Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 10 – Arco 4

Capítulo 32: Ansiedade

O mundo que antes era um grande mar de luzes e o mais puro branco se desmanchou lentamente, permitindo assim à garota recuperar sua consciência anteriormente perdida, bem como a capacidade de abrir os olhos devagar para entender o que se passava em seus arredores.

A mente que ainda recebia e processava todas as informações do diálogo no Empíreo permaneceu chacoalhando dentro de sua cabeça, e Ryota permaneceu em silêncio durante um período extremamente longo. A respiração vinha em intervalos curtos e o rosto empalidecido preenchia-se de suor enquanto o corpo permanecia na mesma posição debaixo da forte luz do anfiteatro; entretanto, apesar dessa sensação de exaustão, ela se sentia livre.

Era uma sensação estranha, que há tanto tempo não fluía pelos membros ao ponto de fazê-la sentir-se flutuar. Por um milésimo de segundo, o que chegou até Ryota, ainda parada no centro do palco quando sua apresentação para a prova acabou, foi a mais pura paz.

O silêncio era como um afago aos ouvidos, que anteriormente quase sangravam com a quantidade de murmúrios. O cérebro foi incapaz de processar tudo aquilo, gerando uma descarga emocional poderosa o bastante para deixar a garota de cabelos negros completamente paranoica, enxergando coisas inexistentes em meio à provação.

As sombras que causavam arrepios deram lugar ao brilho da luz, acariciando sua pele suada dos movimentos ritmados da dança, e os sons excruciantes se desfizeram lentamente até finalmente nada mais restar além da leve sensação de liberdade.

Um grande peso sumiu de seu peito, e Ryota sentiu que sua respiração tornou-se um pouco mais pura gradativamente conforme recuperava o fôlego. Seus olhos, ainda erguidos para o teto do anfiteatro, baixaram-se devagar na direção das pessoas, mas a expressão serena de seu rosto nunca desapareceu.

Os rostos dos estudantes que assistiam à dança eram de pura surpresa, congelados em choque com o que acabaram de presenciar. Em algum momento da apresentação, Alex levantou-se de seu lugar e deu alguns passos à frente, como se tivesse a intenção de parar a dança de Ryota. Entretanto, talvez pelo o que viu ou ouviu, aquela vontade desapareceu e a mesma expressão de interesse dos estudantes surgiu em sua face.

Kakia, permanecendo sentada, apenas mantinha os braços cruzados com um sorriso vitorioso.

Então, ela ergueu as duas mãos antes de começar a aplaudir.

Foi um único e singelo som, mas que despertou todos os demais de seus respectivos transes. E assim, os demais estudantes começaram a bater palmas para a apresentação da garota.

Ryota ainda estava em uma posição um pouco graciosa demais no balé quando finalizou sua apresentação, logo relaxando devagar os membros do corpo para que retornasse a uma postura ereta, mas não menos resplandecente.

— Ótimo, ótimo. Agora sai da frente minha filha porque tem mais gente na fila e eu não quero ficar aqui o dia todo. Xispa!

Como de costume, a aplicadora usou palavras duras para expulsá-la do palco quando permaneceu ali parada por mais tempo que o necessário, mas Ryota viu nos olhos de Kakia — da Entidade da Imoralidade — que havia aprovação.

Embora não soubesse exatamente o que significava, compreendeu e relembrou não muito tempo depois que sua provação fora um grande sucesso.

Baixando os ombros e sinalizando em concordância com a cabeça, Ryota se retirou do palco pelo o outro lado, dando espaço para que o próximo estudante pudesse fazer sua entrada e assim iniciar sua prova física de dança. Conforme descia os degraus do palco para os bastidores no intuito de se sentar em um banco próximo, sentiu uma mão lhe segurar pelo antebraço e parar seus passos.

Era Alexandre.

Ele abriu os lábios para dizer algo, mas nada além de um suspiro saiu. Era quase como se o rapaz não conseguisse expressar seus pensamentos, o que era um pouco surpreendente para alguém que o conhecia ao menos um pouco.

Demorou alguns segundos para o prodígio de cabelos laranjas reparar, também, que Ryota não recuou seu braço enquanto ainda a segurava.

— ... Mas que diacho foi aquilo, afinal?!

Pareceu que sua voz finalmente voltou, e a primeira coisa que Alex fez foi exclamar alto o bastante pra atravessar a música que tocava na caixa de som.

— “Aquilo” o quê?

— Como assim, minha filha? Você literalmente entrou no palco como uma lagarta e saiu como uma borboleta, e ainda me pergunta “o quê”?!

Alex pontuou seus pensamentos atrapalhadamente, tropeçando nas próprias palavras. Ryota não sorriu, mas seu rosto cansado não desenhava contornos na pele por estar franzindo a testa ou enrijecendo o rosto.

Como um estudante de artes durante grande parte de sua vida, o prodígio diante dela jamais se enganava quando via uma pérola sendo polida. E, ao mesmo tempo, jamais se enganava ao perceber quando algo havia mudado dentro de um artista.

E o que Alex via agora era o rosto da libertação.

Como se um pequeno pedaço daquilo que maculava o coração dela tivesse recebido o devido tratamento, dando-lhe não apenas uma postura mais serena, mas também um tom de voz mais leve, ainda que neutro de emoções.

— Está dizendo que eu fui assim tão bem na dança?

— Aaaah, não foi isso que eu disse! Até que os seus passos tavam decentes até do nada você sair do ritmo da música e começar a fazer os movimentos na maior brutalidade e leveza do mundo. Parecia que eu tava assistindo uma luta, e não uma dança! Pequeno Sol que me livre de comparar aquilo com uma coreografia!

— ... Entendi.

Ryota não estava assim tão esperançosa de ter despertado uma habilidade inata de dançarina dentro dela, mas ainda assim as palavras de Alex doeram um pouco. Ela teria rido se pudesse, mas nada se moldou em seu rosto além de uma expressão ainda mais suave de reflexão.

A forma como o prodígio a encarava era como se pedisse por uma resposta, mas mesmo ela não sabia como definir o que havia acabado de acontecer. Naturalmente, não havia razão para explicar sobre as provações ou sobre o furacão de emoções, sensações e memórias que reverberaram dentro dela antes de se libertar ao longo da dança.

Ainda assim, Ryota fez um pequeno esforço quando começou a falar em voz baixa, bem devagar.

— Se eu precisasse colocar em palavras... Diria que me sinto aliviada.

Era a verdade. Sua respiração tornou-se um pouco menos pesada, a pressão em seus músculos relaxou e os olhos antes quase sempre semicerrados de tensão agora apenas pareciam exaustos.

Em resposta a essas palavras, Alex soltou outro suspiro e deu alguns tapinhas gentis no braço da garota. Por fim, um sorriso finalmente surgiu no rosto dele.

— Que tudooo, arrasou! É assim mesmo, querida. Quando se trabalha com a arte, a melhor coisa nesse mundo todinho é a nossa capacidade de expressão. Já não basta o povo hoje em dia ser tudo antissocial, parece adolescente que nunca saiu do colégio, de tanta incompetência pra conseguir falar o que tá sentindo pros outros.

Alex bufou e colocou as mãos na cintura, empinando o queixo.

— Parece que a gente precisa de bola de cristal pra ler os pensamentos dos bonitos, se acham a última bolachinha recheada do pacote! Vê se pode! Mas é claro que tem gente tipo você que precisa de mais que um puxão de orelha, e é pra isso que a arte tá aqui: pra expressar aquilo que seu coração muitas vezes não consegue pôr em palavras!

O que começou com um sermão terminou como um incentivo, e parecia que Alex estava orgulhoso da perceptível mudança em Ryota. Era uma sensação estranha ver alguém que era um completo desconhecido se expressar tão abertamente assim para ela, como se aquilo realmente fosse importante pra ele.

Era como se aquele rapaz, ainda que mal tivessem trocado uma centena de palavras, realmente se importasse com ela.

E aquilo criou um nó em sua garganta tão forte que quase sentiu que poderia morrer de constrangimento ali mesmo.

... Como eu pude ser tão cega?

Ainda haviam receios dentro dela. O medo da rejeição, da traição e da perda a marcaram o bastante para Ryota não desejar experimentar um novo amor nunca mais. Abrir seu coração para pessoas, permitindo-as ver como realmente era por baixo das suas tentativas desesperadas de esconder os seus ferimentos, era uma exposição que ainda não estava disposta a ceder.

Entretanto... O tratamento que a própria Ryota concebeu à essas mesmas pessoas que estenderam-lhe a mão era tão cruel e injusto quanto.

O quão tola fora ao pensar que todos eram iguais. Como poderia pensar algo tão estúpido quanto considerar que aqueles sorrisos eram apenas falsos? O quão frágil e covarde se tornou apenas para proteger a si mesma, afastando rudemente todos os demais?

Eu sou realmente tão idiota assim?

A sua hipocrisia atingiu limites tão absurdos que, com a mente um pouco mais clara, agora era capaz de ver o quão estúpida havia sido. O que martelou em sua mente e apertou seu coração não foi apenas vergonha das próprias ações, mas um leve desespero que fez seus dedos estremecerem.

... Eles vão me perdoar?

Desde que conheceu aquelas pessoas em Urânia, ou reencontrou outras de Thaleia, apenas mostrou seu pior e mais sujo lado. Foi uma representação da sua pior parte, e ainda assim houveram aqueles que tentaram abraçá-lo.

Mas cega pelo medo, rejeitou tudo e todos ao seu redor.

Sua mente vagou para o passado, para a forma como agiu durante pouco mais de um mês com a elite de Sofia Megalos e os seus colegas do Instituto Gnosis. Ela não apenas rejeitou e ignorou-os, como ficou tão presa na própria mente e paranoias que sequer se lembrava do que eles haviam feito naquele período ou dito a ela naquele período. O cérebro apenas possuía recordações breves, mas eram tão vagas quanto memórias de um sonho.

Ryota ficou tanto tempo assim enjaulada pelos próprios pensamentos ao ponto de esquecer-se do mundo real?

— E lá vai você de novo pensando demais!

Outro tapa, agora um pouco mais forte, acertou o braço dela. A garota resfolegou em surpresa, erguendo as íris escuras para o prodígio que fazia bico com os lábios.

— De-sem-bu-cha!

— ... Eu...

Eu posso mesmo dizer a ele?

Os dedos dela tremeram mais uma vez, mas ela os firmou na tentativa de conter seu nervosismo. O suor, agora de ansiedade, escorria por sua nuca enquanto encontrava palavras para expressar o que havia em sua mente.

O quanto eu posso dizer a ele?

Ryota temia que começar a explicar a levasse a precisar revelar determinados momentos de sua vida que ainda não estava preparada para dizer em voz alta a alguém, por isso hesitou.

Entretanto, ainda meio impaciente, Alexandre esperou a observando com as mãos na cintura. Era quase uma forma cruel de apressá-la, mas depois de despertar a garota de seu transe, não parecia que ele faria outro movimento brusco assim.

Então, apenas esperou que ela ganhasse coragem para desabafar sobre os sentimentos entalados na garganta.

— ... Eu cometi um erro.

Vários, na verdade.

— Então, não sei se as pessoas com quem errei serão capazes de me perdoar.

São pecados demais para as minhas mãos carregarem sozinhas. É pesado o bastante para eu querer ficar de joelhos, me encolhendo enquanto me desfaço em lágrimas.

Ela baixou os olhos para os próprios dedos, erguendo as palmas diante do corpo. Eles ainda tremiam, cheios de imperfeições e pequenos machucados. Não havia percebido, mas calos dos estudos sem intervalos durante noites a fio haviam feito suas marcas na pele.

A expressão de Ryota se tornou um pouco mais sombria, e ela abaixou tanto a cabeça que a franja cobriu seus olhos.

— ... Ainda que me perdoem, não mereço esse perdão.

Eu fui tão cruel e monstruosa quanto uma Entidade.

Eu desejei a morte de outras pessoas como se fosse normal.

Eu os afastei e pisoteei seus sentimentos.

Eu desprezei suas empatias e gentilezas.

Lágrimas brotaram nos olhos de Ryota, que ainda resmungava com a voz fraca. Os ombros tremeram um pouco enquanto relutava com todas as forças para não chorar.

— ... Eu sou... Um lixo.

Ryota inspirou fundo e devagar, o ar entrando por suas narinas com uma dificuldade impressionante. Ela conteve as lágrimas, odiando a possibilidade alguém ver um lado tão frágil, mas foi incapaz de estabilizar qualquer outra parte do corpo quando começou a falar.

A desabafar.

Ela sentiu como se pudesse despejar — não, como se pudesse vomitar cada pensamento e sentimento de dentro dela ali mesmo. Poderia apenas colocar tudo pra fora para um completo desconhecido, e que certamente viraria as costas para ela no mesmo momento.

Isso a assustava profundamente. Ser rejeitada, ser abandonada.

Ela não queria perder ainda mais, e ter as esperanças destruídas mais uma vez acabaria com qualquer força restante em suas pernas.

Foi uma mescla de emoções tão poderosa que Ryota sentiu como se o nó em sua garganta ficasse ainda pior, ao ponto de apenas não saber mais como respirar. Era patético de ver. Qualquer um riria daquela cena, não era óbvio? Ninguém em sã consciência estenderia a mão para um desconhecido à beira de se quebrar, provavelmente com medo de acabar completamente com suas resistências ou simplesmente hesitando em encher a mente com preocupações alheias.

Ela seria rejeitada.

O silêncio de Alex disse o bastante.

Ryota sentiu como se o mundo ficasse escuro mais uma vez, e sua visão se desfocou.

Antes que suas pernas cedessem completamente, dois braços a seguraram, colocando-a gentilmente de joelhos ao invés de lhe permitirem despencar de uma só vez.

Queria ter sentido a dor, e quem sabe assim pudesse apenas desmaiar e mergulhar na escuridão da mente outra vez.

Mas o calor que preencheu seu corpo lentamente se desfez, e a sensação de que perderia a consciência desapareceu. No lugar, um abraço apertado a manteve perfeitamente parada, ambos abaixados no chão dos bastidores do anfiteatro.

— ... Está tudo bem.

Aquelas três palavras se firmaram em sua mente outra vez, e o corpo de Ryota estremeceu quando Alex começou a passar a mão no cabelo dela. Era como se tentasse acalmar uma criança, e sua voz era tão suave e gentil que despedaçou ainda mais o coração frustrado e dolorido dela.

Provavelmente, ainda haviam mais palavras que Alexandre poderia dizer a Ryota, mas ele sentiu como se estivesse sendo presunçoso sobre os sentimentos dela. O prodígio sabia melhor do que ninguém como presumir algo sobre outrem quando essa pessoa estava ferida, doía.

Doía o bastante ao ponto de parecer que seu coração sangrava.

Então, ao invés de consolar a garota que se desfez e perdeu as forças sem sequer conseguir formar uma explicação concreta sobre o que a afligia, Alex apenas continuou abraçando-a firmemente enquanto sussurrava perto de seu ouvido.

— Está tudo bem.

No fundo, a caixa de som do anfiteatro trançava uma melodia tão leve quanto a voz dele, e Ryota se sentiu repentinamente muito, muito cansada.

Contendo as lágrimas até o final, ela fechou os olhos e apenas encostou a testa no ombro de Alex enquanto lentamente tentava se acalmar.



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