Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 10 – Arco 4

Capítulo 36: O Seu Dever

O som estridente e agudo do sinal tocando ecoava pelos corredores do prédio durante o horário do lanche, e os estudantes imediatamente largaram suas lapiseiras e canetas para se dirigir apressadamente para fora da sala de aula. Era uma comoção ligeiramente organizada digna de estudantes da alta classe ao qual ela estava acostumada, mas nem por isso tornava a experiência menos incômoda.

Por vezes, alguns daqueles estudantes paravam para observá-la, mas deixaram de a incomodar após alguns episódios onde foram totalmente ignorados. Ainda assim, Ryota era capaz de sentir os pares de olhos direcionados a ela e as palavras que murmuravam uns para os outros de vez em quando por suas costas.

Ela nunca soube o que era dito, mas não estava interessada — especialmente se fossem coisas ruins, o que era o mais provável. Então, a garota apenas permanecia silenciosa em sua mesa durante todas as sessões de pausa com exceção ao fim das aulas, os olhos ainda presos nos materiais escolares.

Se conhecidos de Thaleia a vissem agora, não reconheceriam aquela Ryota: presa nos livros de estudos, mesmo das matérias aos quais não era particularmente boa, estudando sem parar nem mesmo um segundo para respirar. Sua mente funcionava melhor quando estava preenchida por trabalhos e compromissos do que pensamentos frívolos, e por isso uma das notas mentais da garota era nunca se distrair com ruídos ou sons potencialmente chamativos.

Isso quando não era seu nome sendo chamado, ou quando alguém envolvia seus braços ao redor dela de surpresa para lhe dar um susto de supetão, mas sem sorte alguma na tentativa.

— Boo!

— Viu só, foi como o pirralho te avisou. Nem mosca se assusta com essa sua voz aveludada, garota! Se enxerga!

— N-Não fica triste, Bella. Você se esforçou bastante por isso, está tudo bem.

Quando um par de braços envolveu seu pescoço indolentemente por trás, Ryota nem mesmo piscou enquanto mantinha as íris fixas no caderno de anotações. Ela sentiu o cheiro leve do perfume de Bellatrix antes mesmo de ouvir a voz da garota tentar assustá-la, inflando as bochechas com tristeza ao ver que não recebeu qualquer resposta de seu alvo. Ao lado dela, Alex e Dio fizeram seus comentários, respectivamente.

Com um suspiro discreto, ela baixou os materiais na mesa e ergueu o olhar para o trio cheio de energia atrás de si. Aquele era um cenário que passou a se repetir desde a conversa de Ryota com Bellatrix, uma semana atrás, e desde que retornaram para o cotidiano das aulas, os dias normalmente cinzentos e silenciosos da garota viraram de ponta cabeça.

Alex caiu como uma luva naquele grupo, e parecia que a dinâmica de dois estudantes mais cheios de potencial do Instituto Gnosis era boa o bastante para manter Dio ocupado. Mesmo sendo apenas um garoto de onze a doze anos, sua maturidade e serenidade eram impressionantes o bastante para parecer que as idades foram completamente invertidas.

Ryota não podia reclamar daquela aura agradável, entretanto. 

— Riri, tá vendo só como o Alê me maltrata?! Eu tô sendo injustiçada aqui, me salva, Ririii!

— Que isso, menina? Pra que esse escândalo todo? Você deveria aprender boas maneiras com o pirralho, ele é mais novo do que você e não fica gritando desse jeito o tempo todo.

— Ah, bem…

Dio ficou um pouco constrangido quando Alex pousou a palma da mão em seus cabelos áureos, não sabendo o que dizer mesmo ao ver o rosto de Bellatrix ficar vermelho como um pimentão de nervoso.

— Riri, me defende! O Didi trocou de lado! Ele me traiu mesmo depois que adotei ele!

— Hã? E-Eu-

— É isso mesmo, ele viu que ao menos eu tenho qualidades dignas de serem inspiradoras. Quanto a você… Puff, no máximo vai ser um péssimo exemplo pra esse pirralho quando crescer.

— E-Eu sou um ótimo exemplo! Sou uma das melhores alunas de Gnosis!

— Ai, mona, vamos combinar que quase todo mundo aqui é especial de algum jeito, não é? A diferença é que eu sou especial ao quadrado.

— P-Pessoal…

Enquanto Alex continuava usando palavras um pouco cruéis para provocar, Bellatrix era sensível e fácil o bastante de se incomodar com os comentários dele, continuando com o rosto todo vermelho e procurando argumentos que validassem seus pontos. Seus braços ainda estavam ao redor do pescoço de Ryota, que observava a discussão amigável em silêncio, bem como as reações nervosas de Dio, que estava tentando — em vão — interferir na conversa, apenas para ser interrompido.

Reparando no olhar dela, Dio abriu um sorriso pequeno e doce para Ryota, ainda tentando se manter em pé com a mão de Alex em seu cabelo, o afagando mais como um cachorro do que como uma pessoa.

Ryota não devolveu o sorriso, mas seu olhar suavizou o bastante para informar que não estava desconfortável com os sons altos. Havia uma espécie de conexão entre ela e o garoto que lhes permitiam se comunicar apenas com o olhar, algo que era estranhamente reconfortante. Por vezes, Alexandre demonstrava ser bastante observador e Bellatrix poderia demorar, mas compreendia quando Ryota precisava de seu espaço pessoal.

Em geral, o quarteto ainda não era próximo o bastante, mas havia uma pequena ligação entre eles que os permitia passar o tempo juntos daquela forma. Para Ryota, que era especialmente tendenciosa a desconfiar de tudo ao seu redor, era o suficiente para lhe garantir um pouco de sossego.

… Talvez um pouco de barulho não seja tão ruim.

Foi o que pensou, e desde então aquele grupo não se desgrudava, com exceção das aulas diárias que os mantinham em salas de aula diferentes. Em geral, no entanto, sempre que possível, Bellatrix era a primeira a puxar os outros dois pelo braço para encontrar Ryota. Após perceber que a garota tinha problemas com contato físico, ela passou a tomar um pouco mais de cuidado e a ouvir a opinião de Alex e Dio antes de tomar decisões que pudessem causar dor à amiga novamente.

Era um ato que Ryota apreciava — silenciosamente —, ainda que Bellatrix esquecesse daquilo algumas vezes e momentos como aquele aconteciam. Ainda que Ryota não reagisse ao abraço repentino, aquela inexpressividade era o bastante para compreenderem que ela não estava desconfortável com o toque. Além disso, a presença de pessoas mais cautelosas emocionalmente como Alex e Dio eram importantes, e a garota de cabelos ruivos tentava lembrar para nunca tocar Ryota sem ambos por perto para garantir silenciosamente que estava tudo bem.

Com a segunda provação de Sofia, o espanto com quanto tempo se passou desde que ela havia adentrado o instituto a deixava com a noção de que os dias corriam como água. Em geral, os testes do instituto ocorriam mensalmente, ao fim de um período escolar onde os estudos deixavam de se focar nas aulas teóricas e os estudantes precisavam colocar em prática o que aprenderam.

Ryota era um caso à parte, pois além do aprendizado geral ao qual Sofia havia lhe repassado e os professores criavam apostilas e tarefas extras, ela estava matriculada no percurso regular, onde todos os três cursos de Gnosis eram mestrados aos estudantes.

Isso permitia que Ryota estudasse de vez em quando ao lado de seus colegas Bellatrix e Alexandre, que faziam artes visuais e artes cênicas, respectivamente. Mas, em contrapartida, a carga estudantil que precisava dedicar aos estudos era dobrada, exigindo muito mais dela do que o normal.

Ryota não tinha problemas em focar-se nos estudos, ainda que não fosse sua área preferida de atuação. Mas com a passagem da primeira para a segunda provação, sua mente sucumbiu às provocações do subconsciente e ela se isolou do mundo — o que a fez perder a noção do tempo. E com isso, cerca de quase três meses se passaram, e a virada de um ano para o outro ocorreu.

Oito meses desde a Infração Hera — oito meses desde o coma de Zero, o desaparecimento de Jaisen e a briga com Fuyuki. 

Ryota havia feito a viagem para Urânia durante o fim de ano, e pouco depois da primeira provação, semanas se passaram onde ela fechou sua mente para o mundo — para os sons, para as cores, para as pessoas.

Ela nem mesmo percebeu que comemorações ocorreram, que felicidades foram dadas uns aos outros e apenas foi notar quase um mês depois. As aulas do Instituto Gnosis não ofereciam aos alunos um período longo de férias, e Ryota certamente não diferenciou as férias de fins de semana comuns, muito menos parou para pensar em que dia ou semana do mês estava.

Se recordar do quanto sua mente estava desgastada para agir ignorantemente àquele ponto era assustador — e Ryota certamente não queria estar assim nunca mais. 

O silêncio antes confortante se tornou uma ameaça, uma porta de entrada para os pensamentos ruins intervirem em seu raciocínio. Então, ela estava um pouco grata com a sensibilidade de Alex, Bella e Dio em lhe fazer companhia e perdoá-la por seu antigo comportamento. Era uma gentileza grande o bastante para fazê-la se sentir constrangida, ainda que sua expressão não mudasse o bastante para revelar suas emoções.

E, em se tratando de perdão, Ryota sentiu que eles não eram os únicos com que precisava se retratar. E foi durante o fim de um dia de aula comum que ela, após respirar fundo diversas vezes para acalmar os dedos trêmulos dentro do bolso, foi até o pátio do instituto procurar por Sasaki.

Como de costume, quando não estava trabalhando para Sofia com qualquer que fossem suas obrigações, ele sentava em um banco debaixo da sombra para poder cochilar. Era uma cena um pouco nostálgica, mas lembrar de seus dias em Aurora ainda não era fácil o bastante para Ryota sorrir e suportar as memórias conseguintes. 

Quando se aproximou do banco e parou diante dele, Sasaki não moveu um único músculo. Conhecendo-o, Ryota imaginou que ele estivesse em um sono profundo, ou talvez apenas fingindo que estava dormindo para descobrir a razão da presença da garota. De uma forma ou de outra, ela precisava dizer aquelas palavras, mas despertar alguém — ainda que esse alguém fosse Sasaki — não era algo que estava confiante em fazer no momento.

Então, ao invés disso, Ryota deu meia-volta e se encostou de costas contra a traseira do banco. Inspirou fundo outra vez, movendo os dedos nervosos dentro dos bolsos para acalmar o coração quando começou a falar.

— … Sinto muito pelo o que disse da última vez.

Ryota não sabia se Sasaki estava ouvindo, mas algo dentro dela dizia que sim.

— Ainda estou irritada com o que me disse desde que cheguei aqui pela primeira vez… Mas eu tenho um débito porque salvou a vida do tio Jaisen em Aurora. Eu não me esqueci disso. 

Foi uma ocasião que, em pouco mais de quatro meses, completaria um ano. Mas, ainda assim, ela jamais se esqueceu do que o curandeiro havia feito para garantir a segurança dela, de Zero e de Jaisen.

— Como você disse, há muita coisa que não sei e desejo saber… Mas acho que existem coisas que não estou pronta para ouvir, e talvez nunca esteja. Além disso, ainda não sei o que pensar sobre mentiras que salvam ou protegem pessoas.

Era difícil, era doloroso e magoava — entendia isso melhor do que ninguém.

Ryota fechou os olhos para pensar, ainda falando baixo o bastante para apenas Sasaki ouvir.

— … Eu vim para pedir perdão pelas coisas que disse. Sobre você, e sobre… Bem, sobre amaldiçoar os outros.

Ela quase não conseguia dizer em voz alta aquilo de tão constrangida que se sentia, mas se obrigou a fazer isso mesmo assim. 

— Eu também quero ser capaz de refletir sobre seus conselhos. Ainda não confio plenamente em você, ou em Scarlet e Amane, que mal vi nos últimos dias, mas… Quero dar o primeiro passo agora para isso.

Ryota ficou em silêncio por outro longo momento.

— … Eu não acredito em você, mas pelo débito que tenho, quero tentar te perdoar pelas coisas que me disse. 

Ainda que fosse difícil e doloroso para um coração rachado e ainda machucado por feridas que não sararam se esforçar para se curar, era algo que precisava fazer. Pouco a pouco, pedaço a pedaço, era o dever de Ryota repensar nas pessoas que magoou e consertar o que destruiu. Por bem ou por mal, precisava fazer isso.

Não significava que era amiga de Sasaki, que confiava ou contaria com ele. Também não significava que estava aliada à Sofia ou às suas outras guardiãs, que há tempos não via. Entretanto, com o pouco de coragem ganhada pelo perdão das pessoas gentis que a rodeavam, Ryota queria mudar. Ela queria, ao menos, compensar o que fez e disse para se sentir um pouco melhor consigo mesma.

E esperava que isso deixasse aqueles com quem se desculpou igualmente aliviados.

Tendo dito tudo o que queria, Ryota abriu os olhos novamente para se acostumar com a luz e as cores que seu mundo gradualmente recuperava. E, um instante depois, silenciosamente se afastou do banco onde o curandeiro repousava e caminhou para longe, deixando para trás um Sasaki que suspirou profundamente depois de um longo silêncio.



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