Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 11 – Arco 4

Capítulo 49: Delongando a Covardia

Ao despertar, o quarto ainda estava escuro. Ryota percebeu que abriu os olhos quando ainda mal passava da meia-noite ao desviar a atenção do teto acima de sua cabeça para quem dormia ao seu lado.

Ela se lembrava de Dio mencionar ter pesadelos recorrentes sobre algo, mas nunca soube sobre o que se tratavam. E não pretendia perguntar a menos que ele se dispusesse a contar. Agora que estavam cientes sobre as intenções e os sentimentos um pelo outro, ela lentamente começou a caminhar naquela estrada íngreme e instável para construir um laço mais forte com aqueles que estavam ao seu redor — e Dio era uma dessas pessoas.

Um sorriso leve brotou de seus lábios ao perceber o quão profundamente ele dormia ao seu lado. Os cabelos com cachos dourados eram perceptíveis mesmo na escuridão da noite, e os resmungos do filhote que se aconchegou discretamente entre eles criou uma cena adorável de observar.

O cansaço ainda pesava suas pálpebras, e sentiu que poderia voltar a dormir em poucos segundos se fechasse os olhos novamente. Mas, ao invés disso, Ryota se sentou ereta na cama e abriu a gaveta da mesa de cabeceira ao lado. Seus movimentos eram lentos e silenciosos para não despertar as outras duas figuras, e seu corpo cobriu ambos da luz pálida do abajur quando apertou o botão para iluminar o pequeno espaço.

E então colocou no colo o pequeno caderno de Zero.

As pontas dos dedos de Ryota acariciaram a superfície fria da capa antes de virá-la, abrindo a primeira página. Seus olhos se focaram nas palavras que leu pela primeira vez, e na dedicatória com seu nome escrito.

Eu estava com medo demais de saber a verdade… Me perdoe, Zero.

Apesar de ansiar por ela, era também seu maior pavor. Encontrar a origem de seus sentimentos era a resposta, mas também uma pergunta respondida que poderia ou não ser o resultado que esperou por tanto tempo. 

E se o que Zero escreveu naquilo que parecia ser um pequeno diário não fosse o que esperava ler? Se as respostas que queria não estivessem ali, o que faria, então?

… Vou aceitá-las. 

Ainda que doa ao ponto de fazê-la querer chorar, a verdade era necessária. Foi ela quem decidiu ouvi-la, e mesmo se a resposta não for aquela que suas expectativas criaram, seria apenas a consequência de saciar sua curiosidade.

Apesar do medo e daquela frágil parte de si implorar para manter aquela porta do coração de Zero fechada — Ryota queria saber.

Zero confiou em mim… O bastante para me dedicar seu coração. 

Incontáveis vezes, sacrificou-se por ela. Incontáveis vezes, estava lá por ela. Incontáveis vezes, a consolou e amou. E, ainda assim… 

Eu quero entendê-lo ainda mais. Eu quero corresponder ao Zero como ele merece.

Inspirou fundo uma vez, tracejando a dobra da página. E, por fim, a virou.

Assim como esperado, era um diário. Mas mais do que isso, era um diário ilustrado.

— Isso… Sou eu?

Ryota observou com um riso leve com os rabiscos de uma criança que mal aprendeu a usar um giz de cera. Mas, de alguma forma, Zero rascunhou o que parecia um boneco de palito usando vermelho e de olhos azuis vibrantes. Ela estava sentada em um gramado cheio de flores douradas, abaixo de um sol sorridente.

— Seu talento para desenhos é péssimo.

Ryota murmurou baixinho para si mesma, sorrindo como se estivesse falando com alguém que não estava ali. Sua expressão ameaçou mudar para melancólica, assim como sempre ficava quando lembrava do garoto de cabelos violeta, mas engoliu em seco para conter a dor familiar.

Ao menos, foi o que achou que faria.

Pois logo quando leu a primeira frase do diário, seu mundo desabou.

“Eu gosto da Ryota.”

Ela não sabia quando foi que aquelas palavras foram escritas, mas considerando o desgaste da caneta, deveriam ser antigas. Há muito tempo atrás — quiçá alguns anos.

As barreiras emocionais se quebraram com facilidade ao escorrer das lágrimas pelo rosto dela. Ryota conteve um soluço silencioso e pousou o rosto na mão, inspirando fundo devagar assim como Alex lhe ensinou.

A tentativa de conter o choro funcionou de forma gradual, e apesar da vista embaçada com as gotas manchando as páginas, Ryota não precisaria se preocupar em acordar Dio. Expirando o ar dos pulmões e fungando o nariz vermelho, Ryota olhou para as escritas do diário novamente, lendo o parágrafo seguinte.

“Não entendo como demorei tanto tempo para aceitar esses sentimentos. Foi humilhante e constrangedor, eu queria morrer de tanta vergonha. Como fui gostar da garota menos atraente possível?”

Ryota riu sozinha outra vez, com um sorriso leve e distante. Era perceptível a frustração no tom de escrita com o quão firme as letras foram desenhadas no papel.

— Eu sou assim tão ruim? Beterraba idiota.

Apesar da tentativa falha de Zero em encontrar qualidades, Ryota não se sentiu magoada por isso. Pelo contrário: Era um tanto quanto adorável. A fazia lembrar do comportamento de quando ainda eram crianças, e Zero sempre se mantinha o mais distante possível dela, como se fosse algum tipo de inseto grudento.

E, se fosse para compará-la, certamente ela foi aquele tipo de criança que não conhecia espaço pessoal. Sempre se agarrando aos outros, erguendo a voz e correndo pelos quatro cantos do vilarejo ao ponto de não haver uma única pessoa que não pudesse ouvir sua voz.

Eram tempos passados, memórias que uma vez foram coloridas e felizes. Mas agora, quando Ryota ganhava coragem para relembrá-las, um medo que fazia seus ossos gelarem a impedia de continuar a trabalhar nos acontecimentos daqueles dias.

Por vezes, esquecia-se dos rostos daquelas pessoas. Quais eram seus nomes, como eram suas vozes, que tipo de sorrisos davam a ela quando caminhava por Aurora todas as manhãs? 

Quanto mais se recusou a lembrar, mais esquecia-se delas. Mesmo os dias mais marcantes de sua vida não garantiam mais um sorriso nostálgico por mais que alguns segundos antes do terror do que viria no futuro a assombrar.

Se continuasse a pensar naqueles dias, inevitavelmente veria seu fim. Ao lembrar daquelas pessoas, era como uma tortura lenta saber que todos perderiam suas vidas nas mãos de pessoas tão cruéis. E, quando refletia sobre o que Jaisen e Zero disseram, além da omissão de Albert sobre a verdade do vilarejo, mais e mais ela se questionava o quão legítimos foram aqueles dias.

Era uma espiral de pensamentos dolorosos que ainda não tivera forças para encarar, continuando a fugir tapando os ouvidos e fechando os olhos. Se permanecer na ignorância a faria feliz, Ryota acataria aquela decisão covarde sem pensar duas vezes.

Foi o que pensou diversas vezes, e mesmo agora a decisão era uma tentação. Entretanto…

— Hmm…

Ryota ouviu um grunhido sonolento e sentiu um toque no braço quando o garoto ao lado tateou com os dedos finos no lençol, procurando por ela e até finalmente segurar no tecido de sua roupa de dormir. A expressão tensa de Dio suavizou um pouco, e ele pareceu dormir profundamente um pouco mais calmo ao perceber que não estava sozinho.

Observando-o, os questionamentos dolorosos cessaram e Ryota se viu fechando o diário de Zero com um suspiro. Foi uma leitura curta, mas o bastante para fazê-la perceber que ainda não se sentia pronta para fazê-la em uma única noite.

Ainda havia muito a ser descoberto, refletido e corrigido, e a garota se sentiu ao menos um pouco amparada daquela realidade solitária com a pequena mão do garoto agarrada ao braço. 

— … Obrigada.

Ryota sussurrou na escuridão da noite quando desligou a luz do abajur e guardou o diário na mesa de cabeceira outra vez, deitando ao lado de Dio e segurando os dedos dele nos seus. E, por fim, fechou os olhos para voltar a dormir.

***

Quando abriu os olhos com a luz do sol atravessando as cortinas cor-de-rosa transparentes, as íris esverdeadas estremeceram sob os cílios e Bellatrix se sentou no colchão.

Ela apenas reparou nas lágrimas que escorriam quando percebeu uma das gotas pingando no lençol da cama, e rapidamente levou os dedos para limpar o rosto, resmungando para si mesma.

— Mas o quê…? 

Bellatrix inspirou fundo quando uma sensação azeda acomodou-se de seu peito, a deixando com azia. Era um sentimento ao qual havia sentido antes diversas vezes, mas não esperou senti-lo novamente depois dos meses agradáveis no Instituto Gnosis.

— Eu estava sonhando de novo?

A garota olhou para o próprio quarto com um suspiro pesado ao segurar o tecido da blusa. O que residiu em seu coração não foi apenas a surpresa por acordar e perceber que nada foi real, mas também a impressão de que algo muito triste aconteceu. Um arrependimento e culpa a esmagaram ao ponto de fazê-la acordar chorando, mas apesar de não se recordar do que havia sonhado, estava certa de que envolviam pessoas importantes para ela.

— … Riri.

Saltando da cama para espantar as mágoas de algo que nunca aconteceu, Bellatrix correu do quarto para o banheiro da casa abrindo e fechando portas com velocidade. A movimentação chamou a atenção de uma mulher que estava na cozinha da casa, agitando uma frigideira com ovos.

— Bellaaaa? Você está bem, querida?

Após lavar o rosto com a água várias vezes, Bellatrix fechou a torneira e passou a toalha pela face molhada antes de gritar de volta:

— Estou, mãe!

— Então venha tomar seu café da manhã!

— Já vou!

Tranquilizada pela chamada, a garota tentou não fazer uma careta para o próprio reflexo no espelho do banheiro ao reparar na grande bagunça do próprio cabelo. Onde originalmente havia um penteado após longos minutos de dedicação, agora apenas um amontoado de fios emaranhados tais quais um ninho de passarinho. 

Bellatrix molhou os cabelos para evitar parecer um fantasma quando caminhou para a mesa da cozinha. Na distância, pôde sentir o doce cheiro dos biscoitos amanteigados que sua mãe fez e também o som da água borbulhando ao ser despejada sobre o café. 

— Minha nossa, achei que algo aconteceu com a barulheira que veio do seu quarto. Não me assuste assim, querida.

— Não exagera, mãe. Não aconteceu nada.

— Mesmo? Tente não se esforçar demais. Eu me preocupo com você.

Quem a recepcionou na cozinha foi uma mulher de face gentil e olhos caídos de preocupação. A semelhança entre mãe e filha era nítida a qualquer um que as visse, apesar da diferença da cor de cabelo tingido de Bellatrix.

Saiph colocou na mesa um prato e uma xícara quando viu a garota se sentar, então afastou os cabelos negros com um movimento delicado atrás dos próprios ombros. Quando não houve resposta por parte da filha, ela continuou:

— Eu sei que os dias das provas são sempre corridos pra você, e os estudos te tomam muito tempo. Mas… 

Bellatrix começou a beliscar um dos biscoitos e evitou fazer uma careta com o sabor esfarelado — como sempre, Saiph nunca conseguia acertar em cheio em nenhuma receita. Mas era algo a que estava acostumada, então apenas bebericou do próprio café enquanto ouvia a mãe hesitar em falar.

— Mas se tornar presidente do conselho estudantil foi uma decisão um pouco…

— Por favor, mãe. Não quero conversar sobre isso de novo. 

Como Saiph estava dando voltas para falar, Bellatrix a interrompeu de forma gentil. As duas trocaram olhares, e a ruiva tentou não se encolher diante da atenção rogada.

— … Eu entendo que não pode voltar atrás depois de tanto tempo, e não quero pedir isso de você. Mas acho que está indo longe demais.

— Com o quê?

Ao contrário do pai, a mãe de Bellatrix era uma mulher doce e que sempre escolhia cuidadosamente as próprias palavras. Talvez com a convivência ao lado do marido que sempre exigia ser ouvido e que perdia a paciência com facilidade, além dos acontecimentos na infância da filha, Saiph criou uma preocupação excessiva com a impressão que poderia causar na própria família ao dar a própria opinião.

Ainda assim, ela era mais aberta a tentar conversar pacificamente com Bella, apesar de sua hesitação contínua em machucá-la com uma crítica.

— Acha que não percebo quando desliga as luzes do quarto tão tarde da noite? Ou como revira suas revistas e livros na mesa?

Bellatrix desviou o olhar e apertou um pouco os lábios, tentando não engasgar com os goles no café. Mas Saiph insistiu, dando um passo para mais perto da cadeira onde a filha estava sentada.

— Bella, eu entendo que precisa se esforçar para atingir os requerimentos do instituto, e às vezes passar noites em claro estudando é necessário, mas fazer tudo isso por seu pai é-

— Não tô fazendo isso por ele.

Pela primeira vez, ela interrompeu a mãe com um pouco de rispidez, mas rapidamente se corrigiu ao falar, pousando a xícara no píres e se levantando da mesa ao terminar de comer.

— Eu estou fazendo isso por mim mesma.

Era verdade, mas era impossível para Saiph compreender completamente os sentimentos da filha quando ela se recusava a dizer de forma clara pelas próprias razões.

Após um momento de silêncio, Bellatrix murmurou no silêncio da cozinha.

— Eu vou me formar como presidente do conselho e como estudante de Gnosis com ou sem a sua aprovação, mãe. 

— Bella…

— Desculpa, mas eu…

A garganta dela se fechou, e Bellatrix hesitou em se explicar, assim como era em todas as vezes em que se pegava pensando em como deveria contar sobre seus sentimentos para uma mulher com coração tão frágil quanto vidro sem machucá-la.

— … Eu preciso ir agora.

Desistindo de relutar e abandonando a discussão no mesmo tom baixo e passivo, a garota colocou as louças sujas na pia da cozinha e retornou ao quarto ainda sem conseguir olhar para o rosto da mãe.

Suas próprias bochechas estavam vermelhas de vergonha com a covardia, mas não havia nada a ser feito. 

Eu não posso contar pra ela.

Enquanto colocava o uniforme do Instituto com os detalhes em dourado e trançava os fios na cabeça para fazer o penteado dread, a mente de Bellatrix continuou a repetir aquelas mesmas palavras.

Ela vai ficar chateada.

Seus olhos foram para o álbum de fotografias em cima da mesa, ao qual estava fechado. Mas, se o abrisse agora, ainda veria as marcas dos dedos ao qual tantas vezes virou aquelas páginas, forçando-se a lembrar de uma infância roubada.

E se ela ficar chateada, vai brigar com meu pai de novo.

Era uma bola de neve de acontecimentos previstos, pois no passado, quando tentou confiar em Saiph para desabafar, aquele foi o resultado.

E se eles brigarem, vão colocar a culpa em mim outra vez. E então…

Bellatrix respirou fundo e sacudiu a cabeça para os lados, tentando livrar-se dos pensamentos negativos. Não foi assim que aprendeu a encarar as próprias dores e dificuldades, mas sim respirando fundo e repetindo palavras de afirmação para convencer a própria mente de que estaria tudo bem.

Isso, sorria. Afaste esses pensamentos ruins agora. Assim como treinamos várias vezes… 

Com tanta facilidade quanto piscar os olhos, o mau humor de Bellatrix foi substituído por uma calmaria digna de uma atriz. 

— Estou saindo! Até mais tarde, mãe!

Apesar da conversa tensa pela manhã, Bellatrix sorriu em despedida para Saiph quando abriu a porta da frente e deslizou para fora com seus patins. E apesar do sorriso tenso da mãe ao retribuir as palavras e ver a filha partir, um pequeno pedaço de seu coração desejou que ela não se fosse.



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