Volume 10 – Arco 4
Capítulo 33: Exercício de Autocontrole
Cerca de quase uma hora mais tarde, todos os estudantes do percurso regular completaram suas apresentações e, para a sorte de todos eles, pois a aplicadora repentinamente pareceu ficar de bom humor, todos passaram.
— É claro que vocês são apenas pequenas existências insignificantes diante da nossa grandiosidade e generosidade. Fora que alguns dançaram tão mal que pareceram estar tendo uma convulsão, mas como sou uma mulher cheia de empatia decidi não esculachar nenhum de vocês pelo bem do meu salário.
Ainda assim, Kakia não deixou de insultar cada um dos estudantes a todo momento que podia. Àquela altura, no entanto, todos haviam se acostumado um pouco com seu comportamento diferenciado e apenas permaneceram em silêncio, uma reação que não parecia agradar a aplicadora, mas ao menos evitaria qualquer conflito desnecessário.
Obviamente, ninguém desejava comprar briga com ela e acabar reprovando por isso. Não havia alguém assim tão tolo.
— Meu tesouro me convenceu de que alguns de vocês tinham algum potencial, e confesso que quase não dormi na grande maioria das apresentações. Por isso, me deixem parabenizá-los por terem feito o mínimo esperado de membros do Instituto Gnosis.
Com seu mesmo tom de superioridade, a aplicadora, em cima do palco e diante da fileira de estudantes que haviam voltado a usar seus uniformes normais, começou a aplaudir. O som começou a ecoar pelo espaço vazio, e logo as demais mãos se uniram às delas para comemorar em uníssono a aprovação para a segunda prova.
— Ótimo, ótimo. Agora que se sentiram um pouco mais satisfeitos com os próprios narizes, movimentem essas bundas e saiam daqui. Xô, xô! Vamos, circulando!
Não demorou muito para que Kakia expulsasse os estudantes do anfiteatro, então todos eles desceram do palco e começaram a caminhar em grupos para cima das escadas em direção à saída.
Ryota foi uma das últimas a descer o lance de escadas do palco, mas seus pés interromperam os movimentos quando reparou que alguém estava faltando. Seus olhos se voltaram para trás, e logo encontrou Alex ao lado da aplicadora de cabelos rosa.
Os dois pareciam conversar em voz baixa sobre alguma coisa que ela não foi capaz de compreender, e era ainda mais difícil de entender quando Kakia parecia murmurar perto do ouvido de Alex, e o rapaz estava de costas para onde Ryota estava parada.
Não houve uma grande reação ao que a aplicadora disse ao prodígio, mas após falar ela segurou os dois lados do rosto do rapaz antes de depositar um beijo na testa dele, desviando seu olhar na direção da garota que os espionava.
Ainda era difícil para ela ficar perfeitamente imune à pressão da atenção de uma Entidade, mesmo daquela grande distância. Ryota fez seu melhor para parecer desinteressada, mas não evitou o contato visual daquela vez. Kakia sorriu para ela em um misto de orgulho e análise dignos da Imoralidade, suas íris cheias de uma malícia que arrepiavam todos os pelos de seu corpo.
Naquele ponto, as Entidades não a assustavam tanto. Elas sempre seriam seres incompreensíveis, cruéis e alvos de sentimentos ruins para Ryota; porém, uma vez que as conhecia um pouco melhor, quando sua mente se permitiu abrir um pouco, percebeu que ainda era possível relutar contra aquela pressão da mera existência delas.
Ryota encarou Kakia de volta por longos segundos.
A Imoralidade riu com o nariz quando terminou de observá-la, balançando a mão no ar como se espantasse um inseto. Àquela altura, Alexandre havia descido do palco e se encaminhava na direção de Ryota, então a garota voltou seu olhar na direção dele ao vê-lo se aproximar.
— Olha só a gata me esperando! Por acaso, seu lado fofoqueiro despertou, foi?
— Não é nada disso.
— Não?
— ... Não.
Ela pensou em retrucar afirmando que apenas estava interessada no relacionamento que Alex e Kakia tinham, mas isso a levaria a discutir sobre a conversa que os dois acabaram de ter, o que literalmente refutaria sua negação de não ter interesse na conversa da dupla.
Por isso, apenas se calou por um momento antes de voltar a falar, desviando o olhar para o lado.
— Eu estava apenas esperando por você.
Ryota se arrependeu de dizer aquelas palavras um segundo depois, e seu rosto ainda neutro de emoções precisou de todo o esforço do universo para não ficar ligeiramente rosado com a expressão de malícia e convencimento no rosto de Alex.
— Ooooh? Parece que alguém aqui tava com saudades de mim? É isso meeesmo? Eu marquei tanto assim seu coração, garota?
— ... Não é nada disso.
— Ai, você é uma figura quando fica com vergonha!
Com aquele comportamento e os tapinhas nas costas dados pelo prodígio, a garota jamais conseguiria admitir em voz alta que, apesar de estar realmente curiosa para saber o tipo de relação que ele tinha com uma Entidade, estivera realmente esperando para que ambos pudessem retornar ao instituto juntos.
Não sabia a razão de se sentir constrangida por expressar um sentimentalismo simples como aquele, mas parte de seu grande esforço em esconder a verdade era simplesmente porque Alexandre era o tipo de pessoa que tinha um ego inflado poderoso, e que certamente se gabaria o resto da vida por isso — e ali estava ele fazendo exatamente isso.
Com um suspiro, ela permitiu que o braço dele se apoiasse ao redor de seus ombros quando começaram a subir as escadas para fora do anfiteatro, ainda ouvindo qualquer coisa aleatória que Alex estivesse tentando dizer. Ainda tentando processar as palavras que entravam por um ouvido e saiam pelo outro como uma corrente, Ryota virou-se ligeiramente para trás e olhou por cima do ombro para o palco.
A mulher extravagante de cabelos rosa havia desaparecido completamente, mas as luzes do palco continuaram ligadas do começo ao fim — como se apenas esperassem o retorno do ator que traria o próximo entretenimento aos espectadores.
A segunda provação discorrida naquele ambiente foi certamente desagradável de centenas de formas diferentes, mas era impossível para Ryota negar que uma parcela do peso que carregava ao entrar havia se dissolvido desde então.
Ainda haviam, sim, medos, ansiedades e diversas preocupações em sua mente. Contudo, era libertador não estar presa dentro da própria mente ao ponto de tapar os ouvidos para o mundo em prol de espantar as vozes da mente. E, como consequência, era ainda mais tranquilizante permitir ao próprio coração se abrir, ao menos um pouco, para alguém mais uma vez.
Era perceptível para qualquer um que Ryota estava aliviada, e um ar de paz era transmitido em seu olhar sombrio. Ainda que fosse difícil para ela expressar emoções que há tempos resguardou, temendo se ferir e reabrir feridas ainda não fechadas, um pequeno pedaço dela ainda queria arriscar.
Ryota queria ser capaz de amar de novo. Ela queria ser permitida, e se permitir, confiar naqueles ao seu redor outra vez.
E, acima de tudo, desejava receber o perdão daqueles a quem sujeitou um comportamento tão cruel nas últimas semanas.
Quem diria que foi tudo graças àquelas mulheres.
Apenas lembrar-se dos seus últimos momentos no Empíreo fazia seu rosto se contorcer em uma careta desagradável. Naquele período de tempo em que discutiu muito, mas ao mesmo tempo aprendeu tão pouco, foi capaz de encontrar pessoalmente todas as Entidades e trocar palavras com elas — afinal, “conversar” era um termo um pouco profundo demais para o que haviam feito.
Ainda havia muito para ser refletido a respeito do que ouvira de cada uma delas, especialmente de Sofia. Mas Ryota não tivera um único momento pacífico para que pudesse sentar e pensar desde que chegara em Urânia, e sua mente estava constantemente trabalhando para que seu corpo não excedesse à exaustão.
Dito isso, agora que a provação fora cumprida e seu terceiro mês naquela capital começaria, um pequeno período de tempo seria lhe dado para descansar e pensar melhor agora que não sentia-se mais perturbada.
... Por falar nisso, eu esqueci de pedir a minha recompensa para Sofia.
Na primeira vez, fora a própria Entidade quem trouxe o assunto à tona, colocando em cheque o encontro entre Ryota e a Maga Veridian, Gê. Como explicado pela própria Sabedoria, foi um método supostamente ideal para que ambas se reencontrassem e algo a mais pudesse ser despertado, ao menos segundo os melhores futuros conhecidos pela Entidade para seus próprios objetivos.
Agora, no entanto, não se lembrava de uma única vez em que Sofia havia mencionado sobre sua recompensa. E, em especial, recordava estar diretamente ligado ao caso de Kanami. Com isso, ela poderia encontrar uma forma de trazer a gêmea de volta de seu estado conturbado e trazer um pouco de paz ao coração machucado do irmão mais velho, Sora, que estava visivelmente afetado.
Um aperto em seu coração indicou a culpa que sentiu ao não ter aproveitado a chance de discutir aquilo com a Sabedoria enquanto ainda estava no Empíreo, mas Ryota logo suspirou e baixou os ombros tensos.
Haviam tantas coisas para pensar agora que sua mente não era capaz de recordar de tudo com uma única rajada. Não havia como recuperar o que foi perdido, portanto, decidiu que discutiria a respeito de Kanami numa próxima oportunidade e tomaria cuidado para não se esquecer novamente.
Era preciso se concentrar em uma questão por vez, ou acabaria se perdendo novamente. Inspirando fundo para acalmar o coração ferido e a mente turbulenta, sentiu o aperto ao redor dos ombros quando Alex lembrou-a da própria existência, ainda andando lado a lado.
Sim, agora, havia algo que ela precisava fazer. Uma ação que demandava uma coragem desesperadora de dentro dela, ao ponto de sentir as pernas bambas e o suor frio escorrendo pela nuca. Entretanto, era apenas mais um passo necessário dentro da ilimitada jornada de pecados a serem compensados causados intrinsicamente por ela.
O frio na barriga que a atingiu foi tão poderoso que quase fez Ryota sentir náuseas, e seus pés hesitaram em continuar quando parou diante do campus. Sua pele empalideceu e os dedos se fecharam em punhos, relutando contra a quantidade incontável de pensamentos que ferviam dentro de sua cabeça.
E se...?
Todos eles começavam com aquelas duas famigeradas palavras, terminando as sentenças com tantas possibilidades temíveis que seus olhos chegavam a nublar com a falta de ar.
E se eles nunca me perdoarem?
E se eles me odiarem pra sempre?
E se eles me culparem?
E se eu os machuquei profundamente?
E se eles souberem que pensei as piores atrocidades sobre eles?
E se eles nunca mais quiserem me ver?
E se? E se? E se?
— Ah, não. Assim não vai dar.
A voz que começou o sermão não a tirou do transe, mas os dedos que levantaram seu queixo na altura dos outro par de olhos azuis, sim. Logo quando encararam um ao outro, Alex bateu palmas no ar com força o bastante para o som ecoar pelos quatro cantos do instituto, chamando um pouco a atenção dos demais estudantes.
— Com essa cara murcha, vai deixar todo mundo é em depressão, viu? Coloca um pouco mais de brilho nesse rosto bonito e ergue esse queixo! Quero ver animação! Determinação! Estufa esse peito, garota!
Com um estardalhaço, Alex começou a reprimir o comportamento de Ryota e deu dois soquinhos no peito dela, como se tentasse extrair alguma coisa de dentro de seu torso.
— Aqui, vem comigo. Me acompanha!
— ... O quê?
— Não te perguntei nada, cala a boca e me acompanha!
Ryota piscou um pouco surpresa, mas não retrucou.
— Inspira fundo pelo nariz, sente esse ar todo entrando nesse seu pulmão e bota ele pra trabalhar!
Alex inspirou profundamente balançando uma das mãos, como se acompanhasse o trajeto do oxigênio adentrando suas narinas. Ryota o acompanhou, erguendo o queixo no processo e deixando o peito estufar.
— Agora solta esse ar devagar! E devagar mesmo, entendeu? Não é pra explodir que nem um balão. Ó, faz assim.
Em seguida, o ar saiu dos pulmões durante longos segundos, expirados sutilmente pelos lábios. A garota acompanhou as indicações do prodígio do começo ao fim, os ombros e queixo baixando de novo, mas os olhos ainda no rosto do ruivo.
— Isso aí. Agora, de novo! Comigo, vem!
Alexandre obrigou Ryota a respirar profundamente cinco vezes, mantendo um contato visual tão furioso e cheio de energia que ela não ousou desviar por nem segundo. Ao final do exercício, ele abriu um largo sorriso e riu com o nariz, convencido.
— É isso aí, agora você tá parecendo um pouco mais digna de conversar. Se acalmou um pouco, né? Agora deixa esse queixo erguido e anda direito, ou vou segurar na sua mãozinha e tratar que nem criança pra ver se aprende!
— .... C-Certo.
Ryota ainda estava um pouco perplexa, mas os pequenos minutos que passou trabalhando na respiração relaxaram seu corpo. E, uma vez que havia uma figura tão cheia de energia e coragem como Alex a guiando, sentia como se pudesse fazer qualquer coisa no mundo.
O sorriso cheio de confiança dele era radiante, e colocando uma mão para empurrá-la gentilmente com ele pelo hall e corredores, os dois andaram a passos firmes em meio aos estudantes. Os olhos de Ryota se desviaram imediatamente para o chão, mas o dedo indicador de Alex imediatamente ergueu o rosto dela para frente.
Era como se estivesse dizendo: se não consegue encarar os olhos, ao menos veja através deles.
Em suma, era outro exercício de confiança. Aquele em especial era um pouco mais difícil, mas àquela altura era impossível apenas virar as costas e ir embora, então Ryota colocou um pouco mais de esforço nisso e forçou-se a observar o ambiente, e não as pessoas.
— Esses foram mais alguns dos ensinamentos que a senhora Kakia me passou.
De repente, Alex assim murmurou entre as vozes e sons de passos no corredor. Ryota ergueu o olhar para o rosto de perfil dele, ouvindo atentamente suas palavras.
— Ela gritava comigo o tempo todo, dizendo: “Quem é você pra virar o rosto? Acha que todo mundo vai ficar te encarando como se você fosse assim tão importante? Vê se se enxerga!”, e muito mais.
Ele soltou uma risada baixa, bastante gentil.
— E, depois, ainda falou: “As pessoas não te acham interessante o bastante pra ficarem te encarando o dia todo, sabia? E mesmo se achassem, então estufa esse peito e encara de volta! Intimida eles! Faz eles procurarem algo pra fazer da própria vida ao invés de cuidarem da dos outros!”.
— ... Ela faz soar tão fácil.
— Foi o que eu disse a ela. E, no fim, é tão fácil quanto parece.
Alex piscou um dos olhos para Ryota, de brincadeira.
— Só precisa de uma pitada de coragem, uma xícara de ousadia e uma bacia de autocontrole.
— Autocontrole?
— Pra não socar a cara de ninguém, ué.
Ryota com certeza teria rido do tom de Alex, mas a única coisa que conseguiu expressar em seu rosto foi o leve baixar de suas sobrancelhas.
— No fundo, você nem precisa ser realmente confiante... Só precisa parecer tão irrelevante com o que pensam de você que vai deixar eles todos desconcertados.
— Então... É só mentir?
— Minha querida, muitas verdades começam com uma mentira. A atuação trabalha da mesma forma: Você começa fingindo até ficar perfeito o bastante pra ser real. Ninguém além de você precisa saber que é mentira, e quando for verdade, eles nem vão perceber a diferença.
Ryota não conseguiu responder. E então, apenas um suspiro escapou de seus lábios.
... No fim, parece que a mentira sempre vai ser meu maior trunfo.
Era um pouco irônico imaginar que a facilidade em mentir adquirida ao longo de experiências não muito agradáveis poderia ser útil agora.
Ainda que não tivesse obtido resposta, pareceu que Alex se agradou com a postura da garota ao lado, então ele nada disse.
Ao menos, não até o momento em que chegaram em sua sala de aula.
Como na vez anterior, logo após a provação, os estudantes eram liberados de suas atividades e retornavam apenas no próximo dia letivo para receberem suas notas e retornarem às atividades comuns.
Por isso, a última coisa que Ryota esperava encontrar em seu pequeno exercício de autocontrole dentro do prédio fossem justamente as duas pessoas que temia encarar.
— Olha só quem está aqui! A nossa mais do que querida presidente tá mais radiante a cada dia!
— ... Alê? Aaah, que saudades! E como foi a-
A garota de voz animada imediatamente girou no lugar com seus patins, abrindo um largo sorriso quando reconheceu a presença do prodígio. Mas antes que ela pudesse terminar sua fala, seus olhos desviaram-se para quem o acompanhava e sua expressão imediatamente congelou.
Ao lado dela, saindo da sala de aula, um menino de cabelos claro também surgiu, escondendo-se ligeiramente atrás da ruiva.
E foi esse o marco do encontro do quarteto mais chamativo de Gnosis.