nada sobre Albert até que cumpra com as próximas provações. 

— … Imaginei.

Ryota aliviou a tensão nos ombros, e decepção substituiu a frustração quando suspirou com a resposta esperada.

— Tenha paciência, filha da luz. Vou compensá-la por seus esforços assim como premeditei, mas não entregarei nada com antecedência até que cumpra a sua parte do acordo.

Sofia estava sendo justa, e Ryota não poderia negar isso. Apesar de doer seu orgulho, não havia o que ser feito a não ser aceitar o fato. Seria infantil de sua parte insistir no assunto, e a garota finalmente assentiu após um longo momento de silêncio.

— Tudo bem. E quanto à Kanami e ao Zero? O que tem a ver com a… Maga Veridian?

Sofia alargou o sorriso entretido com o tom de voz ríspido ao mencionar a curandeira, mas respondeu sem provocá-la a respeito:

— Assim como expliquei no passado, ela é a curandeira mais famosa de Urânia da atualidade. Mas, para além de sua peculiaridade em escolher residências, a Maga Veridian tem um talento nato e único que a torna especial.

— Um talento? E qual seria?

O rosto de Sofia suavizou.

— Por que não descobre por conta própria?

— … Você tá realmente me dizendo pra encontrar ela de novo e conversar? Por que você mesma não me conta?

— Alguns conhecimentos apenas podem ser compartilhados com o consentimento dos indivíduos envolvidos. E, nesse caso, receio não estar nesse direito.

Ryota quase fez beiço com os lábios para a resposta de Sofia, mas como ela não pareceu estar dizendo isso apenas para provocá-la, relaxou o rosto um pouco depois.

— Agora fiquei curiosa, mas tudo bem… — houve uma pausa, então continuou, um pouco mais devagar com a dúvida surgindo na voz — Ela pode realmente fazer tudo isso? 

— Sim. Ela é habilidosa o suficiente para reparar os danos causados à mente e também tem capacidade para curar o poder de uma Autoridade. 

— … Se ela pode fazer isso, então…

… Zero pode ser salvo a tempo. E Kanami pode voltar ao que era. E, também… A mãe de Fuyuki…

Havia tantos pontos sem nós envolvendo o nome de Gê que o estômago de Ryota embrulhou. O ressentimento ainda fervia em seu sangue, bem como a memória da prazerosa sensação de seus punhos se chocando com a face dela pouco após a morte de Albert.

Eram lembranças conturbadas e que por vezes fez sua memória ter lapsos, mas Ryota nunca se esqueceria delas por completo. Ainda mais difícil do que evocar a dor, era enfrentá-la.

E Ryota não sabia se conseguiria perdoar Gê pelo o que havia feito, muito menos reconsiderar suas ações.

Mas… Pelo bem deles… Preciso fazer isso.

Inspirando com dificuldade, Ryota assentiu com a cabeça para Sofia. A anfitriã balançou a cabeça de volta.

— Fico feliz que tenha tomado a decisão correta.

— E eu aqui pensando que você se divertia com minha agonia.

— Tanto quanto me entretém as emoções negativas, a resolução para com elas também me atrai. 

Diante da conclusão da Entidade, Ryota apenas suspirou. E, ao invés de gatilhar uma discussão sobre o tipo desgostante de divertimento de Sofia, indagou:

— É só isso? Não tem mais nada pra me dizer?

— A respeito das duas questões às quais me exigiu respostas, certamente não — ela pousou o ombro na mesa, apoiando o queixo nos dedos — Mas tem algo a mais que queira saber?

Ryota ponderou a pergunta da beldade por breves segundos antes de negar com a cabeça, serena:

— Não. Por enquanto, estou bem.

— Ora? Tem certeza?

A forma como Sofia arqueou a sobrancelha foi quase engraçada — ela realmente sabia fingir surpresa. 

Mas Ryota sorriu.

— Sim, tenho certeza.

— Posso saber o por quê? 

Sabia o que a Entidade desejava entender — afinal, a própria Ryota queria adquirir conhecimento, e dispunha de uma infinidade dele diante de seus olhos. Era uma armadilha em forma de mulher, mas uma bem atraente a qualquer ser humano. 

Sofia conhecia cada passo em falso e não dado por ela, bem como as possibilidades e infinidades de acessos. Mas o que atiçava seu interesse não era a decisão, mas o caminho para a tomada.

E com certeza a estagnação emocional de Ryota a intrigou. Não havia angústia, fúria ou desespero em seu olhar — apenas uma calma ponderação. Fagulhas de arrependimento e dor, sim, se mostravam por vezes em sua expressão, bem como a melancolia.

Mas, além disso…

— Foi como você disse antes. Alguns conhecimentos só podem ser adquiridos pelas pessoas em questão.

Lembrava-se de Amane e Scarlet dizerem algo semelhante. Haviam entregado o passo a passo, e tudo o que restava a ela era seguir cada um deles para aprender a aprender. E, apenas assim, ser capaz de conhecer e fazer a diferença.

— Quero saber mais sobre eles… E vou perguntar eu mesma.

Quando Ryota tentou se aproximar uma vez, eles a acolheram, mas o mundo a repeliu e apontou o dedo por sua fraqueza. Não foi capaz de corresponder aos sentimentos ou às palavras de afeto, muito menos de entender o que residia no coração deles.

Ainda que todos tentassem ajudá-la, jamais pôde estender a mão de volta — nem para receber, ou para oferecer.

Porém, agora seria diferente.

— Estou indo agora, Sofia.

Ryota se levantou da cadeira com uma educação palpável, mas a Sabedoria nada disse, nem mesmo quando a porta rearranjou logo atrás do assento da convidada que estava para se retirar.

Sofia apenas observou silenciosamente quando Ryota lhe deu as costas, girou a maçaneta e passou pelo portal branco, sem olhar para trás nem mesmo uma vez quando a porta para o Empíreo se fechou.



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