Volume 11 – Arco 4
Capítulo 40: Disforia
Os passos dela nas ruas eram apressados e um pouco desajeitados, mas firmes o bastante para manter-se de pé enquanto atravessava cada viela em seu caminho. Ao sair do anfiteatro, a mente de Ryota clareou um pouco com a sensação da luz do sol banhando seu corpo e a brisa fresca do verão balançando seus cabelos longos conforme a tarde discorria.
Haviam três coisas que estavam passando em seus pensamentos agora: A primeira delas era a respeito da provação. Ainda não fora capaz de descobrir com exatidão o intuito ou o caminho que deveria traçar para poder superá-la dado que agora não estava em um espaço fechado como o anfiteatro ou um local imaginário como nas primeiras provações. Ryota era livre para caminhar pela cidade e pelas casas, então não parecia que tinha qualquer limitação física neste sentido. Ainda assim, isso não lhe dizia nada sobre o objetivo daquela provação.
A segunda era o tempo. A princípio, conforme divagava sobre as possíveis razões pela qual poderia ter retornado ao anfiteatro, ela imediatamente percebeu que não apenas havia sido mandada diretamente para outro local, mas para outro período do tempo. Mais especificamente, para alguns dias no passado, antes de ir até a casa de Bellatrix. O que se passou como primeira possibilidade foi de estar em um sonho lúcido, mas ela rapidamente a descartou quando se lembrou daquilo que Sofia uma vez chamou de In Reverie.
Há muito tempo, Ryota experimentou eventos estranhos ao seu redor que enganavam seus cinco sentidos de formas inexplicáveis. A primeira vez foi ainda em Hera, quando presenciou a cena onde Dio foi cortado em pequenos pedaços por fios que rasgaram paredes e ruas com um único movimento. Mais tarde, cenas semelhantes ocorreram, mas em todas as vezes quando buscou respostas sobre as visões, o garoto lhe garantiu não saber do que se tratava, como se não tivesse memórias dos eventos assim como ela.
Obviamente, Dio ainda era um grande mistério para Ryota, mas desde que o rapaz nunca lhe ofereceu qualquer ameaça, gradativamente ela gerou confiança o bastante para poderem compartilhar alguns momentos juntos. Em geral, Dio era apenas uma criança com uma sabedoria surpreendente para sua idade, mas que ainda era capaz de lhe trazer surpresa nos momentos mais inesperados.
De toda forma, o In Reverie ainda era uma peça-chave desconhecida e tão enigmática quanto Dio, mas Ryota havia parado de pensar sobre ele quando seus dias discorreram normalmente. Mas agora as coisas eram diferentes, e as circunstâncias também. Afinal, o tempo não apenas havia retrocedido em alguns dias, como ao invés de presenciar a morte de outras pessoas, quem perdeu a vida não apenas uma, mas duas vezes, fora ela mesma.
Isso apenas deveria comprovar que o In Reverie estava ocorrendo novamente… Ou era o que pensava, mas poderia ser apenas mais uma brincadeira de mau gosto de Sofia e das outras Entidades. Ainda que Ryota desconhecesse as habilidades das outras mulheres cujas auras se assemelhavam, era natural que desconfiasse que a origem daqueles estranhos eventos viessem de alguma delas, e talvez a chave para ultrapassar aquela provação não fosse o In Reverie, mas sim o poder de uma das Entidades.
Era sobre isso o que aquelas palavras queriam dizer? “Encontre a Origem”... É para encontrar a origem dos retornos? Ou seria algo diferente?
Ainda eram todas especulações, então não poderia ter certeza até conseguir mais informações. E isso a levava para o terceiro e último tópico importante: As pessoas da provação.
Ryota desconfiava que as circunstâncias daquela provação fossem diferentes das demais, começando não apenas pelo ambiente, mas pelo tempo de resolução muito maior e também pela presença de elementos que antes nunca puderam ser proporcionados a ela. Na verdade, houve algumas vezes onde as provações permitiram que a realidade se mesclasse com a fantasia, mas a dificuldade para diferenciar ambas as partes apenas eram complicadas porque, na época, a mente de Ryota estava transtornada.
Agora as coisas eram diferentes. Ela estava bastante ciente de seus arredores e era capaz de pensar logicamente, portanto tornava-se mais claro perceber que os devaneios nunca passaram de nada além de fantasmas e sombras rodopiando ao seu redor como corvos buscando a carniça de sua alma. Em suma, as ilusões se alimentavam de suas emoções, dores e traumas — portanto, quanto mais fortes elas fossem, mais reais ficavam. E considerando que sua mente estava frágil como vidro durante os últimos meses, era visível o quão manipulável veio a se tornar.
Isso apenas comprovou sua percepção de que manter-se escondida na própria mente não traria nada além de ainda mais complicações — e, claro, ainda mais mágoa e dor para seus amigos. Ryota queria compensar por seus erros, e não estava nem um pouco contente que Sofia, ou quem quer que estivesse cuidando daquela provação, se aproveitasse dessa determinação para zombar e brincar com seus sentimentos outra vez.
Na verdade, não eram suas próprias emoções, mas também daqueles que foram tão bons com ela — não perdoaria ou encontraria justificativas por isso, não mais.
Sua determinação permitiu que seus passos deslizassem rapidamente na direção de seu destino, sua vista se erguendo na direção da grande construção que surgiu através dos pequenos prédios e casas além das ruas de Celestia.
Ryota adentrou pelos portões do Instituto Gnosis sem prestar atenção em seus arredores, inteiramente focada no caminho para dentro do campus. Ainda que as horas andassem em uma velocidade impressionante, especialmente após permanecer um bom tempo refletindo em silêncio no anfiteatro sobre todos os recentes acontecimentos, surpresa estampou seu rosto ao perceber outra anomalia.
Ou melhor, a ausência dela. Afinal, tal qual as pessoas que cruzou em seu caminho, os cenários em que seus olhos pousaram, os sons que seus ouvidos captaram e os cheiros que seu olfato distinguiu, nada havia mudado. Era como uma tarde qualquer na capital de Urânia, onde apenas alguns estudantes seletos de Gnosis permaneceram dentro do prédio por razões particulares — em geral, para o aprimoramento do estudo de seus respectivos cursos.
Há apenas uma forma de confirmar que nada mudou.
Apesar de Ryota estar certa de que sua mente estava fortificada o bastante para distinguir realidade de ilusão, seus sentidos ainda poderiam ser enganados. Para que colocasse isso à prova definitivamente, ela traçou a primeira constatação a se fazer.
A marcha constante de seus pés a levou diretamente para o exterior do campus, um local conhecido e que não muito raramente se encontrava visitando. Mas antes mesmo de chegar até o objetivo, a garota eventualmente interrompeu a caminhada quando a vista, ainda à distância, foi capaz de distinguir a silhueta do banco debaixo das sombras.
E a ausência de uma pessoa dormindo.
Franzindo a testa, ela deu meia volta e direcionou seu corpo para atravessar os corredores do prédio. Passo a passo, os olhos deslizavam entre os rostos dos estudantes, as vozes audíveis, os sons distantes de passos, a ausência de pessoas na classe com o fim do período letivo — e a constante sensação de banalidade.
Eu sabia que nem Scarlet ou Amane estavam em Gnosis, mas Sasaki também?
Ryota se recordava de ter direcionado palavras de honestidade ao homem que dormia no banco, mas não recebeu uma resposta. Ainda assim, ele estivera lá, naquele mesmo dia e horário, como sempre. A rotina não devia ter se alterado, mas ainda assim, ela testemunhou o oposto de suas expectativas.
Então, eu estava errada? Não se trata de um retorno idêntico, mas sim com alterações? Isso significa que os acontecimentos de antes não vão se repetir aqui?
Ainda que suas ações diferenciassem um pouco da versão anterior, teoricamente, os acontecimentos não mudariam. Ao menos, não aqueles que não estavam diretamente ligados a ela. Mas poderia ser possível que algo como um efeito borboleta tão grande existisse, ao ponto de pessoas que antes estavam em determinado lugar desaparecerem? Ou, talvez, fosse apenas mais uma pegadinha das Entidades.
Eu preciso descobrir a chave por trás dessa provação e superá-la.
Diferentemente das versões anteriores, não havia nada como um guia ou uma dica alta e clara para que seguisse. Era como se Sofia estivesse dizendo nas entrelinhas para sair do tutorial e caminhar para o modo difícil, brincando na corda bamba do destino traçado por ela. O grande problema era que, daquela vez, sua vida — e a de várias outras — estava em jogo.
Diversas preocupações passavam em sua mente, mas antes de poder definir quais eram relevantes ou não, primeiro precisaria descobrir qual era seu grande objetivo para a provação.
Se nenhum dos guardiões está aqui, provavelmente nem a própria Sofia deve estar em Urânia.
Independentemente das razões, era um fato que Ryota não poderia contar com o auxílio de nenhum deles. Se a Entidade moveu as peças para evitar que recebesse conselhos, foi uma jogada inteligente dado que eram as únicas pessoas cujas memórias e conhecimento não se alterariam — provavelmente.
Caso contrário, ela nem precisaria retirá-los de perto de mim. Isso apenas prova que Sasaki e as outras sabem de mais do que aparentam.
Pensaria nas conclusões daquilo depois. Por enquanto, a conclusão foi o bastante para fazê-la compreender um pouco mais das circunstâncias em que foi colocada. Dito isso, o segundo pensamento de Ryota foi bastante direto e óbvio.
Eu não posso contar com a ajuda de ninguém. Por bem ou por mal, envolver Bellatrix, Alex ou Dio apenas vai trazer ainda mais conflitos do que o necessário.
E Ryota poderia apostar que era justamente o que as Entidades desejavam — envolvê-la ainda mais emocionalmente, puxando os poucos e frágeis laços que firmou naqueles últimos meses ao ponto de rasgar e se desfazer, machucando seu coração e alma outra vez para arrastá-la ao abismo do desespero.
Não podia negar que era um pensamento assustador — eram cinco seres acima da compreensão contra uma garota de mente instável e dedos pequenos demais para carregar mais esperanças. Se apenas um pequeno escorregão pudesse levá-la para aquelas sombras… Apenas o pensamento fazia seu sangue gelar.
Não queria perder nada do que conquistou, e certamente não desejava que os outros passassem pelo mesmo. Queria protegê-los, queria manter aqueles dias felizes, aquela pequena esperança, aquele pequeno núcleo de calor que a fazia levantar para ver as cores do mundo todos os dias, intacto.
— Ah! Então você tava aí, Riri?
Mas Ryota nunca imaginou que as mesmas pessoas que queria poder proteger poderiam causar um arrepio de desconforto tão profundo ao mero som de suas vozes.
***
O garoto de olhos e cabelos áureos, acompanhado de outros dois jovens, se aproximaram daquela que interrompeu os passos ao som da voz aguda chamando-a pelo apelido carinhoso. Mas Dio imediatamente percebeu que Ryota não apenas parou porque seus amigos se aproximavam dela a passos casuais pelo corredor — e sim porque seus músculos enrijeceram tanto que ela não pôde reagir.
A confirmação de suas suspeitas veio quando Ryota virou lentamente a cabeça para trás, e as íris azuis escuras estremeceram.
Com um brilho de medo.
Os sentidos do garoto ficaram alertas quase de imediato, mas ele não demonstrou grande mudança em sua expressão quando se aproximaram uns dos outros. A altura de Dio mal chegava a ultrapassar a cintura de Ryota, mas mesmo daquela distância de pouco menos de dois metros, foi capaz de perceber a palidez de seu rosto.
De certo, havia algo de errado. Mas ainda não sabia dizer o quê. E dado suas poucas experiências, sua melhor alternativa era optar por não desatar do andamento da conversa, permanecendo em silêncio por tanto tempo quanto possível e apenas observar.
— O que foi, Riri? Você tá tão quietinha…
— Deixa de ser crica, garota. Se ela não quer falar, cê não pode chegar metendo o bico onde não foi chamada.
— Mas… Mas…
— … Não se preocupem, estou bem. Apenas um pouco cansada.
Apesar da interação usual de preocupação entre Bellatrix, que observou o comportamento insípido da amiga, Alex imediatamente interveio para que nenhum limite emocional ou físico pudesse ser ultrapassado. O papel dele como mediador era quase perfeito, caso sua personalidade destoante não chamasse a atenção demais em grande parte do tempo.
Entretanto, era o suficiente para manter Ryota na distância em que desejava para sentir-se confortável, ainda que a jovem de cabelos cor de cenoura demorasse para compreender aquele tipo de coisa.
Quando Ryota comentou com a voz distante a respeito de seus sentimentos, os outros dois enrijeceram levemente o corpo, percebendo a alteração quase de imediato. Em geral, ela nunca demonstrava grande interesse em contato físico ou conversas longas, mas ao menos olhava na direção deles e tentava expressar pequenos sibilos de sorrisos.
Mas, agora, as íris azuis mal paravam no rosto deles antes de se desviarem em uma velocidade impressionante. Eram ações conflitantes entre as emoções e os instintos de preservação e segurança agindo, e apesar de doer ver uma amiga próxima encará-los com certo amargor, sempre compreendiam suas próprias limitações.
Por bem ou por mal, Dio sabia que Alexandre e Bellatrix eram boas pessoas, e nunca fariam mal à Ryota por vontade própria.
Ainda assim, o menino ainda podia sentir seus instintos meneando o senso de alerta e certo perigo naquela região, apesar de não saber distinguir que tipo ou a origem disso. Mas se Ryota estava incomodada ou até mesmo assustada com alguma coisa, algo era necessário ser feito.
Talvez Alexandre tivesse chegado à mesma conclusão, pois sua face levemente pensativa se abriu como uma flor desabrochando quando um sorriso carismático apareceu em seus lábios rosados.
— Ei, pirralho. Você não tinha comentado antes que precisava contar um negócio pra presidente?
— … Ah. Sim, é verdade.
— O quê? Contar o quê? Fofoca? Por que vocês sabem antes de mim?
Com uma desculpa e mentira impressionantes, mas não menos dignas de um prodígio da arte geral como ele, Alex chamou a atenção de Bellatrix com algumas simples palavras. Colocando nos ombros de Dio a responsabilidade, o menino trocou olhares com o prodígio e o significado por trás de suas ações foram passadas em meros segundos.
De alguma forma, Bellatrix mais uma vez era a origem das inseguranças de Ryota. Por qualquer que fosse a razão, aquele comportamento distante vinha diretamente da presença da garota de ânimos extasiados, e perceber isso fez Alex criar uma oportunidade para afastar as duas.
Para que ele e Ryota pudessem conversar.
Dio hesitou por uma parcela de instantes até que finalmente olhasse para o rosto chocado de Bellatrix, que fechou as mãos em punhos com frustração no rosto quando o menino não respondeu suas perguntas.
— Digamos que sim.
— O QUÊÊÊÊ?! De quem é a fofoca? Me diz, me diz! Vocês dois são tão malvados, sempre escondem as coisas de mim!
— Vamos, se acalme. Eu vou lhe dizer tudo, mas que tal conversarmos em um lugar menos chamativo? Não quero que ninguém mais ouça.
Não foi necessário mais do que isso para que a mão surpreendentemente forte de Bellatrix segurasse a de Dio, puxando-o a passos velozes pelo corredor. Eles praticamente correram para longe e desapareceram do outro lado, nada mais do que meras silhuetas na distância.
E enquanto era segurado por aquela garota com aroma de lavanda, Dio orou mentalmente para que a conversa entre Ryota e Alex os levasse para um bom final.