Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 10 – Arco 4

Capítulo 31: Purificação

Foi como se repentinamente o mundo paralisasse, e a mente da garota de cabelos negros não pudesse processar qualquer coisa que ouvisse ou visse diante dos próprios olhos.

No passado, houveram situações em que o choque foi tamanho que sua consciência foi parcialmente ou completamente roubadas da realidade, e Ryota entregou-se à mercê das próprias emoções ou da completa apatia. Entretanto, a construção para que todos aqueles momentos ocorressem ainda faziam sentido em sua mente, ainda que as memórias não fossem necessariamente agradáveis de relembrar.

Entretanto, aquilo era completamente diferente.

Outrora, se surpreendera com a identidade de duas Entidades às quais estavam intrinsicamente envolvidas com seu dia-a-dia, mas poucas vezes desconfiara de algo estava profundamente errado com aquelas pessoas. Afinal, encontrar pessoas que davam em Ryota sensações de arrepios profundos ou a impressão de que poderiam matá-la apenas com uma troca de olhares não era uma raridade.

Em contrapartida, ainda haviam aqueles que eram o oposto destas descrições, apresentando um conforto e calor tão grande em suas presenças que poderia simplesmente se desfazer em lágrimas.

Sim, mesmo agora, ainda era difícil definir por completo quem era ou não uma Entidade apenas observando à primeira vista. Embora, agora, talvez fosse capaz de determinar com um pouco mais de cuidado se observasse com mais atenção.

Mas contra todos esses instintos e pensamentos, havia uma única pessoa naquele mundo que exalava o puro cheiro da maldade. Não era apenas porque sua voz aguda e seus olhos com pupilas de estrelas assombravam seus piores pesadelos e escorriam em seus ouvidos quando a mente revolvia na agonia das vozes.

A verdade era que aquela pessoa, em especial, representava e era, em sua essência, a própria desgraça. Os arrepios que percorriam sua espinha com a infantilidade disfarçada; a sensação de desconforto quando era observada; o tilintar das correntes que carregavam sangue e morte; a risada que assemelhava-se ao desconforto de unhas arranhando um quadro negro; os modos que poderiam ser vistos como engraçados, apenas lhe causavam náuseas profundas, como se levasse vários socos seguidos no estômago... Haviam tantas formas diferentes de descrever o horror de estar no mesmo ambiente que aquela menina, mas certamente o que mais aterrorizava Ryota agora era a sensação de calor emanada dos braços que a envolviam pelo pescoço.

Era um abraço inocente e largo, como a de uma pessoa querida que há tempos desejava revê-la — e embora houvesse, ali, uma espécie de afeição destinada a ela, Ryota desprezava cada segundo daquilo com todas as forças de seu ser.

 Mania ainda olhava para Ryota com aquele sorriso largo e caricato, quase estupidamente desenhado em seu rosto para parecer cruel. Era diferente de qualquer outro que havia visto, embora o frio que vinha em sua barriga fosse o mesmo de quando encarava qualquer outra Entidade ali presente no Empíreo.

— Ah! Ela ficou toda dura que nem pedra! Caramba, acho que acabei te assustando um pouquiiinho assim, né?

— Claro né minha filha, até eu tomaria um susto se um cadáver do nada aparecesse na minha frente.

— Eu não sou um cada... Essa coisa feia aí! Vê se me respeita, beleza?! Eu tô vivinha aqui! Tá ficando cega de tanto beber, ô gorducha?!

— Gorducha é a sua mãe! Se bem que você nem tem uma, né? Otária!

Ouvindo a discussão exacerbada das duas Entidades, que ergueram as vozes como duas crianças, Sofia apenas suspirou com uma paciência admirável. Seus olhos verde-água deslizaram de Mania para Ryota, que ainda estava perfeitamente congelada no lugar, seus olhos petrificados no rosto da Insanidade com uma atenção assustadoramente fria.

— Mania, por gentileza, poderia sentar-se conosco? Está deixando nossa convidada desconfortável.

— Qual foooi, hein? Eu tava tããããão ansiosa pra rever o nosso brinquedinho novo!

— ... Mania, por favor.

— E eu tô errada, So? Qualé! Eu sou a única que trabalho aqui, e ainda fui euzinha aqui que encontrou ela, viu? Vocês duas só ficam aí bebendo e fazendo altos nadas o dia todo! Preguiçosas!

— Preguiçosa?! Por acaso tem noção do que a gente tava fazendo esse tempo todo enquanto você tava se cagando toda pra enfrentar essa coitada aí? E ainda se borrou toda pra lutar com aquela duquesa sem graça! Que vergonha!

Não importava o quanto a Sabedoria insistisse pacificamente para que a Insanidade largasse Ryota, os braços dela continuavam envolvidos ao redor do pescoço da garota enquanto ela e a Imoralidade discutiam freneticamente.

Sofia permaneceu em silêncio por mais alguns segundos, ouvindo Mania e Kakia discutirem sem parar como dois cachorros latindo um para o outro. Com o canto do olho, observou a forma discreta com que Ryota, ainda com os olhos fixos na Insanidade segurou a xícara de café que havia sido servida a ela — mas não no intuito de bebê-la.

— Ô sua gorducha horrorosa! Se quer ficar se exibindo, pelo menos bota uma roupa que preste!

— Qual o seu problema, sua lambisgoia?!

— Para de me xingar com palavras difíceis que eu não sei o que significam!

— A culpa é sua por ser analfabeta! Ignóbil!

— E você é uma gorda! Gorduchaaaa! Bléééééé!

— Vê se aprende umas palavras novas antes de me xingar! Seu repertório tá uma bela porcaria, ô peste!

A briga se acalorou ao ponto de Kakia beber em um único gole o seu vinho, derramando a bebida sem qualquer cuidado em suas roupas enquanto ficava em pé, pronta para encarar Mania com sua altura um pouco maior do que a dela.

Em comparação, a Insanidade apenas abriu um sorriso largo e riu mostrando os dentes e sua língua, parecendo se divertir cada vez mais com a raiva da Imoralidade e nem um pouco preocupada com a tensão que se estabelecia.

Ryota segurou a alça da sua xícara com força enquanto ouvia a discussão, mas toda a sua atenção ainda era voltada para Mania, que sequer voltou a olhar para ela. Portanto, certamente não reagiria quando rasgasse a pele com a porcelana, queimando aqueles olhos dourados com a bebida fumegante.

Ocorreu em uma parcela pequena de segundos.

A bebida voou no ar, e a xícara arremessada com o punho pronto para afundar-se no rosto de Mania encaminhou-se em sua direção com uma certeza quase assassina nos olhos azuis escuros. Kakia, por sua vez, não moveu um único músculo enquanto via a cena desenrolar, apenas dedicando sua energia em continuar a brigar com a Insanidade.

E, em relação à essa menina de íris douradas...

Basta.

A voz branda de Sofia ecoou pelo Empíreo e sacudiu o universo, as estrelas balançaram no céu como se pudessem cair do espaço sombrio e a porcelana das louças na mesa racharam. Não houve qualquer necessidade dela erguer um dedo, mas o espaço que estava sempre moldado às suas vontades reagiu de imediato.

O comando bastou para que Mania e Kakia ficassem em silêncio. E, também, para que a bebida e a xícara arremessadas fossem de encontro com uma parede invisível antes de acertarem seu alvo, desaparecendo como se atravessassem um portal para uma outra realidade.

Um pequeno instante de silêncio permaneceu no Empíreo, e Sofia soltou um suspiro. Finalmente, Ryota desviou seus olhos cru de emoções para o rosto da Sabedoria, que cruzou os dedos sob a mesa ao olhar com seriedade para as duas outras Entidades.

— Aprumem-se ou se retirem. Não tolerarei interferências ou descasos em meus dias úteis como Entidade. Ambas conhecem as normas e nossos deveres, portanto ajam como tal quando estamos aqui por uma razão tão importante.

Outro momento de silêncio.

— ... Foi ela que começou.

Mania jogou a culpa em Kakia sem nem hesitar, falando baixo propositalmente para passar despercebido. Mas óbvio que todas as que estavam ali presentes ouviram, e uma veia de irritação saltou na testa da Imoralidade.

Kakia estava pronta para retrucar Mania, mas sob o olhar atento de Sofia, que parecia possuir uma certa autoridade naquele espaço, a mulher de cabelos rosa nada fez além de estalar a língua e olhar para Ryota.

— Parece que mais alguém aqui tá guardando ódio contra você, pestinha.

— Ah, é? Entra pra fila então.

Mania eventualmente voltou a olhar para Ryota e soltou uma risada esganiçada, e pareceu que estava tentando irritá-la de propósito com aquele comportamento.

Entretanto, ao invés de respondê-las, Ryota apenas deu um tapa forte no braço que ainda envolvia seu pescoço e afastou Mania com o ato, encarando-a de baixo com visível ódio.

Aquela ação pareceu surpreender a Entidade por um pequeno instante, então o mesmo sorriso cruel percorreu sua face juvenil.

— Oooh? Cê tá bravinha comigo ainda, é?

A questão foi feita no intuito de provocar ainda mais a explosão de emoções dentro da garota, cujos olhos azuis ferviam como se pensassem em mil modos de matar Mania — outra vez — ali mesmo.

Entretanto, a voz de Sofia interferiu em conseguinte.

— Ryota, entendo como se sente, porém peço para que se contenha agora.

— ... Você não entende nada.

Em contraponto à busca por paz da Sabedoria, Ryota voltou seu olhar cheio de ódio para Sofia, rosnando em resposta.

— Cala a sua boca e para de achar que entende a dor de alguém só porque sabe do que aconteceu.

— Ei, qualé. A Sofia tá fazendo um esforcinho aqui pra te ajudar, sabia? Baixa esse nariz aí, garota.

— Eu não estava falando com você.

Dessa vez, Ryota não estava se sentindo paciente para ficar em silêncio diante das provocações de Kakia. A Imoralidade, ouvindo aquilo, franziu a testa, parecendo não gostar nem um pouco da forma com que a garota falava.

Ainda perante a tensão estabilizada no Empíreo, do ar de superioridade e do horror que qualquer uma daquelas três mulheres passavam, Ryota não se rebaixou ou temeu. Naquele momento, havia apenas uma raiva silenciosa queimando dentro dela, pronta para destruir tudo a qualquer passo em falso.

— Nenhuma de vocês tem meu respeito ou confiança, então parem de falar achando que vão conseguir alguma coisa de mim desse jeito.

Ryota sabia agora que as Entidades precisavam dela. Era uma certeza absoluta, e não apenas porque Sofia havia lhe dito no começo de tudo. Havia, certamente, uma razão “maior” para Mania ter buscado ou encontrado Ryota há quase um ano atrás, e deveria ser a mesma razão pela qual a Sabedoria se esforçava tanto para mantê-la ali, jogando seus jogos.

E se ela era uma peça-chave, ou parte de algo importante, não poderiam descartá-la.

Talvez ela devesse temer um pouco mais as pessoas que estavam diante dela, observando-a falar sem dar qualquer importância para os sentimentos dela; entretanto, Ryota percebeu que, por alguma razão, elas não poderiam forçá-la a estar ali.

Sofia, desde o começo, havia lhe informações e espaço o suficiente para escolher. Ainda que fosse profundamente irritante que a Sabedoria conhecesse todos os futuros e possíveis escolhas, optando, portanto, manipulá-la como podia para seguir o caminho que desejava, Ryota compreendeu que a vontade dela ainda possuía peso.

Haviam usado suas necessidades como razão para mantê-la ali, seguindo cada uma das provações por algum motivo maior. E, se seu raciocínio estivesse correto, era como um objetivo em comum das Entidades, que trabalhavam em conjunto por ele.

Entretanto, se fosse um objetivo em que pudessem usar a força para isso, certamente não seria Sofia a ter a superioridade dentro do Empíreo. Afinal, ela era a única dentre as Entidades conhecidas capaz de manter uma conversa agradável o bastante para entreter seus convidados. Portanto, aquilo deveria valer de alguma coisa, certo?

Precisavam mantê-la ali, e forçá-la a isso certamente não era uma opção — independente de qual fosse a razão. Por isso, se a destratariam daquela forma quando ela era supostamente necessária... Era agora que Ryota precisava mostrar com quem estavam falando.

— Vocês todas são monstros... Verdadeiros demônios que se divertem com as dores e o sofrimento dos outros, rindo e se achando no direito de pisar nas outras pessoas. E esse é o pior tipo de pessoa que existe.

Ryota voltou seu olhar cheio de fúria para Sofia.

— Eu estou aqui porque quero respostas. Jamais compactuaria com qualquer uma de vocês se não fosse por isso. Então, ou vocês vão cumprir com o contrato, ou vou embora.

Ela poderia ter apelado um pouco mais, ameaçando espalhar a informação sobre suas identidades reais para o mundo afora. Entretanto, Ryota não sabia o quanto aquilo seria valioso, ou como as Entidades reagiriam àquele tipo de fala.

Porém, uma parte dela sabia que talvez não fosse muito inteligente ir tão mais longe em suas palavras. Ao menos, não enquanto ainda haviam tantas questões sem resposta que eram vitais a ela.

— ... Muito bem.

— Até que você não é assim tão coitadinha, hein? Respeitei um pouquinho, confesso.

Sofia suspirou e Kakia riu, mas Mania permaneceu em silêncio com um sorriso leve no rosto. Ryota não desviou mais o seu olhar para a Insanidade, ainda que diversas coisas se revirassem dentro dela, rancores e raivas passadas não poderiam ser descontadas em um momento tão crucial.

Agora que aprendeu a lidar com aquela fúria e relembrou a razão para estar ali, precisava ser forte.

Observando-a, a Sabedoria finalmente sorriu casualmente outra vez.

— Como prometido, ainda lhe devo a resposta para a segunda provação. E, como compensação pelas ações tomadas por minhas amigas, lhe concederei um pouco mais de tempo para conversarmos apropriadamente sobre as dúvidas que a incomodam.

Ryota sentiu seus ombros relaxarem quando as Entidades reagiram com tanta serenidade. Era quase como se estivessem esperando aquela reação dela desde o começo.

— Aí, pestinha! Eu não esqueci do jeito recalcado que você me xingou antes, então a gente vai acertar as contas!

— Quêêê? Agoooora? Eu queria ficar aqui e ouvir a conversa!

— Deixa de ser molenga! Você só ia atrapalhar, e eu também não quero ficar ouvindo lorota da Sofia com essa garota.

— Nãããão! Não quero!

Mania bateu o pé no chão quando Kakia se aproximou dela com ar de provocação, como se a desafiasse. Obviamente, o intuito era deixar Sofia e Ryota sozinhas para conversarem sem qualquer intromissão, mas convencer uma mente infantil como a de Mania com lógicas comuns era impossível.

— Aaah, não me diz que você tá com medo de perder pra mim de novo?

— O quê?! Como ousa?! Fui eu que venci da última vez, viuuu?!

— Claro que não, bichinha! Eu sou perfeita, nunca erro nas minhas contagens, então das 1783 batalhas que tivemos, eu venci duas vezes a mais que você!

— Mentirosa!

— Deixa de ser insuportável uma vez na vida e aceita logo que vou te vencer uma terceira vez~

— Sem chance! Eu vou te derrotar quatro vezes agora só de raivaaa!

Ryota observou as duas Entidades voltarem a discutir, até que eventualmente Kakia conseguiu convencer Mania a se afastar da mesa de Sofia para deixarem-nas em paz.

A Sabedoria, ainda sorrindo, balançou seus ombros.

— ... Elas nunca mudam.

Foi um comentário para si mesma antes de estalar seus dedos no ar, e repentinamente o espaço se moldou, distorcendo-se como um quadro derretendo para apresentar outra obra de arte por trás.

E certamente se parecia com algo belo a tal comparação, pois o cenário de estrelas repentinamente foi trocado para um campo. A plataforma foi substituída por um pequeno morro, e a mesa que compartilhavam recebeu um guarda-sol para protegê-las da luz.

Embaixo, a extensão infinita do universo se tornou um campo aberto com algumas flores espalhadas. As pétalas esvoaçaram quando Kakia e Mania saltaram e correram pelo gramado, as correntes com a bola de ferro repentinamente surgindo nas mãos da Insanidade com uma risada de êxtase. A Imoralidade, em contrapartida, parou à uma distância segura e estendeu o braço para frente com a palma aberta, fazendo surgir ao redor dela uma dezena de longas lanças douradas.

A visão da batalha que se desenrolaria entre as duas Entidades, entretanto, não foi o ponto em que Ryota se concentrou. A sensação de uma brisa agradável passeando por seus cabelos, o cheiro suave da natureza penetrando suas narinas, o céu azul agraciado com o sol caloroso acima delas... Tudo aquilo foi poderoso demais para seu emocional abalado, e a garganta da garota se fechou.

— Escolhi um ambiente incômodo?

— ... Não.

A voz de Sofia foi baixa e macia quando falou, observando a expressão cheia de uma dor nostálgica no rosto de Ryota, que ainda era incapaz de sorrir. Naturalmente, aquele campo era apenas um cenário genérico gerado artificialmente, e mesmo ela foi capaz de perceber que não foram teleportadas. Entretanto, o ambiente que relembrava o interior era doloroso o bastante para apertar seu peito esquerdo, quase asfixiando-a.

Mas ainda assim, Ryota não conseguiu deixar de apreciar aquele lugar, mesmo com a dor rasgando-a de dentro pra fora. Ela desviou imediatamente seus olhos de Mania e voltou-os para Sofia, no intuito de não mergulhar naquelas emoções profundamente ao visualizar a Insanidade a apenas alguns metros dela.

— E então? Por onde deseja começar?

— ... Sabe que odeio quando fala desse jeito, não é?

— Sim, mas não consigo evitar.

Sofia riu quando Ryota a cutucou com palavras a respeito de seu conhecimento, incluindo sobre as dúvidas da própria garota. A Entidade, entretanto, pareceu satisfeita com o amadurecimento dela em relação aos próprios sentimentos quando continuou:

— Acredito que, neste momento, a questão sobre Mania seja um passo ideal para começarmos. Portanto, me permita começar explicando um princípio básico sobre nós.

Ryota deduziu que por “nós”, Sofia se referia às “Entidades”. Enquanto seus ouvidos se distraiam dos sons da batalha entre a Insanidade e a Imoralidade no campo à distância, as duas mulheres isolaram-se dentro da própria bolha quando a conversa se desenrolou mais uma vez.

A mesa que anteriormente ficava sob a plataforma branca, agora havia reduzido seu tamanho para uma pequena com espaço para apenas quatro pessoas sentarem, mas ainda era espaçosa o bastante para que as xícaras com bules e aperitivos fossem servidos.

O cheiro da cafeína remexeu o estômago, e Ryota se serviu de alguns goles da bebida enquanto ouvia Sofia começar a falar após um pequeno intervalo de tempo, preenchido apenas pelo silêncio.

— Entidades são imortais.

 A expressão de Ryota enrijeceu um pouco, mas não o bastante para moldar uma reação em seu rosto. Ainda assim, sua voz traiu sua tentativa de não mostrar sua surpresa quando murmurou:

— ... Sério?

— Sim. Em uma quantidade grandiosa de formas diferentes, não somos humanas. E isso se aplica a não sermos mortais, também.

— Mas... Eu lembro de a ter matado antes.

Aquela era uma memória que jamais se esqueceria. O dia em que a elite de Fuyuki Minami, ao lado de Ryota, se uniu no embate à Insanidade em seu próprio território. Foi um combate arriscado, usando os únicos sobreviventes do último atentado como isca para atraí-la até aquele local com o propósito da duquesa cumprir sua vingança.

Ryota ainda se lembrava da sensação dos punhos aterrando-se na face de Mania vez após vez, até finalmente nada mais sobrar. Foi o dia em que tirou uma vida pela primeira vez com as próprias mãos e, também, em que seu despertar ocorreu.

— Fuyuki Minami foi outra quem trouxe o fim incontáveis vezes durante sua pequena batalha contra Mania, além de você. Entretanto, como pode ver, a existência dela não desapareceu, apesar do que aparentou naquela época.

— ... Eu entendo. Eu acho, pelo menos.

Ryota continuava resmungando e franzindo a testa, o que apenas fazia Sofia continuar a sorrir, desfrutando de suas reações.

— Mas eu me lembro dela ter dito que eu poderia matá-la. No momento, eu nem pensei muito nisso e acabei finalizando ela, ainda assim... Pensando agora... Foi realmente estranho.

Mania havia lhe dito que seria necessário apenas mais uma vez para sua vida ser tomada completamente. Ryota apenas deduziu que fosse algum tipo de limitação na habilidade dela, mas quando parava para refletir, recordava-se de haver uma pequena mudança na expressão dela segundos antes de apenas deixá-la acabar com tudo de uma vez.

— A razão para isso é muito simples.

Sofia bebericou de seu chá outra vez, baixando seus belos olhos para a superfície da xícara quando sua expressão ganhou um pouco de peso.

— Mania não desistiu de lutar porque estava sem recursos; na verdade, ela perdeu a sua vontade de lutar porque Shai foi morto.

Os olhos azuis se arregalaram, e Ryota fez uma careta.

— Espere... O quê?

— Em termos simples, Mania sentiu o exato instante em que a vida de Shai se extinguiu. Portanto, acabou perdendo qualquer estímulo que a incentivasse a continuar, e aceitou o fim conseguinte.

— Então... Eu não a matei naquele dia? No fim, foi ela que se matou?

— ... Sim, podemos definir dessa forma.

Um arrepio percorreu os braços de Ryota, e ela pousou a xícara de café no pires. A quantidade de pensamentos que invadiu sua mente fez seu cérebro latejar, mas uma única certeza martelava sua consciência, que ainda assim não queria reconhecer aquela possibilidade.

—  Estou ciente do que está pensando, e sua conclusão está correta — Sofia finalmente ergueu seu olhar para Ryota — Mania se abalou com a morte de Shai, e recusou a continuar a lutar.

— ... Entendi.

Outro pequeno instante de silêncio abalou o espírito da garota que, mais uma vez, foi levada a refletir sobre os sentimentos que Entidades possuíam. Não que Ryota se sentisse culpada ou arrependida, mas ainda assim saber que a menina de olhos dourados não agia puramente com crueldade ainda a atingia, um pouco.

Em verdade, Ryota nunca havia parado para observar como Shai e Mania se relacionavam, ou se ambos eram próximos. Afinal, nada daquilo importava para ela. Entretanto, quando parava para refletir sobre tudo o que Sofia havia lhe contado sobre a perspectiva de uma Entidade sobre o mundo, e somado aos sentimentos que recém descobrira sobre elas...

— Antes de serem Entidades, uma vez fomos humanas. Então, ainda sermos capazes de sentir, ainda que resquícios de sentimentos, não é uma raridade. A forma como nos relacionamos definitivamente é discrepante, mas mesmo nós, um dia, tivemos coração.

A forma como Sofia falou soava como se tentasse consolá-la, o que apenas fez Ryota estremecer. Ao mesmo tempo, sua mente vagou de Shai para Albert, e a garota se perguntou se mesmo a Sabedoria... Não, se mesmo Sofia Megalos havia sentido algo com a perda do parente.

Não houve qualquer sinal de melancolia em seu olhar, então Ryota sempre havia pressuposto que a resposta fosse “não”. Mas e se a forma de luto dela fosse diferente da de Ryota? Poderia ela julgá-la por isso?

— ... Você tem um bom coração.

— Não quero ouvir isso de você.

— Certo, retiro minhas palavras.

— ... Também não precisava ir tão longe.

Sofia tentou elogiar Ryota, mas a garota recusou imediatamente a gentileza dele e engoliu de uma vez todo o café de sua xícara, como se tentasse limpar aquela amargura de sua garganta.

Inspirando fundo para acalmar a mente e o coração repentinamente incomodados, ergueu os olhos azuis escuros para a Sabedoria e entoou:

— Se possuem sentimentos, então por que insistem em serem cruéis? Por que se divertem quando tiram tudo de nós? Se sabem como é a dor, por que causar aos outros?

Sabia que estava retomando um tópico indesejado, mas Ryota ainda não conseguia compreender — e uma parte dela realmente queria ser capaz de fazer isso.

Havia algo que ainda não se encaixava. Quanto mais respostas surgiam, mais peças daquele quebra-cabeça de uniam, mas ainda haviam partes que pareciam não se conectar com a imagem em sua mente de uma Entidade.

Todas elas eram tão diferentes, mas tão semelhantes ao mesmo tempo.

Com qual propósito agiam? E como esse objetivo se relacionava com o prazer de causar dor, sofrimento e destruição por onde passavam? Por que razão cada uma delas recebeu um dom, uns mais mortais do que outros, mas ainda assim capazes de causarem um verdadeiro pandemônio?

— Porque assim foi definido por Katharsis, ué.

A voz que respondeu seus questionamentos não veio da beldade de cabelos verde-água diante de seus olhos, mas sim de uma outra pessoa sentada à sua esquerda com um tom arrastado e quase meloso. Como de costume, as pessoas naquele lugar costumavam aparecer em um mero piscar de olhos sem darem qualquer sinal de que estavam se aproximando ou não, o que trazia um leve desconforto para alguém como Ryota.

Seus olhos se voltaram para a garota sentada com uma das pernas dobradas na cadeira, a postura ereta mesmo quando apoiava o queixo em uma das mãos, o cotovelo encostado no braço da cadeira.

Era uma menina com uma idade próxima à de Mania, ao menos visualmente falando. Seus cabelos eram de um preto obscuro que caiam em cascatas dos dois lados da cabeça, os fios amarrados em duas madeixas compridas. Apesar de sua aparência ligeiramente infantil, haviam detalhes chamativos que poderiam defini-la como uma garota chamativa — fossem os olhos de cores diferentes nas cores preto e amarelo, ou as duas pequenas tranças em cada lado do rosto nas mesmas cores semelhantes ao sol.

Observando-a, Ryota reparou também em suas vestimentas completamente pretas como as delas, embora constituísse de um vestido com uma quantidade generosa de babados e rendas que cobriam sua pele.  Definitivamente não era o estilo favorito dela em termos de conforto, mas Ryota não poderia deixar de admirar como ficavam bem naquela jovem menina.

Piscando duas vezes, a desconhecida arqueou uma sobrancelha e riu com um carisma que não combinava com sua aparência sombria.

— Que foi? Gostou do que viu?

— ... Ah, não foi isso.

— Ryota achou seu estilo elegante, Ana.

— E você é uma bela duma fofoqueira!

— Sério?! Você me achou assim tão lindinha? Ai, obrigada! Eu sei que nem todo mundo gosta desse tipo de coisa, mas eu sou um pouco diferente das outras garotas, como pode ver, néé?

Apesar de Sofia ter entregado os pensamentos de Ryota sem nem hesitar um segundo, a menina chamada Ana sorriu ainda mais enquanto se vangloriava da própria aparência, parecendo não reparar na expressão de constrangimento da outra.

— E você até que tem um bom gosto pra cores, mas ainda precisa passar por um caminho bem grande pra chegar no meu nível de beleza.

— ... Entendi.

— Ah, mas a Sofia me contou que você era a nossa nova convidada, então vim correndo quando soube que estava fazendo a provação! Afinal, euzinha aqui não poderia ficar sem te conhecer, néé?

Ana bateu suas palmas e continuou sorrindo alegremente enquanto falava, deixando Ryota um pouco confusa. Ao contrário de Kakia e Mania, aquela garota era certamente um elemento único ali dentro do Empíreo. Ao menos, seu comportamento e sorrisos não apresentavam um único sinal de ameaça, aparentando ser realmente apenas uma menina com uma grande autoestima.

  — Acabei chegando atrasada porque tava cheia de coisas pra fazer, mas ainda bem que cheguei a tempo de te conhecer pessoalmente! Eu me chamo Ananque, mas minhas amigas me chamam de Ana! Ah, você também pode usar meu apelido, tá bom?

— ... Sim.

— Eu gosto da sua energia positiva!

Ananque segurou as mãos de Ryota e as balançou freneticamente em cumprimento antes de voltar a se sentar comportadamente em seu assento, voltando os olhos bicolores para a xícara de chá que surgiu na mesa ao lado de um açucareiro.

Ryota desviou seu olhar por um instante para Sofia, percebendo que ela parecia igualmente confortável na companhia da nova garota tal como estava ao lado de Mania ou Kakia. E, com aquilo em mente, uma conclusão óbvia chegou à mente dela.

— Então, você é outra Entidade?

— Sou sim, eu mesminha.

— Embora não tão perceptível, Ana é a Entidade do Destino. E, neste momento, a última das anfitriãs capaz de entrar no Empíreo.

A apresentação de Ananque foi certamente um pouco diferente das outras, pois Ryota reparou imediatamente que a personalidade e aparência da garota sentada ao seu lado não remetiam nem um pouco ao que se esperaria de um título como aquele — principalmente no ar de juventude passado por ela.

Era quase como estar sentada ao lado de uma pré-adolescente com um gosto exagerado por doces, pois desde que o chá surgira na frente de Ana, ela não parou um segundo de colocar cubos de açúcar dentro de sua bebida quente. Ryota não contou com exatidão, mas teve certeza que havia passado dos dez ou quinze em algum momento.

— Como assim a última “neste momento”?

— ... Você tá bem curiosa hoje, hein? É assim que eu gosto, de gente com atitude! Então explica pra ela, Sofia!

— Não existe mistério. Tal como disse, Ana é a última Entidade capaz de entrar neste espaço. Ao menos, no momento.

— É que a nossa última amiguinha tá presa faz aí uns... Sei lá, duzentos anos?

— Cerca de dois séculos, sim.

— Sim, sim, por aí! Ela acabou ficando de fora das visitas nesse tempinho, então somos nós quatro desde então. Se bem que ela sempre foi meio bleh de conversar, já que ficava de cara fechada o tempo todo, então ninguém sentiu falta dela, néé?

Sofia complementou a fala de Ananque, que balançou a colher de chá no ar em agradecimento antes de mexer seu chá e bebericar com um largo sorriso de satisfação.

Em contrapartida a essa interação, Ryota permaneceu com a expressão branda inalterada. Seus pensamentos continuavam trabalhando, e quase era possível ver uma engrenagem girando dentro de sua cabeça pela forma como analisava as falas de cada uma das Entidades.

Não demorou muito para que a conclusão, mais uma vez óbvia, viesse à sua mente.

— ... Se referem à Libitina?

— Ela mesma! Uma pena que ficou tão famosa mesmo sendo tão chatinha, nééé? Mas fazer o que, né Sofia?

— Infelizmente, a razão para a notoriedade dos atos de nossa antiga colega não estão relacionados conosco. E, exatamente por isso, não devemos criticá-la pelas ações que tomou.

— A Kakia é sempre tão certeira, néé? Ela falou que você tinha um coração mole, mas não sabia que era tanto!

Ananque pareceu rir da compaixão demonstrada por Sofia, mas a Sabedoria apenas balançou os ombros como se não fosse realmente importante. Embora, por um pequeno instante, ela tenha deslizado as íris na direção de Ryota quando falou, a garota não conseguiu ler que emoções ou pensamentos tentaram ser passadas naquela pequena troca de olhares.

Ainda que estivesse passando um período consideravelmente longo interagindo com aquelas mulheres com o pseudônimo de Entidades, ainda era difícil compreender que tipo de seres elas eram. Ryota conseguia deduzir que havia um traço de empatia verdadeira em Sofia, mas mesmo Ananque não era tão alheia ao fato de uma companheira ter passado tantos anos sob o regimento de um selo.

A Entidade chamada de Libitina foi certamente a maior calamidade despertada, causando uma destruição há duzentos anos que ainda se alastrava na atualidade. Sua existência causou a morte de centenas de milhares de pessoas, e suas habilidades que demandaram tempo demais para encontrarem uma forma de conter tomaram não apenas vidas, mas também terras, tesouros e a própria história do mundo.

A perda gerada sequer poderia ser colocada em palavras, pois ainda era um processo difícil de ser gerenciado. Ainda que não parecesse, dois séculos não eram tanto tempo assim, e Ryota viu com os próprios olhos como os representantes dos respectivos países ainda discutiam friamente uns com os outros com o único propósito de encontrarem vantagens para si mesmos e o próprio povo.

Uma vez que o assunto criou um clima um pouco pesado, Sofia baixou sua xícara no pires e cruzou as pernas debaixo da mesa; Ana, por sua vez, começou a repor o próprio chá e a colocar incontáveis cubos de açúcar dentro dele outra vez.

— Colocando este assunto de lado, você perguntou anteriormente a respeito da razão das Entidades optarem por tomarem atitudes consideradas cruéis para despertar o pior dentro dos seres humanos — a retoma do tema anterior fez Ryota endireitar-se na cadeira, e Ananque ergueu as íris bicolores para a Sabedoria — E assim como foi respondido, tudo está relacionado ao Katharsis.

— E o que é isso, afinal?

— Eu sei! Eu sei! Deixa eu falar! Deixa, deixa, deixa!

— Muito bem, pode prosseguir.

— Eba! Então, néé? Katharsis é o nome de um dos ritos usados por nós para aplicarmos as provações!

Quando Ananque abanou as mãos e insistiu para ela mesma continuar a explicar sobre o assunto que parecia interessá-la, Sofia deu espaço e permitiu que a garota agitadamente discursasse com um cubo de açúcar dançando na língua.

Ryota franziu a testa para a cena, mas focou-se no que estavam discutindo.

— Um rito?

— Isso aí. Dá pra dizer que os ritos são tipo o passo-a-passo que a gente precisa seguir, sabe? São bem trabalhosos, mas todos colaboram pro bem do Destino.

— Em termos mais simples, essa seria uma explicação apropriada. O rito Katharsis é aplicado em todas as provações, incluindo as que você está passando agora, Ryota.

— Então... Espera. Significa que vocês fazem tudo isso porque são ordens?

— Não, “ordem” não é a palavra correta. Eu prefiro “dever”, embora a forma como cada Entidade enxergue isso seja diferente.

— Pra mim é tudo muito chato porque eu só posso ficar assistindo! É tedioso!

Ainda que as palavras se sobrepusessem e as formas de contar de Ana e Sofia fossem diferentes, Ryota conseguiu compreender parcialmente o que estavam querendo dizer.

Assim como pressupôs, as Entidades realmente possuíam objetivos a serem cumpridos. Mas se não eram realmente denominadas como “ordens”, significava que não vinham de alguém superior, certo? Ou será que “dever” era apenas a forma da Sabedoria ver suas ações, assim como ela havia dito?

Eram especulações demais, e ela sabia que estava pisando em um campo minado ao se aprofundar no assunto das Entidades. Entretanto, Sofia era a própria Sabedoria — não havia como ela não saber suas reais intenções. Por isso, se as duas estavam respondendo tão claramente quanto possível, era porque não era assim uma informação tão secreta, certo?

— Então, se entendi corretamente, as provações que estou fazendo no instituto são chamadas de Katharsis?

— Nããão, sua bobinha! Errou feio!

— Ai.

Ananque desferiu um tapa gentil na testa de Ryota.

— Katharsis não é um rito feito só pela Sofia não, viu? A Mania também faz ele, e a Kakia também. Na verdade todo mundo aqui faz tudo junto, mas eu sou sempre a excluída, néé?! Eu odeio o meu trabalho!

— O que Ana está tentando dizer, Ryota, é que Katharsis é um rito que se assemelha mais a uma prática constante do que um ato ocasional. Ele se aplica não apenas nas provações que está passando no momento, mas igualmente em todos os nossos meios de ações ao redor do mundo. Mas essa é apenas uma pequena parcela do nosso dever.

Sofia manteve seu sorriso presunçoso no rosto e bebericou de seu chá enquanto explicava, apenas para deixar Ryota com uma expressão ainda mais enrijecida de tanto pensar no que estava ouvindo.

— ... Eu ainda não sei se entendi direito.

— Então, me permita descrever de outra forma.

Não parecendo nem um pouco irritada com a incompreensão dela, Sofia baixou sua xícara e olhou com uma gentileza quase irritante para Ryota. Era literalmente a forma como uma boa professora olharia para sua aluna, com uma paciência quase infinita.

— Recorda-se do que Mania certa vez lhe disse durante o atentado em Aurora?

A expressão de Ryota se tornou imediatamente sombria, mas Sofia apenas baixou seus ombros.

— Não estou a provocando propositalmente. Apenas gostaria de saber se conseguiria se lembrar de algo que ela disse quando se encontraram.

— ... Na verdade, não me lembro.

Ryota se esforçou um pouco, mas as únicas memórias que possuía daquele fatídico dia eram das chamas que destruíam tudo, do cheiro de sangue impregnado em suas narinas e do sorriso cheio de maldade da Insanidade.

— Entendo. Peço perdão por tê-la feito relembrar de algo desagradável.

— Não me consola ouvir isso de você.

— Estou sendo honesta em minhas palavras... De toda forma, a razão pela qual lhe perguntei foi porque todas as ações tomadas por Mania são Katharsis. Ou seja... São a purificação.

O corpo de Ryota enrijeceu ainda mais, e ela quase podia sentir suas perna começarem a formigar conforme o choque crescia dentro dela. O que lhe veio à memória foi, obviamente, o dia em que o vilarejo Aurora teve todos os seus moradores mortos cruelmente um a um, e cada pedaço do que um dia foi uma terra cheia de esperança e felicidade reduzido a cinzas.

Entretanto, havia uma palavra-chave naquilo tudo. Uma que, quando ouviu pela primeira vez, fez sua mente congelar e o coração rachado machucar-se uma vez mais. Suas memórias vagaram um pouco mais no tempo, quando ouviu da boca de um dos sobreviventes do atentado palavras que arrancariam seu chão completamente de uma única vez.

Purificação.

Obviamente, a Sabedoria estava ciente de tudo o que ela estava pensando, então não foi nenhuma surpresa quando Sofia continuou:

— A grosso modo, o que Jaisen certa vez lhe informou não está inteiramente incorreto, embora ele tenha sido ligeiramente bruto com suas palavras.

— Brutinho da Silva, néé?

— ... Uma purificação em que sentido?

— Katharsis é a evolução da alma, uma purgação para atingir seu maior e melhor estado de espírito. Entretanto, ele apenas pode ser alcançado através de uma forte descarga emocional desencadeada pelos dois polos opostos da mesma moeda: Felicidade e tristeza.

Sofia inclinou a cabeça para o lado.

— Em suma, é desferir ao coração um ou vários traumas para que a alma desperte seu verdadeiro “eu”, assim atingindo o estado perfeito da libertação. Ao ser purificada, o mundo a reconhece como especial e a identifica como o que chamamos de índigo, atravessando o primeiro estágio das provações impostas.

A mente de Ryota simplesmente derreteu quando todas aquelas informações foram jogadas na sua cara, criando um labirinto de conexões que antes eram completamente sem sentido.

Com o corpo e rosto congelados, seus olhos se detiveram em Sofia por um tempo quase infinito enquanto compreendia, lentamente, ao que aquelas duas mulheres estavam se referindo.

O trabalho de Mania... Era purificar almas?

Ainda não havia muito sentido em trazer um purgatório para pessoas de coração tão gentil através de tanta dor e crueldade. Se, ao menos, fossem mortes rápidas... Talvez pudesse se esforçar um pouco para entender. Entretanto, ainda que não estivesse presente, Ryota sabia por instinto que cada uma das vidas ceifadas pela Insanidade foram tomadas a sangue frio, sob o som daquelas correntes frias e a risada aguda que ecoava profundamente em seus ouvidos.  

Mas não era apenas Mania a responsável por causar tanto sofrimento por este propósito... Todas as Entidades fazem o mesmo, mas de formas diferentes.

Outrora, Sasaki havia lhe dito sobre como Mania era a Entidade mais ativa na atualidade, ficando atrás apenas de Libitina em baixas e calamidades causadas por um único ser. E se era assim, que tipo de calamidades eram Sofia, Kakia e Ananque? Como elas agiam em Katharsis, tendo como método de cumprir seus deveres tão cruelmente?

Ela desconhecia como aquelas mulheres atuavam, mas desconfiava de que a Sabedoria era uma causadora de problemas grandiosa quando usava suas palavras. E se, no fundo, ela fosse tão problemática e brutal quanto Mania ao manipular as pessoas com seus discursos e carisma? O que todo aquele conhecimento não poderia fazer com pessoas de mente fraca e corações abalados como os da própria Ryota? Quantos foram levados pelo sorriso cheio de presunção e os olhos doces da beldade sentada diante dela?

As outras duas Entidades ainda eram um completo mistério, mas não era como se Ryota quisesse saber. Na verdade, se descobrisse, era possível que a raiva dentro dela apenas ficasse ainda mais forte.

Antes, quando apontaram em seu rosto o fato de que se divertiam com a dor imposta, pensou que elas eram de fato apenas monstros em carne humana. Posteriormente, no entanto, elas se provaram muito mais assustadoras do que isso apenas através de fatos que as tornavam cada vez mais e mais sobrenaturais para uma mente humana comum entender.

Entidades eram mulheres encantadoras, porém sombrias. Eram carismáticas, mas cruéis. Com sorrisos marcantes e habilidades que superavam qualquer coisa antes vista. E, acima de tudo, seus meios eram opressores e repugnantes.

Os punhos de Ryota se fecharam com força em cima da mesa, as dobraduras de seus dedos ficando brancos enquanto ainda encarava Sofia. A Sabedoria, como sempre, permaneceu inalterada, perfeitamente ciente de cada pensamento de horror e maldições direcionados a elas.

E ainda assim, ela sorria.

— ... Vocês são as piores.

— Nééé? Eu sabia que ela ia gostar!

— ... Infelizmente, mentes comuns não são capazes de compreender. Não estou lhe dizendo isso no intuito de convencê-la do oposto, apenas respondi a cada uma de suas perguntas como desejou.

— E respondeu sabendo qual seria a minha reação, é claro.

— Estarei me repetindo caso afirme isso, portanto podemos apenas prosseguir em nossa conversa?

Sofia não se importou muito com a revolta e o tom de sarcasmo de Ryota, e a garota ignorou completamente Ananque quando a menina deitou na própria cadeira e saboreou os cubos de açúcar como se fossem balas.

Um pedaço dela ainda queria se levantar e começar a desferir xingamentos a todas as gerações daquelas mulheres, que provavelmente apenas ririam de seu comportamento esperado. Elas sabiam que eram desprezíveis, e se vangloriavam por isso. Repreensões ou gritos não iriam trazer nada além de diversão a elas.

Afinal, as Entidades se divertiam profundamente com o sofrimento alheio. E, agora que sabia que causar dores profundas nas almas das pessoas eram parte de seu dever, a situação se tornava ainda pior.

Neste ponto, ciente de que Sofia sempre sabia, não havia necessidade de desperdiçar seu tempo esbravejando com elas. Era necessário paciência e um pouco de esforço para controlar as mãos que tremiam em sua fúria interna, mas seu comportamento parecia agradar a Sabedoria cada vez mais.

Não porque Ryota estava sendo propositalmente provocada a sentir um ódio cada vez mais rancoroso, mas sim porque seu comportamento mudava um pouco a cada provação. E isso, sim, era o que ela queria ver.

— Então... Se entendi direito, esses tais índigos são pessoas especiais encontradas pelo Katharsis?

— Sim. Entretanto, são raríssimas e apenas podem despertar sua verdadeira essência quando passam pelas provações, fortificando-se ao longo do tempo.

— ... E foi por isso que... Destruíram Aurora?

— Em partes, sim.

A respiração de Ryota vibrou, mas ela rangeu os dentes para controlar as emoções que reverberavam em seu sangue quente.

— Aquele foi meu Katharsis?

— Não. Katharsis é constante e imparável, portanto está sempre sendo colocado em prática. Você pode dizer que cada lágrima derramada, cada batida de seu coração, cada berro erguido aos céus e cada pensamento de lamúria faz parte dele. Portanto, toda e qualquer dor gerada ou não pelo Destino faz parte do rito.

— ... Toda e qualquer dor?

— Exato.

— Mas, espere... Se nem tudo o que aconteceu foi causa e consequência, então... Significa que...

A mente de Ryota trabalhava em uma velocidade assustadora para acompanhar as palavras e o raciocínio de Sofia. Ananque apenas observava a conversa com um sorriso divertido as reações da convidada, e mostrou os dentes quando a Sabedoria finalizou o pensamento dela:

— Significa que tudo, ou grande parte de cada uma de suas dores, foi gerada naturalmente pelo mundo ou impulsionada propositalmente por Katharsis.

... É óbvio. Mania destruiu Aurora não porque ela achou que seria apenas divertido, mas porque era seu dever. E, com isso, índigos seriam encontrados, mas eles precisariam ser aperfeiçoados... E então...

— ... Vocês... Vocês realmente...

Mesmo Ananque sentiu arrepios com o olhar que Ryota direcionava para Sofia agora.

— ... Vocês manipularam tudo?

— Uma grande parcela. Afinal, ainda existem eventos gerados com as consequências de suas próprias ações, mas às vezes precisamos dar um pequeno empurrão para eles serem um pouco mais impactantes do que originalmente seriam.

... Originalmente seriam?

Era óbvio.

Sofia sempre soube de tudo. Ela conhece todos os tempos, todo o passado, todo o presente e cada futuro.

E, portanto, ela sempre soube quais seriam as melhores ações a serem tomadas para gerar a maior descarga emocional nos índigos.

... Esses monstros... Essas assassinas... Elas são as responsáveis por tudo, desde o começo?

Elas mataram os moradores de Aurora.

Elas mataram a família de Fuyuki.

Elas mataram e manipularam Fanes.

Elas torturaram Marie.

Elas controlaram Edward.

Elas mataram Albert.

Elas riram dos esforços de Zero e o mataram diante de seus olhos.

Elas fizeram tudo.

Era assustador imaginar que tantos eventos foram desencadeados com os poderes colocados desequilibradamente nas mãos daquelas mulheres. A crueldade capaz de tirar vidas, o orgulho que desonrava corações, o conhecimento que manipulava as mentes e a insolência que pisoteava nos ferimentos de cada um.

Aquela foi a gota d’água.

Ryota se levantou de sua cadeira com um impulso, lançando-a para trás. Ela não fez barulho ao cair no gramado, mas foi chamativo o bastante para Sofia e Ananque a observarem com atenção.

E, acima de tudo, visualizarem a expressão de repulsa e determinação nos olhos azuis escuros da garota.

Queria ser capaz de dizer uma centena de coisas para elas. Vomitar cada uma das maldições que se passavam em seu cérebro, cada sentimento que a enojava do fundo de seu âmago como um lodo corroendo seu interior. Apenas olhar para elas a fazia estremecer.

Mas não de medo.

— ... Estou indo embora.

Sua voz ainda estava trêmula, mas era pela quantidade de emoções que queimavam dentro de suas veias e embrulhavam o estômago. Ryota deu meia volta e começou a marchar para longe, para qualquer lugar, mas sabia que a porta que a levaria para fora do Empíreo estaria ali para permiti-la desaparecer quando desejasse.

A Sabedoria afirmou que tudo era de acordo com o Destino

Se era assim, então como acreditar que seu livre-arbítrio possuía valor?

Nenhuma das quatro mulheres a impediu de segurar a maçaneta da porta e a puxar com força, abrindo assim a porta que envolveu seu corpo com uma luz logo quando deu um passo adiante, mergulhando na travessia que a levaria de volta ao mundo real.

Um suspiro de exaustão foi ouvido, e Ana voltou seus olhos bicolores para Sofia, que estava exaurida.

— Ela ficou chateadinha, néé? Será que ela vai voltar?

— ... Ela precisa voltar. Mas, por hora, vamos descansar um pouco. Apenas nós quatro.

As duas mulheres trocaram sorrisos leves, mas a Sabedoria ainda não esquecera o olhar que Ryota lhe deu um momento antes de ir embora quando voltou a beber pacificamente de sua xícara.



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