Volume 11 – Arco 4
Capítulo 39: O Segundo Retorno
Conforme a visão de Ryota ganhou foco novamente, os olhos semicerrados dela se mantiveram fixos na origem do foco de luz branco que banhava seu corpo. Com as pálpebras e cílios tremeluzentes, um grande esforço foi necessário para que o formigamento que preenchia seus braços, pernas e torso passassem. O corpo dela não foi capaz de mover-se um único centímetro, e a mente ainda nublada das intensas dores e sensações marcadas nas memórias continuou a impedir que qualquer racionalidade pudesse ser atribuída às suas ações.
O chão de madeira do anfiteatro ainda estava frio, mesmo com os longos minutos em que Ryota permaneceu deitada olhando para o teto. A vista gradualmente se acostumou com a luz e agora era como se estivesse em um grande mar de vazio, o silêncio quebrado apenas pelo som ínfimo de sua lenta e quebrada respiração.
Aparentemente, sob circunstâncias desconhecidas, Ryota perdeu a vida duas vezes.
O conceito de morte ainda era o mesmo para todos os tipos de vidas naquele mundo, independentemente da existência de curandeiros ou de habilidades medicinais raríssimas existirem. Uma vez que a vida era perdida, não poderia ser recuperada; era um fato. Jamais houve qualquer circunstância, mesmo dentre as centenas de milhares de milagres concedidos pelos poderes dos curandeiros, a maior patente medicinal moderna, onde alguém retornou à vida.
Muito menos em um ponto do tempo anterior à morte. Como se uma espécie de barreira temporal se abrisse, permitindo que a vida perdida pudesse ganhar a oportunidade de manter-se existindo por mais um pequeno ou extenso período, ainda que fosse um pensamento impossível.
Humanamente impossível, ao menos.
Mas não para Entidades, cujos poderes estavam muito além do que qualquer coisa que simples mãos mortais poderiam alcançar, ainda que dedicassem todos os seus anos de vida para aquele propósito. E talvez fosse por ter conhecimento e uma certa proximidade com aquela classe de seres vivos que Ryota ainda não havia desferido golpes repetidamente contra a própria cabeça na parede, tudo para buscar uma resposta e uma serenidade para o coração e mente quase quebrados com as novas experiências.
A experiência da morte, simples, direta e dolorosa. Até aquele dia, a garota nunca parou para considerar como era a sensação ou o quão aterrorizante poderia ser, especialmente porque os machucados do corpo jamais poderiam se comparar com as feridas do coração. As pontadas como agulhas no peito traçaram cicatrizes na alma que nunca desapareceriam, ainda que não pudessem ser vistas a olho nu.
Ryota não tinha medo da morte, mas da sensação da perda. A dor era passageira, a ausência eterna e a solidão infinitamente mais assustadora.
Ao menos era assim que pensava até o atual momento, apenas um pouco depois de ter experimentado dois tipos de morte diferentes. A primeira onde foi surpreendida, silenciosamente abatida com uma punhalada no estômago que perfurou os órgãos, tal qual o bote de uma serpente que aguardava seu tempo para atacar. A consciência desapareceu segundos mais tarde, o choque causando um imediato impedimento ao cérebro de compreender o ocorrido ou de se lembrar completamente até que abriu os olhos novamente.
A segunda desenrolou-se apenas poucos minutos depois da primeira, mas apesar da dor passar rapidamente quando seu corpo afundou no chão, a agonia de sua partida ser acompanhada por aplausos levou-a ao vazio. E, eventualmente, ao desespero. O sangue que pulsava se acumulou em explodiu em uma longa poça de sangue, escorrendo pelo chão de madeira conforme as cortinas se fecharam, como se o primeiro ato de uma grande peça se encerrasse ao som do aval do público.
… Apesar disso, eu não consigo pensar em nada.
No começo, quando despertou no anfiteatro e compreendeu que tudo não passava de mais um dos jogos das Entidades, Ryota entrou em fúria. Ela despejou as emoções no ar contra o anfiteatro vazio, mas que ainda sabia e sentia estar sendo usado — tendo suas suspeitas comprovadas apenas alguns segundos depois. Ainda assim, a decisão de tomar sua vida por uma ação como aquela foi, no mínimo, brutal.
… O que eu estava esperando, afinal?
Ryota foi feita de idiota mais uma vez. Ainda que parte dela quisesse acreditar que ao menos uma das Entidades estivesse agindo justamente, suas esperanças foram pisoteadas no exato ponto em que Sofia permitiu que a provação desse início antes do tempo combinado. E a garota até poderia ser um pouco mais tola em aceitar algumas desculpas esfarrapadas para justificar aquele acontecimento, mas o que jamais poderia perdoar foi a decisão de envolver outras pessoas.
Inocentes que sequer deveriam saber suas verdadeiras identidades, mas ainda assim foram movimentadas como peças de xadrez, guiando Ryota como iscas para brincar com seus sentimentos.
Ela poderia ter ignorado se fosse apenas ela quem fosse ridicularizada — estava começando a se acostumar com o humor e as palavras afiadas como lâminas das mulheres que se reuniam no Empíreo. Mas uma vez que colocaram Bellatrix como um dos elementos da provação, manipulando suas palavras, emoções e expressões para que parecessem reais o bastante a fim de tirar algumas risadas… Foi mais do que o bastante.
Ryota queria acreditar que o que ouviu e fez foi real, e não apenas outra mentira para acomodar seus medos e anseios. Queria ser capaz de segurar a mão de pessoas gentis e importantes para ela sem ter medo de um dia precisar soltar. Seu anseio pelo toque humano, mas o pavor do efeito que causariam em seu corpo era o que mais a assombrou durante aqueles dias — mas ainda assim Bellatrix lhe estendeu a mão para ajudar.
Ela, uma simples jovem com grandes aspirações e um coração alegre, que estava aprendendo a conter as próprias impulsividades e costumes pelo bem da amiga. Uma pessoa que a perdoou sem hesitar por sequer um instante, derramando lágrimas de arrependimento e alívio quando finalmente puderam conversar. Uma garota de personalidade e coragem admiráveis, que sempre alegrava o ambiente em que estava — Bellatrix não era uma boneca ou uma marionete para ser manipulada contra ela.
Mas ainda assim… Ainda assim…
Os olhos azuis de Ryota lacrimejaram e uma ardência queimou suas retinas quando fechou as pálpebras, respirando fundo no silêncio do anfiteatro. Conforme as pontadas no peito continuavam e um aperto surgiu em sua garganta, alguns longos segundos foram necessários para que pudesse recuperar a calma.
… Vai ficar tudo bem. Agora que sei que estou dentro da provação, não preciso mais temer.
Ryota buscou raciocinar com um pouco mais de positividade enquanto mantinha os olhos fechados, cobrindo a luz branca que banhava seu rosto com o próprio braço, procurando conforto na escuridão para colocar os pensamentos em ordem.
Se estou em uma provação, nada é real… Não é real e não pode me afetar.
Se estivesse levando em consideração todas suas antigas experiências, as indicações para que pudesse superar a provação eram simples: encontrar a forma de ultrapassá-la e encontrar a porta para o Empíreo. Em geral, a provação a guiava através de suas memórias, traumas ou medos do passado, usando-as para acertar Ryota de alguma forma. E apesar de doer, ela estava determinada a não permitir que cedesse tão facilmente dessa vez.
Eu vou voltar para a realidade, custe o que custar… E enquanto isso, apenas preciso ignorar tudo o que este lugar estiver tentando me apresentar.
A última provação apresentou à ela diversas ilusões, sensações e visões que ninguém era capaz de enxergar além dela. Conforme suas emoções foram levadas ao auge e explodiram, Ryota encontrou uma forma de ultrapassar a provação. O grande problema era que tanto durante a apresentação de dança quanto agora enquanto estava no palco do anfiteatro, a sensação de estar vivendo era real demais.
Em comparação com a primeira provação ou com a prova de entrada para o instituto Gnosis, seus arredores sempre eram detalhados e os rostos das pessoas vívidos e expressivos. Não havia nada que pudesse indicar que estivesse sonhando, e certamente teria despertado devido à quantidade de dor e agonia que estava vivenciando dentro daquela realidade. Ao menos, em geral, pesadelos costumavam permitir às pessoas acordarem logo quando chegavam ao clímax de suas emoções ou quando percebiam que não estavam despertas.
Este não é um sonho lúcido, então deve ser uma ilusão… Uma perfeita o bastante para parecer real.
Mas um pedaço de Ryota ainda desejava que aquilo fosse real — assim, ao menos, as palavras e as emoções de Bellatrix não teriam sido inventadas, uma gentileza fria com um propósito unicamente cruel.
… Mas se isso fosse real, então ela realmente… Quis tomar a minha vida?
Quanto mais pensava, mais a mente entrava em colapso com perguntas sem resposta — e a perturbava saber que apenas Sofia poderia afirmar o que era verdadeiro ou falso. E apesar de Ryota não se sentir nem um pouco confortável em confiar naquela mulher outra vez, a pequena fagulha de esperança dentro dela não queria desaparecer.
Eu quero que seja real.
Ainda que as memórias daquele dia fossem dolorosas, amargas e sangrentas, queria que fosse real. Tudo o que presenciou, sentiu, ouviu e viu naquelas horas com Bellatrix… Queria que fossem verdadeiras e essenciais. Mais do que tudo, acima de qualquer manipulação, traição ou ressentimento…
… Por favor… Por favor, me permita amar e ser amada de novo…
Dentro de sua mente, havia apenas aquele clamor silencioso de uma garota que uma vez perdeu e desperdiçou tudo, mas ainda desejava manter as migalhas do que restou.
E foi assim que Ryota, após quase uma hora deitada na superfície fria do palco, sentou-se devagar na madeira com os olhos vermelhos das lágrimas limpas e ergueu o queixo para as grandes letras escritas na parede.
ENCONTRE A ORIGEM
Ela certamente pretendia completar aquela provação, e não pretendia permitir que ninguém a derrubasse emocionalmente com tanta facilidade outra vez.