Volume 10 – Arco 4
Capítulo 34: Alívio
É isso.
Ryota sentiu imediatamente o desconforto na forma como a mão erguida de Bellatrix se enrijeceu, os olhos dela desviando-se do rosto da acompanhante de Alex para algum outro lugar.
Não era necessário muito esforço para dizer que o mesmo valia para Dio, que não se moveu desde que reparou na chegada da dupla.
Eles não me querem aqui.
Havia uma diferença entre evitar o encontro consciente ou inconscientemente — até o momento, ela estivera seguindo pelo segundo caminho. Agora, entretanto, era diferente.
Estavam, os três, diante uns dos outros.
E Ryota não sabia o que fazer além de jogar todo o esforço de Alex no lixo e desviar o olhar para o chão, uma expressão de desgosto em seu rosto se formando. Ela sabia que aquela não era a melhor apresentação depois de não conversarem por mais de um mês, mas não pôde evitar. Seu rosto criou uma careta imediatamente ao perceber que seus maiores medos eram reais, e ela nem precisou conversar com eles para entender.
Eu estou atrapalhando.
Bellatrix parecia feliz em ver Alexandre. Era algo natural, pois ambos certamente compartilhavam de energias semelhantes e, sendo duas figuras conhecidas e relativamente importantes dentro do Instituto Gnosis, não deveria ser surpresa que eram conhecidos.
E, também, ambos estavam cursando artes cênicas.
Eram duas pessoas abençoadas com talentos além de sua imaginação, e com um brilho tão grande em qualquer mera ação ou palavra que poderiam cegar seus olhos cheios de sombras.
Ryota quase podia sentir o próprio corpo se encolhendo, recuando novamente para debaixo das sombras ao qual se sentiu ousada a sair. Um de seus pés deslizou silenciosamente para trás, no intuito de fazer seu corpo sair correndo. Havia um desespero constante em suas íris que não era visto por ninguém, mas a postura de desconforto era perceptível.
Eles me odeiam.
Por que não odiariam? Se qualquer um a quem Ryota foi gentil e estendeu a mão no passado, de repente, a tratasse daquela forma e pensasse tamanhas atrocidades sobre ela, era óbvio que o sentimento brotando de dentro dela fosse uma grande repulsa.
Eles não vão me perdoar.
Foi uma certeza que sua mente imediatamente chegou durante aqueles longos segundos parada, encarando o nada. Seus dedos começaram a tremer quando ela os escondeu dentro da roupa, enrijecendo ainda mais a expressão para manter o autocontrole.
... Que tipo de rosto eles devem estar fazendo agora?
Não sabia. E nem queria saber.
Mas temia que soubesse — o puro descaso, o desejo interno de que ela fosse embora, a raiva de sua frieza e, certamente, o incômodo com o rosto da própria Ryota se contorcendo.
Eles devem achar que estou com raiva.
Afinal, aquela foi a única emoção cultivada dentro dela nos últimos dias. E, naquele instante, por saber que por culpa dela aquelas três pessoas ao seu redor tiveram seus corações pisoteados por um ser insignificante e podre como ela...
Quem deveria morrer sou eu.
Como ela deveria sequer considerar encontrá-los depois de tudo o que fez? Depois de tudo o que havia pensado, conscientemente ou não?
Ryota não era digna.
E, mais uma vez, iria chutar a gentileza de outra pessoa pra longe apenas para esconder-se nas sombras.
Porque era mais fácil, e certamente evitaria que pudesse machucá-los outra vez.
Não tinha coragem, entretanto, para ver que tipo de expressões os três estavam fazendo quando virou-se de costas e começou a marchar para longe no corredor.
Ao menos, foi o que esperou fazer.
Antes que seus pés pudessem tocar o chão, Ryota ouviu passos velozes atrás dela. Um arrepio percorreu sua espinha, pois eram de pés conhecidos e que outrora estivera em uma situação bastante semelhante.
Mas, naquela época, rejeitou friamente a voz infantil que implorou para acompanhá-la.
Não sabia se foi arrependimento, temor ou surpresa — mas o fato era que Ryota paralisou no lugar quando os braços de Dio a envolveram por trás.
Os dedos pequenos dele agarraram-lhe a roupa, como se pudessem impedi-la de se mover através da força. E, tão lentamente quanto era possível, Ryota baixou os olhos cobertos pela franja escura para olhar Dio.
Que tipo de rosto ele deve estar fazendo agora?
— Eu sabia que você conseguiria, moça!
Não era raiva, decepção, remorso ou ódio.
— Como sempre, você é incrível!
Era um simples, puro e gentil orgulho.
O brilho cheio de vida nos olhos do garoto com um sorriso largo atingiu Ryota como um tiro, e ela quase perdeu o equilíbrio das próprias pernas com o baque emocional.
Dio sempre foi um elemento desconexo e cheio de mistérios. E, mais uma vez, ali estava ele: expressando sentimentos com origens desconhecidas, mas que, por alguma razão, sempre eram capazes de deixá-la sem palavras.
Ela abriu a boca para dizer algo, mas sua voz havia sumido. Alex e Bellatrix não eram capazes de ver, mas o rosto de Ryota estava desenhado em uma expressão de perplexidade, culpa e dor tão profundos que poderiam inundar um mundo inteiro com o mar de emoções.
Mas nada daquilo pareceu importar para Dio, que apenas riu baixo como se estivesse satisfeito com uma expectativa cumprida.
— Eita, gente! Ô pirralho, você é meio precoce, hein?
— ... O quê?
— Nem adianta olhar pra mim com essa cara de cachorro abandonado! Qual é a sua?
— Sinto muito, mas não entendi o que quis dizer, moço.
— Moço, não! É Alex! Ó, vou até soletrar: A-L-E-X! Alex! Me chamar de moço me faz sentir um completo zé ninguém, mas pelo menos não me chamou de senhor, né?
Alexandre pareceu estranhamente irritado com o comportamento de Dio, que estava nitidamente confuso com as ações do outro. Entretanto, o que mais parecia incomodar o prodígio não eram apenas as falas do menino, mas a forma como ele parecia inocente demais aos seus olhos. E, acima disso...
— Está bem, Alex. Peço desculpas por não ter dito seu nome corretamente antes.
... A infinita serenidade transmitida no olhar infantil cheio de uma estranha inteligência pareceu incomodar Alex, que ao perceber que sua implicância não gerou desconforto ou qualquer reação divertida, bufou e cruzou os braços.
— Mas afinal de contas, qual que é a desse parabéns? Por acaso, tá achando que essa perolazinha passou assim tão fácil na prova prática?
— Sim.
— ... Sim?
— Sim. Afinal, eu sempre soube que ela conseguiria.
— Qual foi, pirralho? Como assim você sempre soube? Tá achando que as provas são fáceis assim, é?
Diante dos questionamentos naturais de Alex, Dio apenas balançou gentilmente a cabeça para os lados, ainda sorrindo com um orgulho e felicidade radiantes.
— Não. Eu apenas quis dizer que a moça é sempre incrível e capaz de surpreender, então por isso eu esperava que ela desse um jeito de passar.
— Caramba, é quase como se você tivesse dizendo que era impossível e esse rostinho lindo só conseguiu porque se virou nos últimos segundos.
— Bem, eu não estava presente para confirmar se a moça passou apenas improvisando, mas sei que deve ter sido parte disso.
Alex bufou quando soltou uma risada, mas Dio seguiu sorrindo com a maior inocência do mundo. Era quase como se ele tivesse confirmado indiretamente que não esperava que Ryota conseguisse passar na prova prática caso dependesse do próprio potencial, o que não estava assim tão longe da realidade.
— Aí, garota. Você não tinha me contado que tinha um irmãozinho tão engraçado! Eu gostei do pirralho, posso adotar pra mim?
— Não, não, não! De jeito nenhum!
Ryota mal havia movido os lábios para responder quando a própria Bellatrix interferiu na conversa, correndo até onde o trio estava para abraçar Dio com uma força assustadora que o fez contorcer o rosto em uma careta divertida de dor.
— Eu vi primeiro! Sai pra lá, Alê!
— B-Bella... Não consigo respirar assim...
— Aaaah, pronto! Até parece que você conseguiria cuidar de uma criança, Belinha!
— O quê?! Tá duvidando das minhas capacidades?
— Que capacidades, minha filha?
— ... N-Não consigo respirar... Socorro...
Uma discussão acalorada começou, mas era nítido o quanto Alex e Bellatrix eram próximos apenas pela forma como conversavam. Ou ao menos assim parecia, pois considerando suas personalidades intrusivas e cheias de energia, não seria surpreendente se eles mal se conhecessem e conseguissem dialogar tão amigavelmente daquela forma.
Em meio a isso, tudo o que Ryota conseguiu fazer foi observar a interação se desenrolar. Alex apontava o dedo no rosto de Bellatrix e continuava a provocá-la, e a garota retrucava com uma energia surreal apenas no intuito de proteger Dio e a própria honra. O garoto de cabelos áureos, por sua vez, apenas continuou com um sorriso leve no rosto quando não pôde se desvencilhar dos braços da ruiva, mas não pareceu incomodado com o quão pegajosa ela era com ele.
Ao invés disso, Dio desviou sua atenção para Ryota, que continuava apenas observando como se fosse alheia a tudo aquilo. O sorriso dele diminuiu até eventualmente sumir quando falou, quase murmurando:
— Moça, você tá bem?
Como o tom de voz de Dio soou preocupado, Alex e Bellatrix interromperam a discussão e voltaram sua atenção na direção da garota de cabelos negros. Ao receber toda aquela atenção de uma única vez, a reação que ela provavelmente deveria ter tido era encolher-se, resguardando a consciência de estar sendo olhada por pessoas às quais temeu tanto ver.
E um pedaço dela realmente quis esconder-se dentro da própria concha outra vez, como se nada daquilo fosse importante — afinal, fingir e fugir para os caminhos mais fáceis para iludir a própria realidade e torná-la conveniente era simples. Mas, ao invés disso, o que surgiu no rosto dela foi um singelo e discreto sorriso.
Era leve como uma pena, e delicado como vidro. O rosto antes cheio de rugas e enrijecido foi, gradualmente, suavizando e, eventualmente, as emoções trancadas dentro dela, com medo de serem liberadas e causar uma tempestade descontrolada, reluziram através de memórias gentis.
Ah, como eu senti falta disso.
Qual foi a última vez que ficou rodeada de pessoas tão boas, criando uma atmosfera calorosa e sorridente como aquela ao ponto de querer apenas se acolher e abraçar aquilo para sempre?
Por um breve segundo, as íris azuis ganharam um tom azul como o céu mais claro do verão, e o sorriso tão suave deixou os três diante dela completamente em silêncio, quase perplexos com o que estavam vendo.
— ... Sinto muito, acabei me distraindo.
Quando sua mente desviou-se do transe, a expressão de Ryota retornou à neutralidade de sempre. Ainda assim, o sorriso e o brilho nos olhos que desapareceram ainda ficaram marcados nas retinas do trio, que não desviaram sua atenção do rosto dela quando continuou a falar com a voz baixa, rouca e desajeitada:
— Eu... — hesitou mais uma vez, mas nenhum deles a interrompeu ou se incomodou quando Ryota baixou um pouco o rosto e deixou a franja esconder brevemente os próprios olhos, ainda temendo descobrir a reação que viria a seguir — ... Eu errei.
Aquelas palavras soaram como um sussurro distante, mas foram igualmente dolorosas e difíceis de dizer — porque, afinal, Ryota jamais poderia dizer em voz altas o quanto detestava e repudiava a si mesma por um dia ter suspeitado e desrespeitado cada um deles.
Dentro de sua mente escura e cheia de arrependimentos, custou-lhe preciosos segundos encontrar as palavras corretas para serem ditas de forma que expressassem com exatidão seus sentimentos.
Como dizer tanto em tão pouco, sem assustá-los?
Era, no fim, ridiculamente simples.
— Cometi erro após erro, repetidas vezes, e com certeza os magoei.
Ryota engoliu em seco a saliva que trancou sua garganta.
— Não peço para que me perdoem, porque não existe justificativa em minhas ações que compensem o que fiz ou disse. Mas, se for possível, ao menos...
Apertando os lábios, inspirou fundo e ergueu o queixo para ser capaz de ver o rosto de cada um deles.
— ... Ao menos, me permitam pedir desculpas.
Os ombros dela caíram, quase cansados de tanto esforço para encontrar meras palavras. E, também, para sustentar o olhar em um ângulo que permitisse não apenas a eles enxergar a expressão em seu rosto, mas também ela aos deles.
E aquela pequena força dentro dela quase se desfez imediatamente ao trocar olhares com Bellatrix em tamanho susto. Afinal, uma corrente de lágrimas escorriam dos olhos dela, e por um milésimo de instante Ryota se arrependeu do que disse.
Teria ela machucado ainda mais seus corações ao pedir perdão? Aquela possibilidade quase a fez cair de joelhos, como se pudesse desmaiar em tamanho pavor atravessando seus ossos.
Mas ao invés disso, a ruiva apenas cruzou a pequena distância entre elas e lhe deu um abraço apertado o bastante para roubar qualquer fôlego restante de seus pulmões. E, assim, começou a se desfazer em lágrimas.
— Aaaaaaaaah, Riri! Me desculpa, me desculpa, me desculpaaaaa! A culpa é toda minha!
— ... Espere, o quê?
Ryota até tentou responder, mas sua voz quase sumiu com o aperto forte de Bellatrix em seu corpo — ao lado delas, Dio soltou um pequeno suspiro acompanhado de um riso. Com isso, Alex arqueou uma sobrancelha e a ruiva apenas continuou a falar, soluçando e fungando desnecessariamente alto:
— É sempre, sempre, sempre assim! Todo mundo vai embora e me detesta porque eu fico tentando fazer amizade e chamar a atenção, mas eu juro que não é de propósito! Eu só queria receber você e o Didi bem! Eu não queria que vocês dois se sentissem sozinhos!
Era quase como se a própria Bellatrix tivesse começado a desabafar, mas Ryota não a interrompeu quando a ruiva ergueu os olhos cheios de lágrimas pra ela.
— Me desculpa, por favor! O Didi até falou que eu deveria esperar porque não era minha culpa, mas eu sei que era! É sempre assim! Então, por favor, me desculpa, tá? Eu prometo que nunca mais vou forçar intimidade sem perguntar antes! Não é de propósito, eu juro por cada fio de cabelo que tenho!
Bellatriz não soltou o abraço completamente, mas se afastou o bastante para segurar os antebraços de Ryota e chacoalhar a garota pra frente e para trás sem parar, como se tentasse convencê-la de todo jeito.
— Por favor, por favor, por favor!
— ... Espera um pouco, Bella-
— Olha, eu juro que pago sorvete e bolo pra você! E te ajudo nas suas lições de casa pra não precisar ficar se matando de estudar sozinha! E também vou parar de ficar te arrastando ou te segurando sem permissão! Por isso, me desculpa, por favor!
Era quase engraçado que Bellatrix dissesse aquelas coisas quando segurava Ryota com tanta força, mas a garota de cabelos negros apenas suspirou pesadamente.
Mas, sinceramente, era um verdadeiro alívio.
Afinal, parecia que de ambos os lados elas se sentiam igualmente culpadas. E, apesar de parte do que Bellatrix ter dito realmente ser verdade, Ryota jamais admitiria que outrora achou a energia da ruiva irritante. Se assim pensou, era praticamente uma afronta a ela mesma no passado.
Não era de forma alguma culpa da própria Bellatrix, e Ryota precisava deixar aquilo claro.
— Bellatrix... Bella.
A ruiva, ouvindo a tentativa de ser chamada pelo apelido e tendo os cotovelos segurados com uma firmeza gentil, fungou o nariz e encarou as íris azuis escuras da outra.
— ... Está tudo bem. Por isso, não se culpe, certo?
Talvez, naquele momento, aquela fosse a melhor forma de Ryota expressar seus sentimentos a ela. Se havia chegado ao coração de Bellatrix o quão arrependida e magoada consigo mesma ela estava, a ruiva não demonstrou, mas chorou ainda mais alto quando voltou a abraçar Ryota com força o bastante para sentir suas costas estalarem.
Dio e Alex trocaram olhares, sorrindo com igual alívio em seus rostos quando, por fim, Ryota e Bellatrix fizeram as pazes.