Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 11 – Arco 4

Capítulo 41: Confidência

A respiração dela se regularizou um pouco quando ficaram à sós, e o regular silêncio dos corredores retornou. Ryota nunca conseguiria expressar adequadamente o quanto apreciava a observação afiada de Alex e Dio sobre suas emoções — sentira falta disso, desde o ocorrido com Zero, muito mais do que imaginou.

Era um alívio ser compreendida mesmo que lhe faltassem palavras.

O rosto passivo-agressivo de Alexandre raramente mudava, mas era algo com o qual ela havia gradualmente se acostumado. Era reconfortante receber um tratamento igual em seus melhores ou piores momentos, como uma forma de expressar que o prodígio jamais mudaria suas convicções ou comportamentos irrebatíveis para agradá-la.

Diferentemente de Bellatrix, que era como um mar caótico que a levava por suas ondas imprevisíveis, Alexandre era como uma rocha firme que nunca se dobrava diante de qualquer coisa. Era uma combinação perfeita, especialmente levando em consideração a serenidade de Dio que mantinha seus ânimos mais baixos do que poderia ser necessário.

— E então? Vai me contar qual o problema, ou vou ter que adivinhar?

Alex disparou a pergunta, fixando seu par de olhos azuis nos dela, e cruzou os braços. O uniforme escolar balançou um pouco com o movimento, mas apenas o bastante para indicar que havia firmado os pés no chão.

Esperando pelas pancadas verbais — pelo desabafo.

Outrora, havia se desfeito em lágrimas e arrependimentos nos braços dele, quando o peso das emoções, do medo e do arrependimento a sufocaram ao ponto de achar que morrer seria melhor. Entretanto, o prodígio a recebeu de peito aberto e aceitou seus lamentos, não demonstrando qualquer sinal de exaustão por ouvir suas dores.

Na verdade, aquilo apenas pareceu aproximá-los mais, e desde então Ryota passou a considerar Alex a pessoa mais próxima a ele em Urânia — desde Zero, Fuyuki e Sora, provavelmente.

Mas nenhum deles estava ali agora, e certamente não aceitariam a pessoa que se tornou depois de quase um ano remoendo aqueles machucados que nunca fecharam. Ela apenas cutucou cada um deles e espalhou o próprio sangue nos outros, colocando a culpa de se sujarem neles mesmos por se aproximarem. 

Foi um erro que jamais poderia reparar, e tamanho arrependimento nunca poderia ser colocado em palavras. Apesar de terem-na perdoado, Ryota nunca sentiu que foi o bastante. Queria fazer mais, expressar e recompensar mais. Entregar a si mesma se necessário para fazê-los felizes outra vez e limpar aquelas manchas do passado de seus corações.

Não queria perder nada novamente, e aquele medo a fazia lutar com todas as forças para proteger aqueles laços frágeis e novos que recém haviam nascido.

E por conhecer parcialmente aqueles temores, ou por visivelmente demonstrá-los em seus olhos azuis-mar, Alexandre era sempre o primeiro a lhe direcionar a palavra.

— O que foi? Tá com cara de quem comeu algo e não gostou.

— … Não é nada.

— Se não é nada, então por que ficou encarando a presidente como se ela fosse um fantasma? Tinha feijão no dente dela, ou algo assim? Eu não percebi.

A tentativa de fazer uma piada passou pela culatra, e Ryota não conseguiu ter forças para sorrir ou suavizar a expressão. Entretanto, foi o bastante para parte de seu temor diminuir parcialmente quando trocou olhares novamente com o prodígio.

Ele não parece diferente do normal. Bellatrix também parecia exatamente a mesma, e Dio também. Isso significa que o que aconteceu antes… Não vai se repetir agora?

O tempo discorrido entre a insanidade de Bellatrix no passado e o presente foi de alguns dias, então se eles ainda estavam agindo normalmente, deveria significar alguma coisa. 

Seria um tempo limite? Uma forma de me forçar a cumprir com a provação?

Ryota não conseguia concluir grandes coisas a partir de possibilidade e dicas pequenas, mas certamente poderia estar enganada. De toda forma, por enquanto, deveria continuar assimilando o máximo de informações possível para que encontrasse a saída daquele teste.

— Deve ser estranho perguntar isso agora, mas… Você acha que Bellatrix andou agindo estranho?

— Ela sempre é estranha, não entendi seu ponto.

— Não, quero dizer… Estranho como se estivesse fora de sua personalidade comum. 

Ela queria dizer “pegajosa” ou “desnecessariamente afetuosa”, mas eram todas características comuns da jovem ruiva, portanto era difícil colocar em palavras para que o amigo entendesse. Além disso, havia a grande questão mais importante: Alexandre não acreditaria em suas palavras caso mencionasse a provação.

Ele pode se relacionar com uma Entidade como Kakia, mas não significa que saiba quem ela é por trás dos panos.

Assim como outras pessoas da corte de Edward nunca deduziram por conta própria que Sofia era uma Entidade, era perfeitamente possível que Alexandre estivesse alheio ao fato também.

E mesmo que saiba, provavelmente não estaria sabendo dos detalhes da provação. Se soubesse, Sofia não teria permitido que ele se aproximasse de mim e apenas afastasse seus próprios guardiões.

Eram conclusões precipitadas, mas foram as que Ryota pôde retirar por enquanto. Assumir que nenhum dos presentes teria informações diretamente úteis e que as Entidades apenas os colocaram como peças para mexer com o emocional dela era a conclusão mais lógica.

— Até onde reparei, não vi nada de diferente.

— … Entendo.

Como Alex pareceu honesto em responder, Ryota nem mesmo pensou duas vezes em aceitar suas palavras. Ela levou a mão ao pescoço e coçou nervosamente a nuca, virando o rosto quando falou novamente em um tom baixo e inseguro:

— Sinto muito. Ando um pouco cansada, talvez esteja pensando demais.

Houve uma pequena pausa, e Ryota achou que Alex tinha ido embora por um momento, até que sua voz finalmente chegou aos ouvidos dela:

— O que te faz pensar que Bellatrix está agindo diferente?

— Bem… 

Ryota franziu a testa, ainda sem olhar para ele. Como poderia explicar sem parecer tão estranha quanto era algumas semanas atrás?

— Ela fez algo com você?

— Não… Quer dizer, não exatamente…

Foi inevitável recordar da dor aguda da lâmina perfurando suas entranhas e girando como um relógio, fazendo seu corpo se recolher. 

Isso não passou despercebido por Alexandre, é claro.

— Diga o que aconteceu.

Ryota percebeu que ele nem mesmo tentou esconder a seriedade na voz. Não sabia se era preocupação ou irritação, mas algo naquilo a incomodou.

Não queria que seus amigos entrassem em conflito entre si por acontecimentos de um passado que nunca existiu. Estaria sendo injusta.

— Não posso.

— Por quê?

— Você não vai acreditar em mim.

Apesar de não poder ver, ela quase sentiu os olhos do prodígio se estreitarem.

— O que te faz pensar isso?

Como poderia dizer a Alex que em uma outra realidade, Bellatrix a esfaqueou até a morte, e agora temia que algo semelhante acontecesse não apenas a si mesma, mas aos demais?

— Não presuma que não vou acreditar em você apenas porque acha alguma coisa.

— Eu não acho, tenho certeza.

— Com base em quê?

Seus lábios se apertaram, nervosos.

Com base no fato de que eu estive alucinando por mais de um mês e todos se afastaram de mim de forma natural. É esperado que o mesmo aconteça agora, mesmo que esteja lúcida, e provavelmente apenas me acusem de algo ao invés de acreditarem em mim.

Ryota não queria apostar tudo por uma presunção.

Ela se arrependeu de tentar contar à Alex. Deveria ter mantido para si, resolvido sozinha como decidiu antes.

— … Sabe o que mais detesto, Ryota?

Não houve resposta. Ela não quis olhar para a face de Alexandre, porque sabia que deveria haver irritação em sua expressão.

Sabia que eram sentimentos reais, e não apenas uma falsificação. Ele jamais mentiria por algo assim, expressava suas emoções, pensamentos e convicções com a voz alta o bastante para que o mundo pudesse ouvi-lo.

— Presunção.

— Eu não…

— Presumir que sabe algo apenas porque deduziu com seu próprio ponto de vista não te torna inteligente, mas sim egoísta. 

Havia uma afiação na voz de Alexandre que causou arrepios em Ryota. Por alguma razão, aquela discussão pareceu causar alguma reação nele.

— Se acredita, grite. Se quer, estenda a mão. Exponha seus pensamentos para que os outros te entendam e complementem ou o corrijam. Não deduza que sou tão ignorante ao ponto de desacreditar apenas porque não me conhece o bastante para isso.

Ryota sentiu que feriu o ego de Alexandre inconscientemente, e arrependimento pesou em seu peito. Não foi intencional, mas ainda ciente disso, e certamente ferido por algum gatilho causado, o prodígio ergueu a voz e afirmou com todas as palavras aquilo que se esperava dela.

— Se não me contar, nunca vou saber. E se não saber, como poderei te ajudar?

Ryota inspirou fundo para se acalmar. Ele estava certo. Ainda que fosse difícil, doesse e ferisse, era necessário. Nem sempre a compreensão de suas dores e segredos seria interpretada corretamente caso não fosse colocada em palavras.

Ela virou o rosto na direção do prodígio bem a tempo da mão delgada segurar seu antebraço, puxando-a para mais perto. Para baixo e apertando, quase a forçando a se abaixar. Foi um movimento quase brusco, mas diferentemente de Bellatrix, Alexandre não tinha tanta força nos músculos.

Mas era mais alto e certamente intimidador, o par de olhos azuis afiados encarando a uma distância de narizes parecia perfurar sua alma e vasculhar cada pequeno canto buscando a verdade.

— Diga-me.

Foi um sussurro áspero e a respiração tocou o rosto dela, mas Ryota não se moveu. Estava chocada demais para reagir, apavorada o suficiente para cada pedaço de seu ser congelar.

— Diga-me, agora.

As unhas dele se afundaram em sua pele, e dor irradiou. 

Ryota soube naquele momento que Alex pretendia machucá-la.

Mas nada além de desespero despertou em seu corpo. Não houve sinais de rejeição, alerta de perigo ou sobrevivência. 

A mente gritava para afastá-lo, arrancar a mão que puxava e afastar o corpo que se erguia sobre ela como uma muralha intimidadora. 

Mas o coração frágil não conseguia. Apesar do horror de se imaginar perdendo a vida novamente, a dor seria ainda mais irreparável caso ela mesma retrucasse. Se seu chi despertasse uma fagulha de poder, queimaria as roupas e a pele daquela pessoa.

Quem abraçou, acolheu e sorriu para ela.

Ryota não queria ser machucada, muito menos machucar pessoas queridas.

A indecisão gerou pavor, e a dor física e fantasma grande tristeza. 

A fúria nas íris azuladas ficou mais forte, e foi exatamente quando algo quis emergir de dentro dele que sangue espirrou. Foi brusco, rápido e fez um som de surpresa escapar da garganta de Ryota, que até então esteve presa com as lágrimas que emergiram de seus olhos.

Ela se encolheu e caiu de bunda no chão, erguendo os braços acima da cabeça para se proteger instintivamente. Mas nada veio além de um grande barulho oco de algo caindo ao seu lado, e o forte cheiro de sangue fresco.

Sentiu náuseas de imediato, mas dor alguma chegou ao corpo. Nem lâmina, nem golpes ou mordidas. Nada além do som estranho e do ar trêmulo que restou no ambiente. Depois do que pareceu uma eternidade esperando, Ryota abriu os olhos que fechou no susto e ousou olhar.

E se arrependeu tão rápido quanto ficou enojada.

Havia sangue respingado por seu rosto, mãos e roupas. Bem como uma grande poça do corpo caído a menos de um metro ao seu lado, a mão que a segurava até pouco tempo atrás ainda estendida em sua direção. Mas a cabeça, pescoço e ombros…

Um grito baixo de choque veio de sua garganta, mesclando enjôo com o cheiro, aversão com a vista e dor com à assimilação.

Alexandre estava morto ao lado dela com um grande rasgo do ombro à cabeça, que desapareceu em algum lugar distante com a velocidade e a brutalidade do movimento que o arrancou. O corpo, sem vida, caiu bruscamente ao lado, manchando o chão com o líquido ainda quente da vida esvaída em um mero piscar de olhos.

E entre eles, havia apenas um menino de cabelos e olhos áureos acompanhado de uma grande fera semelhante à uma quimera com quase o triplo de seu tamanho.

***

Não demandou mais do que cinco minutos para que o discrepante alerta percorrendo seu corpo se tornasse real. Mas quando ocorreu, ele estava preparado.

Dio não precisou de muito para se afastar das mãos firmes da garota que, pouco tempo após se afastar dos outros dois, segurou seu pescoço e o empurrou contra a parede do corredor. Os dedos delicados ganharam uma força impressionante quando arrancaram seu fôlego, mas apesar da iminente inconsciência se aproximando, não houve qualquer expressão no rosto do menino.

As palavras de Bellatrix jamais chegariam aos ouvidos dele, e pouco importava uma realidade onde emoções explodiram e pessoas o matavam. Estava cansado daquilo, e não se incomodou em prestar atenção embora os termos “minha” e “não podem roubá-la de mim” se repetissem com tanta constância que ficaram presos na mente.

Demandou menos de dez segundos para que os passos da criatura no corredor ganhassem velocidade, alcançasse a dupla em conflito e a mandíbula com dentes afiados se ficasse no pescoço de pele escura. 

Carne foi dilacerada, e as veias que ligavam ao coração foram destruídas. Até o corpo de Bellatrix cair no chão, ainda se contorcendo um pouco, a vida dela começou a se esvair. Dio pousou os pés pequenos no chão e com neutralidade analisou as íris cheias de lágrimas e sem brilho de vida, suspirando.

— Então, é sobre isso…

O murmúrio solitário não chegou aos ouvidos de mais ninguém, e sua palma acariciou a cabeça do pequeno filhote que escalou suas costas para deitar no ombro. O pêlo dele ainda estava manchado de sangue, mas a adorável criatura não fez nada além de se aconchegar no dono com um som de satisfação ao receber carinho.

— Bom trabalho, Lion. Agora, vejamos ao que isto vai nos levar dessa vez.

O menino de onze anos caminhou pacificamente pelos corredores vazios do prédio até onde a dupla de amigos antes permaneceu. E imediatamente ao se aproximar e perceber o que se desenrolava diante de seus olhos, o calor da cólera corroeu sua garganta.

E, em um piscar de olhos, tão pacificamente quanto possível, Dio se aproximou e permitiu ao filhote saltar de seu ombro, transmutando em uma criatura grande como um leão e silenciosa como um gato. O rabo peludo varreu os ombros do estudante prodígio e fez seu corpo voar como uma pena, espalhando sangue pelos quatro cantos do ambiente.

Por fim, após os longos segundos de horror que se desenrolaram, a face da garota de cabelos negros finalmente se virou na direção dele — menino e monstro parados lado a lado, uma visão que parecia retirada dos piores pesadelos de alguém pela expressão que surgiu no rosto de Ryota.

Os lábios dela se abriram, tremendo demais para que a voz saísse, mas não foi necessário qualquer som para que ele soubesse as emoções mescladas dentro dela. Horror, confusão, choque, dor, tristeza, arrependimento… Medo.

Ela estava encolhida no chão como um animal indefeso diante de um predador, os olhares de ambos se trocando com uma firmeza claras. Dio não emitiu qualquer palavra ou expressou uma única reação diante daquele comportamento, apenas a observando de cima.

— Então, esse foi o fim? Estava longe das minhas previsões.

O murmúrio vindo dos lábios infantis eram quase entediados, mas Dio não se importou como aquilo poderia soar aos ouvidos daquela apavorada aos seus pés. 

Era uma inexpressividade conflitante com o cenário sanguinário ao seu redor, mas nenhum tipo de cadáver grotesco seria o bastante para lhe arrancar uma reação. 

Após olhar para o corpo de Alexandre uma vez, o menino áureo deu dois passos na direção de Ryota, que ainda estava paralisada no lugar.

— Que desperdício de tempo. Você devia tê-lo usado melhor. 

— … O quê?

— Parece que é inútil conversar agora no estado em que está. Vamos finalizar isso antes que a situação piore.

Como a compreensão atrasada de Ryota não a permitiu refletir sobre as palavras dele, Dio chegou à uma conclusão sozinho e parou diante dela. Apesar da baixa estatura, a dimensão de conhecimento, experiência e poder parecia ter anos luz de diferença.

— Lembre-se do que viu e ouviu aqui, e carregue isso até o próximo experimento. Quando encontrar a origem, não hesite em finalizá-la corretamente.

— … O que… O que é você… 

Um esboço de sorriso desenhou-se na face do menino. Melancólico, distante, e velho.

— Eu sou quem sou. Mas, pra você, gostaria que fosse um pouco mais do que posso oferecer agora.

O tom macio e quase afetuoso direcionado para Ryota deixou-a ainda mais sem palavras. Ela nem mesmo sentiu quando a escuridão partiu sua visão, e a vida se esvaiu ao ricochetear que partiu seu pescoço.



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