Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 10 – Arco 4

Capítulo 35: Origem

A lufada de ar que balançou seus cabelos causou uma pequena sequência de arrepios por sua pele, e os olhos da garota que estava sentada na cama se direcionaram para a janela. As íris azuis como oceano observaram, na distância, o casual farfalhar das folhas, as vozes abafadas, os agudos e graves sons que ecoavam na distância e por fim, a mente que apreciava o raro silêncio da cidade mesclou os cinco sentidos de uma só vez.

Ela fechou as pálpebras e inspirou fundo, o ar penetrando suas narinas preencheu seus pulmões por algumas parcelas de segundos antes que se esvaziasse novamente devagar, repetindo o processo de novo e de novo. Eventualmente, os músculos do corpo perderam a tensão e o som do mundo desapareceu, dando lugar a uma pequena e instável paz.

Quando Ryota abriu os olhos novamente no quarto parcialmente iluminado, percebeu que as sombras e cores do mundo lentamente recuperaram espaço em seu campo de visão, lhe causando uma leve distorção em sua percepção.

Em que momento passei a temer o silêncio?

A mente recheada de pensamentos preocupados que corriam de um lado para o outro era exaustiva, mas menos assustadora do que o silêncio corroído pela solidão. Por vezes, a inconsciência era fria e atraente; outrora, dolorida e sufocante. 

Haviam momentos em que Ryota sentia-se afundar no mar de pensamentos, mas também poderia repentinamente flutuar sem rumo ou controle, nadando pela maré sem resistência.

Era difícil encontrar estadia quando o mundo continuava a girar sem parar, a forçando a se movimentar constantemente, impedindo a estagnação.

— … Estou cansada.

Ryota murmurou para si mesma com os olhos pesados, os ouvidos gradualmente recuperando a audição dos ruídos da noite e a luz remanescente do quarto quase cegando a vista. Ela desviou o olhar para a mesa de cabeceira ao lado da cama e esticou preguiçosamente o braço na direção da gaveta, puxando-a para revelar o que estava cuidadosamente guardado.

Nos últimos dias, a mente de Ryota emergiu completamente e sua noção de tempo e espaço desapareceu, tudo em prol da necessidade desesperada de conseguir a aprovação nas tarefas e provas do instituto para que pudesse prosseguir, sem erros, para a próxima provação de Sofia.

Graças a isso, virou as costas e tapou os ouvidos para o mundo, para as pessoas, para as memórias e para si mesma. E, consequentemente, esqueceu-se totalmente do bloco de notas com uma caneta de quatro-cores presa na espiral. O nome ZERO em letras cursivas podia ser lido, e os olhos da garota ficaram presos na capa dele por um longo instante antes que finalmente seus dedos criassem coragem para pegá-lo.

Ryota endireitou a postura e sentou-se na cama do quarto, olhando para a capa do bloco de notas. Assim como na primeira vez em que o abriu, sentiu uma ansiedade brotar dentro de seu estômago, a fazendo hesitar em virar a página e descobrir que pensamentos o garoto de cabelos violeta poderia ter descrito naquelas velhas e gastas páginas.

Quando seu polegar roçou a capa para virá-la para o outro lado, uma batida curta na porta levou sua atenção para a pessoa que estava timidamente parada do outro lado. Por um momento, uma azia regozijou em sua garganta quando lembrou-se de algo semelhante acontecer semanas atrás, quando Dio pediu para ficar com ela quando não conseguiu dormir.

Em circunstâncias normais, ela provavelmente teria se derramado em lágrimas de arrependimento; agora, o máximo que conseguiu expressar para o garoto parado do lado de fora do quarto, espiando com um dos olhos para dentro, foi um singelo baixar de ombros.

— O que foi? — ela perguntou baixinho, colocando o bloco de notas de lado na cama.

Talvez com receio do mesmo resultado da interação passada, Dio hesitou um segundo antes de tentar murmurar uma resposta.

— Eu… 

— … Não consegue dormir?

Houve outro silêncio antes dele concordar com a cabeça devagar, desviando o par de olhos dourados para o chão. Com isto, Ryota soltou um suspiro, pensando um pouco antes de bater gentilmente com a palma da mão ao seu lado na cama.

— Venha.

Sua voz não expressou afeto ou emoção, mas o gesto de deixá-lo se aproximar foi tudo o que o garoto precisou para abrir um grande sorriso aliviado, abrindo a porta silenciosamente e apressando seus pequenos passos na direção da cama. Em seus braços, Lion dormia pacificamente — ao menos um deles estava confortável o suficiente para descansar naquela noite.

Dio escalou a cama e sentou-se ao lado de Ryota com ligeira timidez, mas visivelmente animado. Era uma reação que a própria garota se recordava de ver antes, quando recém havia chegado à Urânia e passaram um tempo agradável lado a lado. O sorriso adorável de uma criança que se contentava com pouco sempre foi fascinante para Ryota, e seu peito ficou um pouco mais leve com aquela visão.

— Eu atrapalhei alguma coisa, moça?

— … Não.

As duas vozes soavam baixas no quarto silencioso, e enquanto Dio observava o rosto de perfil de Ryota, Lion se aconchegou em cima das cobertas, virando uma pequena bola de pêlos.

— … Tenho a impressão de que seus pesadelos são recorrentes — observou ela, tocando no assunto ao qual estava curiosa havia algum tempo da forma mais desinteressada que conseguiu.

— … Sim, eu… 

Houve uma longa pausa antes que Dio pudesse prosseguir em seu raciocínio.

— … Não costumo ter bons sonhos. Ao menos, nunca me recordo de quando os tenho, e fico aterrorizado algumas vezes apenas em pensar que posso ter algum pesadelo quando deito na cama.

Ryota observou que a expressão sempre serena e doce do garoto se contorceu levemente em uma mescla de ansiedade e tensão quando os músculos do rosto ficaram tensos. Isso fez sua mente trilhar um longo caminho de possibilidades e pensamentos diferentes aos quais ela não queria se prender, mas não pôde evitar em prestar atenção nas palavras dele.

— Nessas horas, o Lion sempre cuida de mim… Nós estivemos juntos por muito, muito tempo. Somos inseparáveis. 

Dio passou os dedos na superfície dos pêlos do cachorro com um sorriso pequeno de afeição, suavizando um pouco a expressão. Ao sentir o afago, o filhote grunhiu baixo em resposta ao dono, ainda cochilando silenciosamente.

— … E-Eu não quero te atrapalhar, moça. Se quiser, posso ir embora assim que me pedir para sair. 

O mesmo sorriso gentil retornou ao rosto do garoto, e os olhos profundamente azuis como o oceano da garota deslizaram na direção dele. Então, Ryota suspirou discretamente, virando o rosto para o outro lado da cama — para o bloco de notas.

— … Não me importo. Faça o que quiser.

Certamente seu tom ou palavras não pareciam gentis, mas para Dio era o suficiente. O sorriso em seu rosto aumentou e relaxou, os ombros baixaram e a ansiedade em seu corpo desapareceu como se condensasse, e Ryota mais uma vez voltou a se perguntar as repetidas mesmas questões às quais nenhuma resposta que Dio lhe desse no mundo seriam o suficiente para cessar sua leve desconfiança.

… Eu nunca vou entender esse garoto.

Entretanto, Ryota não estava com forças para voltar ao mesmo tópico após tantos dias sem tocar nele, e apenas calou-se outra vez antes que palavras rudes escapassem de seus lábios. Ela não queria ferir ainda mais aquele pequeno coração, ainda que parte dela nunca se sentisse totalmente confortável ao lado de Dio.

— Moça, o que é isso?

O interesse do garoto em alguma coisa a tirou de seus pensamentos, e Ryota arregalou levemente os olhos quando percebeu que Dio estava espiando o outro lado da cama — onde estava o pequeno bloco de notas.

O tom de voz era puramente curiosidade e havia uma leve perplexidade nos olhos de Dio, como se um quebra-cabeça estivesse tentando se formar em sua mente. E para aquela reação, ela precisou conter o impulso de guardar o objeto que esteve escondendo por tanto tempo novamente na gaveta e fingir que nada havia acontecido, e apenas respirar fundo para acalmar o leve nervosismo que passou por sua pele.

Assim como Alexandre havia instruído, refez o exercício de autocontrole e fechou os olhos, meditando silenciosamente para que os pensamentos intrusivos não tomassem conta antes e hesitantemente olhar para o bloco de notas de Zero e o pegar com a mão, colocando em seu colo.

— … São memórias de um velho conhecido.

Ryota não viu necessidade em detalhar quem era aquela pessoa ou sua importância, mas o não usual tom melancólico na voz foi o bastante para permitir a Dio compreender parcialmente a situação, e seu rosto suavizou. Ele pareceu constrangido por ficar curioso com algo que lhe trazia memórias dolorosas, e parecia pronto para se desculpar, mas a garota o interrompeu outra vez.

— Ele deixou isso para trás, mas nunca fui capaz de entender a origem ou a razão disso. Não consigo… Entender o porquê.

Ryota havia considerado uma quantidade inestimável de vezes o que exatamente Zero Furoto tinha em sua mente para eternizar pensamentos, sentimentos e dores como aquelas. Não parecia de seu feitio expor seus sentimentos abertamente aos outros, e muito menos escrever algo como um pequeno diário. Durante aqueles longos meses em que ele esteve dormindo, além dos dias em que passou em Urânia, a mente dela se encheu das mais diversas perguntas, e algumas delas eram tão sem sentido que causaram ainda mais dúvidas nas respostas que anteriormente possuía.

… Por que o Zero me ama?

Ele havia revelado seus sentimentos abertamente a ela diversas vezes; algumas mais discretas que outras, mas no fundo Zero jamais foi capaz de esconder sua afeição. Ainda assim… Ainda depois do beijo, do pedido de casamento, do sacrifício…

… Por quê? 

As palavras de Sasaki batiam como um martelo em sua mente — a mentira era uma faca de dois gumes, podia salvar ou machucar. Amigos, familiares, amantes, colegas, desconhecidos… Todos eram suscetíveis ao engano, à incompreensão e à falsidade, por qualquer que fosse a razão. 

“... Mas sei como é o sentimento de amor incondicional e reconheço quando alguém também o sente.”

Ryota conseguia sentir o coração dolorido batendo nervosamente nos ouvidos.

“Afinal, será que o Zero teria colocado seu corpo e coração em perigo tantas vezes por alguém que não amasse cegamente?”

Ela não tinha certeza — e não sabia se desejava saber a resposta. 

Zero se importava com ela porque a amava como era, ou porque estava cego pelo amor? Se um dia aquele amor se esvaísse… Se um dia ele despertar de seu sono profundo, quiçá sem memórias ou sem sentir mais nada por ela… O que sobraria, então?

Aqueles pensamentos eram terríveis o bastante para embrulhar seu estômago.

— Esse velho conhecido devia confiar muito em você pra deixar em suas mãos algo assim.

A voz de Dio a livrou de seus profundos pensamentos e os olhos azuis se desviaram do bloco de notas para o garoto sentado com uma expressão doce ao seu lado.

— … Em mim?

— Se não for isso, por que alguém deixaria algo tão importante em suas mãos, moça? 

— … Ele não o deixou para mim.

Na verdade, Sora acreditou que ficaria mais seguro comigo do que com ele.

— Não? E por que seu nome está escrito nele, então?

O sangue no rosto de Ryota desapareceu e ela ficou pálida por um momento, rapidamente olhando de Dio para o bloco de notas. Inconscientemente, ela havia levantado a capa dura, revelando a primeira página cujas palavras ela havia lido no passado. Mas, além disso…

“Para Ryota”

Haviam letras miúdas escritas na dobra da primeira página, como uma espécie de assinatura dedicada de alguém para outrem.

Para ela.

Para mim? Por quê?

Um calor inundou repentinamente seu corpo e ela sentiu que lágrimas poderiam ter brotado de seus olhos, mas ao invés disso, Ryota rapidamente fechou o bloco de notas e o colocou em cima da mesa de cabeceira ao lado da cama.

— … Durma agora.

Dio se surpreendeu com a ação, mas não disse nada quando ouviu as palavras murmuradas quando a garota se deitou ao lado dele de costas, olhando para a parede. O garoto não desobedeceu e apenas deitou silenciosamente no quarto escuro mal-iluminado, sem conseguir parar de pensar no tom de voz trêmulo de Ryota, e não soube dizer se era por medo, tristeza ou saudade.

***

O Anfiteatro Diadema estava silencioso e vazio quando Ryota entrou sozinha, seus passos leves e discretos enquanto descia a longa escadaria.

Naquela manhã, ela despertou antes que o garoto e o filhote ao lado de sua cama e saiu do apartamento, deixando-os para trás sem interromper seu pacífico sono. Ela não queria que a seguissem, não quando estava para procurar por respostas no último lugar ao qual fez a provação de Sofia.

Em todas as provações, Ryota precisou ler uma palavra que a permitisse entrar de corpo e mente no mundo onde o tempo e o espaço não estavam de acordo, e as habilidades místicas das Entidades tomavam forma e controle.

A primeira, Negação.

A segunda não houve a leitura de uma palavra, mas estava certa de que o gatilho foi a Raiva.

O que viria a ser a terceira?

Ryota nunca soube quais eram as leis, como ou onde as provações aconteceriam, mas sempre eram durante ou um pouco depois dos testes do Instituto Gnosis. Era como se a Sabedoria estivesse prestando testes constantes à ela, explorando cada mísero pedaço para que pudesse entregar e tomar sequencialmente.

Entretanto, a garota estava decidida a encontrar ao menos uma pista que lhe trouxesse respostas ou um pouco de auxílio. E a única pessoa que poderia lhe fornecer aquelas informações, era…

— Eu estava feliz achando que era meu Tesouro, mas parece que era apenas um pequeno rato que se esgueirou até aqui, hm?

A voz cheia de orgulho e sarcasmo da mulher de cabelos rosas e vestimentas chamativas não mudou, e os olhos vazios de qualquer escrúpulo focaram-se em Ryota quando ela parou diante do palco. 

Kakia estalou a língua com a falta de resposta ou reação de Ryota, não se divertindo com sua inexpressividade. Assim como qualquer Entidade, ela parecia se divertir tirando reações dos outros, fossem boas ou ruins.

— A que devo sua não desejada visita?

— Foi você quem coordenou a segunda provação?

— Oh, eu gosto da sua ousadia, pirralha. Você não parece estar mais tão indecisa ou tremendo dos pés a cabeça como um gato assustado, hein?

Kakia colocou a mão na cintura, olhando Ryota abaixo dela de cima para baixo. Com a Entidade da Imoralidade para no centro do palco, onde um único feixe de luz pousava em seu belo corpo, a garota na frente dele era como uma mera sombra escondida entre as cadeiras do anfiteatro.

Como mais nenhuma reação foi tirada dela com o comentário, Kakia revirou os olhos e bufou os lábios cheios de batom.

— Vou te responder apenas porque a Sofia pediu, entendeu? Se dependesse de mim, eu chutava sua bunda daqui sem nem pensar duas vezes, mas parece que ela está te dando um pouco de privilégio comparado com os outros.

Ryota franziu a testa para as palavras de Kakia, mas não a interrompeu quando ela continuou:

— Pra resumir a conversa chata, sim. Eu estava coordenando a segunda provação, mas a terceira não tem nada a ver comigo, então nem me olha com essa cara de expectativa.

… Como eu imaginei.

Haviam algumas coisas às quais Ryota havia se atentado nos últimos tempos, especialmente nas conversas no Empíreo e a forma como todas as presentes se portavam. Mas uma coisa era certa: Sofia não trabalhava sozinha, e ela imaginou que de uma forma ou de outra, as demais Entidades deveriam estar envolvidas nas provações.

Os detalhes em si não importavam para Ryota — ao menos não agora. A garota não desejava comprar a mesma discussão que teve com Sofia e as outras sobre seus métodos e escolhas, e não estava com vontade de causar intrigas.

Seu real interesse era no futuro, e em como encarar as demais provações.

— Quem está responsável pela terceira provação?

— E eu lá vou saber? Não sou a Sabedoria pra saber de tudo, eu hein.

Os ombros da garota baixaram com a resposta nem um pouco convidativa de Kakia, que estalou a língua com desdém e franziu a testa com uma expressão de desgosto para alguma coisa que se passou em sua mente.

Ryota poderia ter insistido no assunto dado que a Imoralidade parecia ter conhecimento de algo, mas dentre todas as Entidades, parecia que ela e Mania eram as mais perigosas de conversar — pelas razões mais óbvias. E por sua própria segurança e a garantia de que nenhum tipo de truque ocorresse na terceira provação, ela apenas decidiu passar, ao menos por enquanto.

— Então, a Sofia disse alguma coisa sobre a próxima aprovação?

— Além de que você vai com certeza fracassar? Não.

Ryota tinha suas dúvidas de que a Sabedoria havia dito algo assim, mas por alguma razão não parecia que Kakia estava a provocando dessa vez, apesar do sorriso em seu rosto.

— Se não tem mais nada pra perguntar, pode ir embora. Ver a sua cara mal humorada o tempo todo faz mal pra minha beleza, então xô.

Como de costume, Kakia espantou Ryota como se não fosse nada além de um inconveniente e se retirou do palco, caminhando com elegância e passos firmes para trás das cortinas. A garota permaneceu parada diante do palco com a iluminação no espaço vazio e suspirou, coçando a nuca com os dedos quando decidiu subir as escadas para sair do anfiteatro.

… Não sei o que eu estava esperando, mas acho que é um começo. 

Enquanto se dirigia à escadaria, ela passou os olhos pelas laterais do palco e acabou vendo uma estranha mancha vermelha na parede. Estava oculta pelas cortinas vermelhas e era discreta na escuridão, por isso não reparou à primeira vista, especialmente daquela distância.

Poderia passar despercebido e ser completamente irrelevante, mas por alguma razão, ela sentiu que não era. E por isso subiu no palco para dar a volta e enxergar da luz o que estava escrito na parede cinzenta.

ENCONTRE A ORIGEM

Foi o que a garota de cabelos negros leu com os pelos do braço se arrepiando, ao sentir o cheiro familiar de ferro e perceber que as letras em vermelho escorriam na escuridão, como que pintadas por dedos manchados em sangue fresco. 



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