Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 11 – Arco 4

Capítulo 38: O Primeiro Retorno

Quando os olhos cor de oceano se abriram novamente, um grande arfo escapou de seus lábios e a garota de cabelos negros se sentou violentamente no chão, soltando um pequeno grito agudo de surpresa e choque. A necessidade de erguer a voz quando a dor e o calor se espalharam por seu corpo foi grande o bastante para que a voz dentro de si ficasse entalada na garganta e apenas agora pudesse ser ecoada, espalhando-se pelos quatro cantos do ambiente com ar de desespero.

O quê? O que, o que, o quê? O que é isso? O que aconteceu? O que eu…

A mente confusa de Ryota girou em círculos e ela sentiu náuseas despontando de seu estômago quando, suando frio, verificou a barriga com os dedos trêmulos, erguendo o tecido da roupa para verificar a pele. 

Ryota observou que a carne permanecia intacta, apesar dos músculos se moverem frequentemente com as respirações profundas e o suor que escorria nervosamente — mas era tudo. Nada de uma faca perfurando sua pele, carne e sangue. Nada de um cabo perfeitamente pressionado contra seus órgãos internos, se revirando e causando agonia.

Após um momento para respirar, Ryota sentiu a própria voz lentamente recuperar forças apesar da mente ainda não ter processado corretamente o que havia acabado de acontecer. Ainda com uma expressão de leve pavor e clara insegurança, abaixou novamente o tecido da roupa e observou seus arredores.

O que encontrou não foi um quarto feminino com cheiro de lavanda e uma menina de pele escura com cabelos cor de cenoura a encarando com um par de olhos sem qualquer brilho de empatia ou sanidade, mas sim um grande palco de madeira cuja sua respiração ecoava através dos assentos diante dele.

Ryota não sabia como havia ido parar dentro do Anfiteatro, mas depois de todas as experiências malucas que vivenciou desde que chegou em Urânia, quase nada poderia surpreendê-la de verdade. Ou melhor, nada que não fosse literalmente passar pela experiência de morte — ou quase morte — e recuperar a consciência em cima de um palco vazio, mas com uma única luz branca cobrindo seu corpo enquanto todo o restante permanecia sombrio e escuro.

… O que aconteceu? Como eu vim parar aqui? Não, espera… 

Sua cabeça começou a doer com o amontoado de perguntas e as informações tardias e dolorosas das memórias felizes que lentamente recuperou. Ao se recordar dos sorrisos trocados, dos abraços calorosos, do comportamento educado e dos esforços elogiáveis de Bellatrix antes de literalmente esfaqueá-la pelas costas.

A expressão de medo lentamente deu lugar à tristeza e a contemplação, seus lábios tremeram um pouco e Ryota sentiu como se pudesse derramar lágrimas agora mesmo, mas o máximo que conseguiu exibir foi uma feição de coração partido.

Ela realmente imaginou que havia se aproximado daquelas pessoas. Achou que poderia se tornar parte de suas vidas e compensar suas ações no passado. Ela queria isso, mais do que tudo.

Mas ainda assim, parecia que ela falhou completamente em ganhar a confiança e o amor daqueles que um dia a ofereceram, e agora eles viraram o jogo contra ela, vingando-se dos rancores e mágoas com uma lâmina fincada em sua carne.

… Acalme-se. Você ainda não descobriu o que aconteceu, não pode tirar conclusões precipitadas. Pode ser uma armadilha.

Ryota tentou pensar da forma mais otimista que conseguiu enquanto se levantava do chão com as pernas bambas, mas tudo o que conseguiu foi uma mensagem de auto-consolo. Ela queria acreditar que Bellatrix não a havia manipulado e traído daquela forma, muito menos dito aquelas palavras antes que sua consciência se apagasse. Queria acreditar… Ryota queria acreditar nas pessoas que lhe deram uma segunda chance.

Mas a dor que dilacerava seu peito era forte o bastante para deixá-la sem ar por um longo momento antes de respirar fundo, assim como uma vez aprendeu, e erguer a cabeça para analisar seus arredores.

Ryota estava no centro do palco do anfiteatro. Até onde os olhos alcançavam, não havia nada que havia mudado dentro de seu campo de visão, e também não parecia que havia qualquer alma viva por perto dado o silêncio ensurdecedor do ambiente ao ponto de sua própria respiração poder ser ouvida.

… Eu preciso sair daqui. Preciso de respostas… Saber como vim parar aqui e o que aconteceu com Alex, Dio e os outros… Eu preciso…

Quando girou seu corpo na direção das escadas, seus olhos por pouco falharam ao ver o que viram, e os pés de Ryota interromperam os passos imediatamente antes de retornarem. Os olhos dela se arregalaram quando observou aquilo e então cautelosamente se aproximou, fixando sua vista na parede com uma expressão de choque que raramente fazia, mas que agora a visão diante de si a deixou sem palavras.

… Por quê?

— Por que essa coisa ainda está aqui?

O que roubou seu fôlego foi a escrita manchada em vermelho na grande parede, marcada com a escrita assustadora que parecia ser traçada por dedos humanos. 

ENCONTRE A ORIGEM

Não deveria ser uma surpresa enorme dado que Ryota havia lido aquelas mesmas palavras com letras escorrendo pela parede de forma grosseira, mas aquilo foi há alguns dias. Àquela altura, no mínimo, alguém deveria ter limpado aquelas letras estranhas — um professor ou um aluno. Não poderiam deixar algo assim manchando um ambiente onde se faziam apresentações, não quando era uma cena tão horripilante até mesmo para uma garota que havia visto de quase tudo quanto ela.

Mas, ainda assim… Ali estava a escrita, fixa em seus pensamentos como se roubasse sua atenção. Como se recém tivesse sido escrita, assim como havia visto pela primeira vez.

— “Encontre a origem”... O que isso quer dizer, afinal?

Nesse momento, Ryota hesitou e esqueceu completamente de descer as escadas ou de retornar para a cidade para encontrar Bellatrix e os outros. Afinal, o que estava em sua mente eram as diversas possibilidades que poderiam tê-la trazido para o anfiteatro novamente. Haviam diversas situações e cenários ilustrados em seu cérebro para justificar o estranho despertar, mas cada um deles rachou e desapareceu na imensidade de seus pensamentos quando viu a escrita na parede.

… Isso… Isso só pode ser aquilo, não é?

Uma gota de suor frio escorreu por seu rosto pálido. 

Ryota não foi teleportada para o anfiteatro ou carregada até ali. Ainda que as chances fossem mínimas, elas se tornaram sem sentido algum devido às palavras manchadas em sangue diante de seus olhos. Isso porque, acima de qualquer outra experiência, causalidade sobrenatural ou cenário que causou pesadelos confusos em sua mente, havia uma única coisa que há tempos não mudou, ainda que ela nunca mais tivesse experienciado na pele.

— … Sofia chamou esse evento de… In Reverie, não é?

“Existe algo que ocorre em sua vida que pode ou não estar relacionado com as provações. Cabe a você mesma descobrir… Ou melhor, ainda que não queira, em breve descobrirá. E quando entender, talvez suas prioridades mudem um pouco agora… E para sempre.”

— Eu sempre odiei quando ela falava dessa forma… Apenas tudo mais enigmático e difícil de descobrir. Maldita Entidade.

Ryota praguejou baixo as palavras de Sofia que retornaram em sua memória de uma conversa que ocorreu há muito tempo atrás, ainda no Empíreo. Quando perguntou sobre os estranhos eventos cuja causa e consequência não tinham, por vezes, qualquer sentido. Quando mortes que deveriam ocorrer eram de repente refeitas e a imagem de um futuro mudava completamente, fazendo sua mente duvidar dos próprios cinco sentidos antes que ela eventualmente deixasse sua curiosidade de lado.

Desde que muitos eventos posteriores transcorreram e sua mente ficou cheia, Ryota nunca mais parou para pensar nas palavras da Sabedoria sobre o In Reverie, especialmente quando aqueles cenários nunca mais ocorreram.

Mas agora era diferente — bem diferente de todas as vezes em que esteve In Reverie. Em outras palavras, “devaneio” seria um termo direto ao ponto para se referir aos estranhos acontecimentos. Ainda assim, aquele era diferente.

Afinal, nunca antes um In Reverie a fez retornar em um ponto tão longínquo — há dias atrás. Em geral, quando ocorria, eram em apenas segundos ou até milissegundos que faziam a mente de Ryota acreditar que estava apenas de fato vendo coisas, ou sonhando acordada. Mas agora era diferente.

Agora, enquanto as peças lentamente se encaixavam em sua mente e os olhos azuis dela observavam fixamente as letras na parede do anfiteatro, o que emergiu de dentro de Ryota foi uma amarga raiva. Lenta, quente e perigosa —  uma revolta que não apenas vinha de ter machucado seu coração, mas também de ver pessoas que eram preciosas serem usadas como parte daquele jogo de xadrez das Entidades.

— … Até quando pretendem me fazer de idiota?

Ela sussurrou irritada, cerrando os punhos com força e fazendo seus dedos tremerem. Ryota deu um passo para trás e retornou para o centro do palco, olhando na direção dos assentos. Apenas uma luz iluminava seu corpo, como se desde o começo aquele fosse um espetáculo. Nada mais do que um grande entretenimento para os espectadores do sofrimento, que se deleitavam com os sentimentos em expansão e explosão.

— Eu sei que você pode me ouvir, Sofia! Você está aí, não é?

Ela ergueu a voz e escutou a si mesma dentro do amplo espaço, mas nenhuma resposta veio. Era como se estivesse totalmente sozinha.

Mas sabia que não estava. 

A sensação de estar na realidade e dentro das provações de Sofia eram semelhantes, mas não idênticas. Ainda havia uma pequena parte de seu coração machucado pelas brincadeiras cruéis das Entidades que era capaz de sentir o arrepio, o horror e a sensação de observação que vinha de um local que transcendia o tempo e o espaço daquele mundo.

Os olhos da Sabedoria estavam por todos os lugares; oniscientes e onipresentes.

— Você começou uma provação sem eu saber, não foi?! Qual é o seu problema, afinal?! Eu pensei que estávamos jogando isso de forma justa!

Era risível que Ryota esperasse justiça e qualquer tipo de honra vindo de um ser não-humano que era uma Entidade, mas uma parte dela ainda quis acreditar — uma parte ingênua dela que nunca mudou, mesmo depois dos eventos de Aurora até o presente momento.

Era aquela parte mais sensível e maleável que a tornava tão fácil de usar — e Ryota sabia disso, mais do que ninguém.

— … Eu deveria saber desde o começo. Eu deveria ter escutado a minha razão ao invés de tentar acreditar ao menos em você… Eu pensei que você ao menos fosse cumprir com a sua palavra, mas parece que não foi o caso.

A voz da garota ecoava solitária e fria pelo espaço do anfiteatro de novo e de novo.

— Sua sociopata maldita! Vocês todas são bruxas psicopatas! Quem deveria morrer cruelmente são vocês, sabiam?! Morram, sofram dolorosamente cada uma de vocês por terem usado a Bellatrix daquele jeito! Como vocês ousam… Como ousam brincar assim com os sentimentos das pessoas?!

Os gritos de raiva efervesceram e ficaram mais fortes a cada palavra.

— Malditas! Eu odeio todas vocês, e não vou acreditar em mais nada que disserem! Sim, mais nem uma palavra! Eu não ligo mais para essas provações ridículas, entenderam?! Não quero saber! 

Ryota  bateu o pé no chão e apontou para os assentos vazios, sombrios, na distância, como se alguém estivesse sentado.

— Chega! Pode ficar com as suas respostas ridículas! Eu não quero mais saber! Vou encontrar outra forma de salvar quem preciso salvar, entendeu?! Não preciso de nenhuma de vocês! Desapareceram e morram, vocês quatro!

Foi nesse instante que ocorreu.

Ela ouviu um estalo alto, mas distante — e foi na velocidade do som, ou ainda mais rápido, que aquilo passou voando diante de sua cabeça e acertou em cheio. Ryota cuspiu sangue e sentiu o corpo afundar no chão do palco de madeira, as rachaduras e pedaços perfurando sua pele e causando um ferimento irreparável quando a grande barra de ferro despencou, caindo em suas costas e destruindo seus arredores.

Foi um barulho alto que se espalhou, mas a consciência da garota que foi atingida primeiro na cabeça e então no corpo não processou as informações. Ryota afundou no palco como um pedaço de carne esmagado, os ossos quebrados perfurando os órgãos e a cabeça que recebeu o primeiro golpe doendo quando sangrou. Ela viu, também, quando a luz led que era maior do que um braço bater em sua nuca, a deixando quase inconsciente por um longo minuto.

… Dói.

Ainda que a voz não saísse, os pensamentos ainda podiam ser ouvidos.

Mas aquilo não era a única coisa que Ryota, no vão da consciência e da inconsciência, pôde ouvir.

Havia outro som, um que ecoava pelos quatro cantos do anfiteatro, que preencheu seus ouvidos conforme se alastrou e ficou mais forte. Ela achou que estava alucinando, mas conforme as repetidas palmas foram ouvidas, a noção do que era real se desmanchou conforme a poça de sangue se espalhava.

As mãos batiam umas nas outras em uma salva de palmas alegre que reverberou pelo ambiente, bem como as vozes assobiando e que gargalhavam. Era como uma tomada, uma cena de comédia que se desenrolou diante dos olhos dos espectadores e que agora era agraciada aos atores a recompensa por seus esforços — uma forte salva de palmas das sombras sorridentes que assistiam.

… Dói. Dói muito.

Os assobios, palmas e risadas não paravam, parecendo apenas ficar mais intensos, ainda que soassem à distância para o subconsciente da garota. A visão escureceu e turvou, mas ela ainda era capaz de enxergar os sorrisos brancos dos dentes das pessoas sombriamente sentadas nos assentos assistindo com deleite a atuação.

Eram rostos conhecidos e preciosos. Pessoas que foram gentis e que ela foi gentil. Pessoas que salvou e que a salvaram. Pessoas que choraram e que a fizeram chorar. Pessoas que amava e que a amaram.

… Isso dói. 

E cada um daqueles rostos agora aplaudia o ato final do palco cuja luz branca escurecia gradativamente, fechando as cortinas com o fim da apresentação gloriosa, incluindo as quatro figuras femininas sentadas ao centro. A última pequena fagulha de visão que Ryota teve antes de perder a consciência foi o foco daqueles indivíduos, em especial a figura sombria que batia palmas lentamente com um pequeno e discreto sorriso de presunção.



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