Volume 10 – Arco 4
Capítulo 37: Uma Doce e Afiada Gentileza
Cerca de uma semana se passou desde a segunda provação e Ryota sentiu que seus dias estavam andando devagar. Era estranho pensar que retornar a uma rotina onde despertar todas as manhãs para ir à aula ao lado de um trio de jovens barulhentos, focar sua atenção nos estudos e praticar expressões agradáveis lhe custasse tanto as horas do dia.
Era quase como se estivesse vivenciando uma vida totalmente diferente quando não estava acorrentada às próprias preocupações, e o tempo se arrastava como pequenos grãos de areia caindo em uma ampulheta cuja quantia restante era incapaz de ver.
Ryota sempre soube que seu tempo gasto em atividades cuja mente se mantinha ocupada a permitia esquecer de diversos pensamentos que ruminavam suas noites, mas os dias pacíficos que se seguiram tão estranhamente comuns que ela parou para se perguntar se havia algo de errado.
Provavelmente, aquela era a sensação de esquecer-se do lazer; um sentimento de incômodo embrulhava o estômago, e constantes questionamentos flutuavam em sua mente quando passava seus minutos, horas e dias ao lado daquelas pessoas sorridentes.
Está mesmo tudo bem para mim permanecer assim tão calma? Eu não deveria estar me preocupando com outras coisas agora?
Obviamente, não era como se não estivesse aprendendo a apreciar as novas interações com a energética Bellatrix, o sarcástico Alexandre e o sereno Dio — era mais uma constante sensação de autocobrança. Afinal, ainda que dias pacíficos fossem ligeiramente agradáveis para apaziguar aqueles em que acabou desperdiçando na pura tentativa de focar-se em seus objetivos, Ryota sentia que algo faltava.
Mas o quê, exatamente?
… Eu devo estar pensando demais.
Ainda que a tensão das provações e a constante necessidade de atingir as maiores notas nas tarefas escolares do instituto Gnosis fossem parte da razão de estar em Urânia, Ryota jamais poderia se esquecer dos motivos principais que a mandaram para lá.
E, claro, ela não queria envolver nenhum de seus amigos nisso.
Apenas considerar que qualquer um deles pudesse se envolver com uma Entidade a fazia sentir arrepios de pavor — estava bem ciente do estranho relacionamento entre Alex e Kakia, e dado as personalidades de cada uma daquelas mulheres em porte humano, Ryota jamais conseguiria confiar plenamente em nenhuma delas.
Ainda assim, Kakia não parecia apresentar qualquer tipo de ameaça aos estudantes, e isso ficou claro desde que a viu pela primeira vez no anfiteatro. As razões para isso ainda eram desconhecidas, mas até mesmo Sofia era uma Entidade que se relacionava com uma quantidade gigantesca de pessoas comuns e não necessariamente causava danos diretos.
Ryota imaginava que elas tinham seus próprios planos, e isso a preocupava tanto quanto a aliviava. Diferentemente de Mania, ao menos Sofia e Kakia tinham um pouco mais de sensibilidade para conversar. Se aquilo era um bom sinal ou não, Ryota nunca saberia — mas de toda forma, a deixava menos tensa saber que elas não representariam um perigo imediato.
Por enquanto.
E pensando em ameaças ou intervenções, fazia um tempo desde que ela não via os guardiões de Sofia ou a própria reitora presente no instituto. A princípio, Ryota imaginou que apenas estivesse perdendo a oportunidade de cruzar caminho com eles novamente desde que tanto Amane quanto Scarlet, duas figuras que poderia contar nos dedos a quantidade de vezes que interagiu, desapareceram do mapa.
Sasaki, por outro lado, ainda permanecia por perto apesar de nem sempre estar à vista. Em geral, a garota o via sempre dormindo em algum lugar, sempre alheio e despreocupado com o mundo. Mesmo depois de suas palavras, os dois não chegaram a conversar novamente, e Ryota se perguntou se o curandeiro sequer chegou a escutá-la.
… Eu posso pensar nisso mais tarde.
Quanto à Sofia, ela até mesmo tentou perguntar para seus amigos a respeito da reitora da forma mais indiferente possível. Ryota imaginou que expressar uma grande proximidade ou interesse na fundadora do grande instituto geraria uma boa impressão, e provavelmente apenas questionamentos desnecessários seriam levantados.
E, quando perguntou sobre Sofia, o que recebeu de Bellatrix foi um singelo inclinar de cabeça e um balançar de ombros sutil.
— Ah, a senhorita Sofia? Eu não a vejo tanto assim, com exceção de quando sou chamada para reuniões importantes, mas em geral ela não fica no prédio. Afinal, ela não é a diretora daqui, então não precisa estar sempre por perto.
Se até mesmo Bellatrix, que era membro do conselho estudantil de Gnosis, não via frequentemente Sofia pelos corredores, então a decisão de Ryota ficar em silêncio foi realmente a mais sábia. E ela percebeu que a ruiva não estava mentindo em sua constatação, até porque era totalmente plausível que a reitora de Gnosis apenas visitasse o instituto regularmente.
Às vezes ela se esquecia que além de uma Entidade com tendências sociopatas e a criadora da maior instituição de conhecimento da modernidade, Sofia também era a representante oficial de Urânia na corte de Thaleia. Para um país que agregou seus nativos nas terras do outro lado do mundo quando o Mar Sombrio mergulhou o planeta em sombras, o papel de Sofia em manter a ligação e a paz entre ambos os lugares era bem mais importante do que parecia.
Ao menos, ela assim pensaria caso Ryota não conhecesse a verdadeira identidade da Sabedoria.
Dado que o mundo desconhecia quem realmente era Sofia, o laço e a posição social ao qual ela ocupava estavam longe de ser uma qualidade, e sim uma grande preocupação para o que exatamente ela estaria usando sua grande influência.
E havia, claro, seu sobrenome Megalos — uma família da nobreza de Thaleia ao qual Albert uma vez pertenceu. Ryota nunca parou para pesquisar muito a respeito das origens de seu avô desde seu falecimento, e ela não se sentia confortável em nem mesmo pensar muito sobre o ocorrido. Tocar no tema a levaria a ter memórias dolorosas que ainda eram feridas recentes e mal cicatrizaram, e dado a quantidade de outros problemas que estava envolvida, Ryota não queria correr o risco de perder sua estabilidade mental para o luto.
Então, ela se esforçou para deixar aquelas dores no peito de lado e se focou no ponto principal de seus pensamentos, e isso era…
— Riri, vamos até a minha casa para uma noite das garotas!
— … Hã?
Ryota não soube como a conversa delas chegou àquela conclusão, mas em um piscar de olhos, após as aulas, as duas garotas se viram andando pelas ruas de Celestia caminhando a passos apressados a algum lugar.
E o destino era, aparentemente, a residência de Bellatrix.
— Escuta-
— Aaaah, estou tão animada! Mal posso esperar pra poder te mostrar os doces que a minha mãe faz! Tenho certeza de que vai adorar, afinal o Didi me contou que você gosta de comer esse tipo de coisa. Então eu pedi pra mamãe preparar uma torta de maçã cheia de caramelo!
Com uma empolgação maior do que o usual, a ruiva de dread ergueu a voz, cortando a tentativa de Ryota fazer uma pergunta. Era uma tarde ensolarada de início de ano após o fim das aulas e, ao contrário de como normalmente ocorria, Bellatrix segurou a mão de Ryota e a puxou gentilmente porta afora para a calçada, caminhando diante dela com passos firmes, quase saltitantes.
Em geral, Bellatrix nunca ficava à sós com Ryota, mas não era uma regra que era sempre seguida. Durante as tardes cujo sol alaranjado iluminava seus cabelos e a exaustão de um longo dia de estudos pesavam em seus ombros, o quarteto se reunia para conversar ou simplesmente para passar um tempo juntos na praça de Celestia.
Era um ambiente agradável ao qual consistia geralmente de Bellatrix e Alexandre discutindo sobre as mais diversas coisas em voz alta, com Dio interferindo de tempos em tempos e Ryota acrescentando comentários com um sorriso leve como uma pena. E então, quando a noite caía, cada um se despedia e retornava para suas respectivas casas, com Ryota e Dio caminhando para o quarto de hotel onde costumavam passar o tempo.
Mas ao contrário daquela rotina ao qual a garota estava quase passando a se acostumar desde o retorno das aulas após as provas de fim de mês, repentinamente ela se viu sendo puxada na direção da casa de Bellatrix para uma espécie de “noite das garotas”.
— Bel-
— E você sabe o que eu ouvi dele? “Ao menos pára de usar esses patins ridículos ou ninguém vai te acompanhar!”, e eu fiquei “Oh, é verdade!”, então resolvi deixar eles em casa hoje apenas para poder andar com você.
Ryota não conseguia acompanhar o ritmo da conversa e dos passos de Bellatrix, não quando ela estava conversando abertamente tão empolgada e firmando o aperto em sua mão com um pouco mais de força do que antes.
Por alguma razão, isso a fez sentir um calafrio nas costas.
— E então-
— … Espere um pouco.
Com uma entonação mais assertiva, Ryota parou de andar e interrompeu as palavras da amiga, que parou os passos ao perceber que estava sendo mantida no lugar. Ela demorou alguns segundos para virar o rosto devagar para trás, ainda com um sorriso casual no rosto e uma expressão de leve confusão.
— O que foi, Riri?
Ryota se manteve em silêncio por uma parcela de segundos maior do que o normal observando a face da ruiva que, apesar do comportamento, falava e gesticulava normalmente.
Mas havia algo de diferente nela, e de alguma forma a garota foi capaz de sentir aquela mudança sutil, ainda que não soubesse bem o que era.
… Estou pensando demais outra vez.
— O que é a “noite das garotas”?
Ao ouvir a pergunta, Bellatrix abriu ainda mais seu doce sorriso, respondendo com um cantarolar empolgado.
— Eu te disse antes, Riri! Você não ouviu? É como uma festa do pijama, mas só das garotas! Ou seja, sem o Alê falando até nossos ouvidos caírem ou o Didi pra escutar. Um momento especial apenas nosso!
— … Entendo.
Ryota tinha uma vaga noção sobre o que ela estava se referindo, e imaginou que seria semelhante aos dias em que passou brindando taças de vinho com Fuyuki, trocando palavras sem sentido sob as estrelas.
Um nó se formou no estômago dela quando o rosto da duquesa surgiu nas memórias, e ela apenas decidiu colocar aquilo de lado quando Bellatrix continuou, voltando a puxar Ryota pela calçada com a mão, agora com um pouco mais de delicadeza.
— Você deve saber como é, Riri. Sabe, você chama seus amigos pra passar a noite na sua casa, vocês compartilham memórias uns com os outros, comem doces e salgadinhos até de madrugada, fingem que estão dormindo quando sua mãe aparece pra mandar vocês dormirem e riem até acabarem cochilando… Ou algo assim.
A voz da ruiva gradualmente ficou mais baixa e sua empolgação diminuiu um pouco, mas antes de Ryota poder abrir a boca para falar, ela continuou, olhando por cima do ombro com suas belas íris esverdeadas para garantir que a outra estava ouvindo.
Ryota ainda estava estranhamente focada na memória dos olhos esmeraldas da duquesa que se assemelhavam muito aos de Bellatrix quando demorou um minuto a mais para responder.
— Na verdade, eu… Nunca tive uma “noite das garotas” antes.
Por alguma razão, confessar aquilo a deixou levemente constrangida. A forma como Bellatrix contou tão intensamente e com tanta empolgação parecia insinuar que Ryota havia feito aquilo centenas de milhares de vezes por ser uma estrangeira de Thaleia, ou algo semelhante. Mas, em contraponto a todas as grandes expectativas da amiga, Ryota era na verdade menos experiente em passatempos entre amigos — especialmente jovens e adolescentes — do que o normal.
Durante grande parte de sua vida, ela apenas passou seu tempo livre ajudando as pessoas em sua terra natal, garantindo sorrisos e esforçando-se para manter tudo como sempre foi. No começo, pretendeu sair de Aurora para encontrar o avô, na esperança de que suas memórias do passado não entrassem mais em conflito com o solitário presente, e quem sabe todos pudessem viver felizes para sempre juntos novamente.
… Tecnicamente, Stella ainda estaria faltando, mas para Ryota era o bastante. Não havia como mudar a passagem do tempo ou trazer os mortos de volta à vida, e ainda assim ansiava por aqueles calorosos dias com todos juntos, lado a lado, com sorrisos cheios da mesma bondade e calor que se recordava do passado.
Suas íris escureceram um pouco mais com o aperto em seu peito, mas aquela dor e saudade que ainda remoía seu interior foram momentaneamente dissipadas com o largo sorriso que Bellatrix voltou para Ryota.
— Então, vamos fazer isso juntas pela primeira vez. Nós duas.
Foi como um sopro, uma brisa fresca que balançou seus cabelos negros e espantou as sombras do passado. As palavras de Bellatrix trouxeram uma paz que há tempos não sentia, uma sensação de leveza e acolhimento que tão poucas pessoas foram capazes de lhe ceder.
Semelhante à quando Alex a consolou durante a crise de ansiedade, ou quando Dio gentilmente expressou seu afeto incondicional à ela, Ryota sentiu um calor percorrer sua nuca e orelhas quando percebeu o quão abençoada era por ter aquelas pessoas perto de si.
Os três eram doces, confiáveis e compreensivos. Também cometiam erros e obviamente tinham seus defeitos como todos os seres humanos e ela mesma, mas ainda assim nenhum deles parecia ter vergonha de admitir aquilo. Expressaram uma gentileza grande o bastante para abraçá-la mesmo após todas as coisas horríveis que disse e fez, perdoando-a.
Ryota sentiu como se estivesse rodeada de três almas puras que quase foram corrompidas por suas palavras podres — apenas recordar-se do que uma vez disse a cada um deles a fazia querer entrar em prantos, afundando-se debaixo da terra e desaparecendo de tanto constrangimento. E agora o que ela mais desejava era corresponder e compensar aqueles três que tanto fizeram por ela, ainda que eles mesmos jamais soubessem o quanto aquilo a salvou.
— … Sim, vamos.
Ryota respondeu às palavras da ruiva com um imperceptível, porém caloroso sorriso.
***
Assim como grande parte das casas de Celestia, a residência da família de Bellatrix era composta por uma pequena e agradável casa adornada com um jardim frontal. Diferentemente de Hera, Celestia parecia apreciar um pouco mais a presença da natureza e isso refletia-se diretamente na própria aparência da cidade. Ainda que pequena, ela era silenciosa, limpa e com moradores estranhamente agradáveis.
A caminhada para a casa de Bellatrix durou cerca de trinta minutos antes que as duas atravessassem uma pequena cerca de madeira branca bem pintada e caminhassem por um caminho de pedras coloridas que levavam diretamente para a porta da frente. Bellatrix guiou sua amiga até a entrada, mas Ryota apenas conseguia prestar atenção nos pequenos detalhes do jardim, como as flores bem cuidadas e que se deliciavam sob a luz do sol, o gramado ralo mas verde e saudável, a pintura impecável das paredes e da cerca, os detalhes nas cores que combinavam e contrastavam com as ruas mais escuras.
— Ô mãe, acabei de chegar! Vem, vem! Não precisa ter vergonha.
A voz de Bellatrix ecoou assim que abriu a porta da frente, entrando após limpar os sapatos coloridos no tapete de entrada e guiando Ryota com a mesma animação de quando a puxou rua abaixo uns minutos antes. Com uma expressão levemente nervosa, a garota entrou na casa devagar, sentindo-se estranhamente envergonhada por visitar a casa de um amigo.
Normalmente, ela não se importaria muito, e provavelmente seu “eu” de um ano atrás teria pulado para dentro sem pensar duas vezes. Mas agora, Ryota sentia um leve desconforto até mesmo naquelas coisas mais simples, e parte dela tinha receio da primeira impressão que os pais de Bellatrix poderiam ter dela.
Afinal, visualmente falando, ambas eram pólos completamente opostos, e o humor de Ryota estava longe de estar no seu maior auge.
— … C-Com licença.
— Bem-vinda de volta, filha… Ah, é mesmo, hoje teríamos visita, não é?
— Mãe! Você se esqueceu de tudo o que eu te falei ontem?
— Sobre o quê?
— A noite das garotas!
— … Ah. Aaaah, sim, claro que eu lembro, querida. Não se preocupe.
— Mãe, tá na cara que você esqueceu, não precisa fingir.
A mulher que saiu de um cômodo que espalhava um doce aroma assado estava usando luvas térmicas xadrez e tinha uma pele escura como a de Bellatrix, mas seus cabelos eram totalmente pretos. Considerando os dreads, Ryota imaginou que as duas deveriam compartilhar do mesmo gosto para moda, e não era necessário muito esforço para reparar nisso considerando que as roupas da mulher eram tão coloridas quanto as de sua filha, bem como a casa e todo o ambiente.
Entretanto, a aura que emanava daquela mulher era ainda mais dócil e gentil do que Bellatrix, o que não deixou Ryota muito surpresa.
— Muito prazer, querida. Sou Saiph, a mãe da Bella. Espero que ela não esteja te dando muito trabalho.
— O prazer é meu, senhora.
As duas trocaram apertos de mãos leves, e imediatamente Ryota gostou da personalidade de Saiph. E, obviamente, percebeu em um par de segundos que o nome da mulher era igualmente incomum como Bellatrix, provavelmente originando-se de alguma estrela também. Isso apenas deixou Ryota curiosa para conhecer o pai da amiga, mas dado que apenas a mãe dela compareceu quando chegaram, Ryota decidiu ser paciente e cumprimentar Saiph adequadamente.
— Você fez uma amiga tão bonita, minha filha. Estou muito feliz que estejam passando o tempo juntas… Ah, mas olhe como sou mal educada. Venha, entre, querida. Estou terminando de assar alguns pães para o café da tarde.
Saiph continuou com uma face gentil mesmo quando seu rosto com algumas rugas da idade revelou surpresa, e ela rapidamente retornou para a cozinha colocando de volta as luvas térmicas que havia tirado para apertar a mão da convidada. Os passos arrastados dela fizeram Ryota esboçar um riso, e Bellatrix pareceu baixar os ombros ao ver a mãe passar apressadamente por ela para o cômodo ao lado.
— Mãããe, de novo? Você vai acabar queimando eles se continuar se distraindo assim!
— Ora vamos, Bella. Quantas vezes eu queimei nossos pães?
— Umas dez vezes, talvez onze contando com o bolo que você tentou cozinhar ao mesmo tempo e trocou o açúcar e o sal dos dois.
— I-Isso não vem ao caso. Todos nós erramos, não é mesmo?
Ryota apenas observou com uma expressão leve a conversa de mãe e filha, onde Bellatrix cruzava os braços para dar um sermão casual em Saiph por seu comportamento que era de praxe. A visão era certamente adorável e o cheiro de assado se espalhou pela casa em um piscar de olhos quando a mulher mais velha abriu o forno e retirou uma forma com um pão com lascas de tom marrom cobrindo o dourado.
… Queimado. Como carne.
Ryota balançou a cabeça quando um pensamento de memórias do passado lhe causou arrepios, e ela desviou os olhos para qualquer outra coisa na cozinha para que nem Bellatrix ou Saiph percebessem sua expressão de desconforto.
Desde o acontecimento de Aurora há quase um ano, ela nunca mais se acostumou com a visão, paladar ou cheiro de queimado. A visão de carvão ou o aroma adocicado de algo aquecendo-se lentamente, ainda que não fosse carne ou frango, era o bastante para lhe fazer suar frio. Ryota se esforçou bastante para disfarçar seu incômodo e evitou comer ou se aproximar demais de qualquer coisa recém-assada desde então, mas aquele incômodo apenas ficou pior com o tempo ao ponto de sentir ânsia.
Obviamente, era apenas mais um detalhe que nunca contou para ninguém em especial, e certamente não queria incomodar Bellatrix ou sua mãe com aquele pequeno detalhe. Ainda era um desafio para ela abrir-se a respeito de suas dores e das coisas que a deixavam mal, especialmente porque todas as vezes precisava se explicar para compensar a curiosidade que acompanhava a gentileza das pessoas.
Mas Ryota ainda era incapaz de expressar-se adequadamente, então apenas desviava do assunto ou não mencionava sua perturbação — que era intensa o bastante para impedi-la de se concentrar em qualquer conversa ou acontecimento ao seu redor. E foi justamente isso o que aconteceu, pois eventualmente ela acabou sendo puxada por Bellatrix de novo para algum lugar enquanto ouvia as vozes abafadas discutindo algo sobre o qual não conseguia prestar atenção.
Talvez Bellatrix tivesse reparado na repentina palidez de seu rosto, porque Ryota se sentiu sendo puxada pela mão novamente para longe da cozinha e em direção a um corredor, eventualmente entrando em outro cômodo ao qual fechou a porta.
Com isso, o odor da massa assada gradualmente ficou mais fraco até se dissipar, deixando Ryota menos tonta quando ergueu os olhos embaçados da parede para a garota ruiva diante de si.
— Você tá bem, Riri?
Com esforço, Ryota acenou em concordância, mas ainda sentia gotas de suor frio molhando suas costas. Mas ela não mencionaria aquele detalhe, então apenas respondeu com a maior calma que conseguiu:
— … Sim, obrigada.
Mas Bellatrix não pareceu muito convencida, então puxou Ryota gentilmente para perto de sua cama, guiando-a para se sentar com um cuidado grande o bastante que a garota sentiu como se fosse de vidro. A brisa agradável que vinha da janela ao lado espantou a expressão de enjôo, e eventualmente a palidez do rosto de Ryota desapareceu.
Ela desviou os olhos da janela quando sentiu a amiga se sentar ao lado, movendo um pouco o colchão. Apenas nesse momento Ryota percebeu que estavam no quarto de Bellatrix, e era exatamente como ela imaginou que seria. Paredes pintadas de laranja e decorações fofas estavam espalhadas pelos quatro cantos. Haviam luzes coloridas, ursinhos de pelúcia empilhados em um canto e um armário de roupas cheio de adesivos infantis. O cheiro de assado deu lugar ao de um perfume de lavanda agradável, e Ryota demandou alguns segundos para perceber que deveria ser o próprio perfume de Bellatrix.
— Sinto muito pelo trabalho que lhe causei.
— O-O quê? Hã? Não, de jeito nenhum! Você não me causa problemas!
Bellatrix pareceu surpresa que Ryota quebrou o silêncio primeiro e ergueu as mãos, rapidamente balançando-as no ar.
— Eu só… Fiquei preocupada que você estivesse passando tipo muito, mas muuuito mal, sabe? E não sabia o que fazer porque você não respondeu quando te chamei, então pensei que o problema fosse o lugar ou algo assim.
A sensibilidade de Bellatrix tocou Ryota outra vez, e ela se lembrou como a garota esteve buscando incessantemente formas de compreender e observar tão atentamente quanto Alex ou Dio as crises da amiga.
— V-Você se sentiu mal com alguma coisa que a mamãe disse? Eu posso falar com ela.
— … Não, não foi nada disso.
Ryota se sentiu constrangida até mesmo por considerar que uma mulher dócil como Saiph pudesse causar qualquer tipo de incômodo, mas Bellatrix não desistiu e continuou replicando:
— Então, o que foi? Quero dizer, se você quiser falar sobre isso, eu posso te ouvir. Apenas se você quiser, é claro. Não estou mandando nem nada…
Parecia que a própria ruiva estava um pouco desconfortável por estar no papel de consoladora, especialmente sem ter Dio ou Alex por perto para dar as indicações diretas do que poderia ter causado o mal estar de Ryota. E sob o foco dos olhos azuis, Bellatrix soltou um suspiro.
— Desculpa, é só que eu nunca sei o que fazer nessas horas… Eu não quero te deixar triste, Riri. E também não quero que vá embora agora quando ainda nem pudemos passar um tempo juntas.
— … Eu não estou triste, e não pretendo ir embora. Então, não se preocupe comigo.
Era um pouco injusto que Ryota pedisse aquilo quando ela mesma não era capaz de sanar a inquietação de seus amigos com uma justificativa plausível, o que a fazia se recordar de como outras pessoas no passado também ficaram igualmente preocupadas com ela quando estava indisposta física ou mentalmente.
Outro momento de silêncio permaneceu no quarto antes que Bellatrix pudesse murmurar, fazendo Ryota desviar os olhos para o chão.
— Você não pretende me contar, não é? Tudo bem, eu vou entender.
Dando um pequeno salto da cama, Ryota sentiu a amiga se afastar com passos pesados para o outro lado do quarto, mexendo em alguma coisa dentro de seu armário antes de voltar para sentar ao seu lado. Durante aquele pequeno momento, ela não se sentiu no direito de olhar para o rosto da ruiva e sequer sabia como deveria encará-la sem parecer deprimida, mas eventualmente a voz baixa e pensativa de Bellatrix voltou a murmurar:
— … Sabe, você é a primeira.
— … A primeira?
— A primeira amiga que tive.
Ryota tomou uma longa inspiração antes de erguer o olhar para a garota ao lado, sentada com uma fotografia nas mãos. Ela era velha e gasta, com marcas amareladas nos cantos e desbotava em detalhes, mas ainda era visível o bastante.
E nela, havia um grupo de crianças sentadas no chão ao redor de um homem mais velho com um crachá no peito que parecia ser um professor. Mas o que chamou sua atenção não foi a foto, mas as marcas de “x” feitas nos rostos de todos da imagem com uma canetinha vermelha igualmente gasta… Com exceção de uma pequena garota de cabelos pretos, curtos e segurados por dreads que parecia estar forçando um sorriso trêmulo.
— Acho que nunca tive a sorte de conseguir me aproximar de ninguém. Eu sentia como se as pessoas ao meu redor fossem diferentes de mim, e sempre me afastavam delas não importava quantas vezes eu tentasse me aproximar.
Os cabelos ruivos de Bellatrix cobriram a expressão dela, mas sua voz expressava uma memória certamente dolorida e que foi manchada e marcada no tempo. Era como se ela, assim como Ryota, não conseguisse desapegar de seu passado registrado em uma imagem fotográfica, ainda que as origens e seus sentimentos pelas memórias em questão fossem totalmente diferentes.
— Eu tentei várias e várias vezes… Incontáveis, centenas de milhares de vezes, mas nunca deu certo. Era como se elas me odiassem.
Ryota permaneceu em silêncio, sem saber o que dizer e pensando que fazer um comentário insensível apenas magoaria Bellatrix, que parecia tão entretida em sua fala.
Na distância, ouviu o som de passos se afastando de um cômodo próximo e indo para outro local, provavelmente a entrada.
— Eu via as crianças da minha escola brincando umas com as outras, rindo e se divertindo. Eu as via fazendo grupos para estudar e fazer trabalhos. Eu as via indo para casa juntas enquanto falavam sobre seu dia. Mas tudo o que eu sempre pude fazer era ver.
O som de uma porta se abrindo foi o que soou na distância da casa, bem como uma troca de palavras entre uma voz mais aguda e uma voz mais grave.
— Então, eu continuei observando todas elas, todos os dias, sempre que pude. Eu estudei e aprendi como elas se comportavam, como cada uma delas agia para poder se aproximar dos outros, como conseguiam fazer os outros sorrirem e como conseguiam fazer amizades. E usei isso para tentar me aproximar das pessoas.
Os passos firmes na distância se aproximaram, parando em um cômodo próximo. As vozes ficaram mais altas, mas a fala era irreconhecível, apesar de ser claramente uma conversa entre um homem e uma mulher.
— Mas nem isso funcionou. Todos continuaram distantes de mim, e apenas parecia que meus esforços foram em vão… Na verdade, foi ainda pior. Eles zombavam e riam de mim. Naquele dia, eu chorei, chorei e chorei a noite inteira no meu quarto.
As vozes na distância ficaram mais altas e de repente Ryota sentiu um arrepio percorrendo sua espinha quando percebeu que elas estavam um pouco mais ríspidas, mais agressivas. Os passos firmes se aproximaram da porta do quarto.
— Meus pais tentaram me consolar do próprio jeito deles, mas não adiantou. Eu apenas me senti ainda pior do que antes. Como um erro que não podia se encaixar em nada, uma peça de um quebra-cabeça perdido.
A brutalidade com que a maçaneta foi virada assustou Ryota, mas para sua surpresa, a porta não se abriu. A maçaneta se contorceu, tremeu e batidas foram ouvidas, bem como uma voz grave do lado de fora, mas Bellatrix não reagiu, permanecendo com os olhos fixos na fotografia nas mãos.
Ryota baixou gradativamente o olhar da porta que era alvo de socos para a ruiva ao lado perfeitamente parada, ainda falando.
— … Mas então, eu conheci você. E percebi que era tudo o que eu precisava pra me encontrar.
— Escuta, Bella-
— Eu estudei você assim como estudei os outros, tudo na intenção de poder te compreender e me aproximar. E, pela primeira vez, meus esforços geraram resultados. Eu fui recompensada.
Bellatrix cortou com um tom levemente afiado a tentativa de interrupção de Ryota, que outra vez olhou para a porta que tentava ser aberta em vão, e então para a garota, franzindo a testa em confusão.
A sensação de desconforto e desconcerto apenas ficou mais forte conforme a luz do lado de fora gradualmente escureceu, e os céus alaranjados da tarde deram lugar ao fim do pôr-do-sol.
Uma brisa gelada arrepiou os pelos da nuca de Ryota quando Bellatrix ergueu os olhos devagar na direção dela, deixando uma mecha de seu cabelo escorregar pelo ombro, aproximando um pouco mais o rosto do dela.
Ryota observou o sorriso de Bellatrix quando ela se aproximou a uma distância cujos rostos podiam sentir as respirações tocarem, e um baque ocorreu. Foi um movimento rápido e quente que deixou a vista embaçada outra vez, mas não por enjôo.
Mas por dor.
O corpo demorou alguns instantes para reagir, mas o sangue que escorreu do lábio de Ryota foi mais rápido do que a percepção da faca perfurando seu abdômen, a lâmina cortando profundamente a carne até o cabo com uma força surpreendente.
— B-Bel-
Antes que sua voz pudesse murmurar o nome da garota sentada ao lado, uma dor indescritível percorreu seu interior, e Ryota grunhiu alto de dor quando a lâmina fez um giro perfeito, rasgando e dilacerando.
— Obrigada, Riri.
Mais sangue foi cuspido e o corpo de Ryota caiu na cama, contorcendo-se em uma convulsão quando sua vida se derramou e espalhou pelas roupas pretas e pelo colchonete colorido. Os sons da porta sendo batida e das vozes se tornou distante, e a visão gradualmente escureceu conforme os sentidos se tornaram confusos, quentes e cruelmente dolorosos.
A última coisa que Ryota viu antes de apagar e o brilho de suas íris desaparecer por completo foi o largo e bizarro sorriso na face da ruiva — um sorriso nostálgico que a fez ver estrelas.
— Obrigada por ser minha primeira amiga… E apenas minha.
A voz de Bellatrix não chegou aos ouvidos da garota que perdeu a consciência, apesar do corpo ainda reagir conforme a lâmina ensanguentada perfurou de novo, e de novo, e de novo, e de novo…
E de novo.